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Quarta-feira, Abril 24, 2024

A Revolução contra “O Capital”

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

Falo da Revolução de Outubro, que foi em Novembro. A revolução marxista, que negou as teses de Marx. A Revolução Russa que se tornou Revolução Soviética. Sim, esta revolução determinou o futuro do século XX. Foi muito maior do que a sua causa. Tal como a Grande Guerra, como diria François Furet. 

Aconteceu em 1917, noventa e nove anos depois do nascimento de Karl Marx e 34 depois da sua morte. O seu obreiro foi Lenine. O continuador, Estaline. O homem que determinou o seu fim, Gorbatchov. A data-chave é 1989: a queda do Muro de Berlim. E o fim da URSS é em 1991. Contributo decisivo para este súbito desfecho foi o de Boris Yeltsin, que viria a ser o futuro Presidente da Rússia.

O bloco socialista

Entretanto, a construção do heterogéneo bloco socialista acontecera  no pós-segunda guerra mundial, por mão de Estaline. E por mão de Mao-Tse-Tung, na China, em 1949. E pelo Marechal Tito, na Jugoslávia, logo a seguir à guerra. A Constituição-mãe de todas as constituições socialistas foi a Constituição soviética de 1936.

Quem quiser conhecer a matriz dos regimes chamados socialistas deverá lê-la. O bloco que disputou influência mundial com o ocidente tinha o seu centro em Moscovo e reunia países como a Albânia, a Bulgária, a Checoslováquia, a Hungria, a Polónia, a República Democrática Alemã, a Roménia e, claro, a União Soviética. A Jugoslávia cedo ficaria desalinhada e afastada do Kominform.

O processo ocorreu em 1948 e o relator foi  Palmiro Togliatti, o líder do PCI, homem de confiança de Estaline no Kominform.

Dois mundos opostos

Em poucas palavras, poder-se-ia dizer que o bloco socialista se diferenciava do bloco ocidental por três grandes razões: estratégico-militar, política e económica. No plano estratégico-militar, contrapunha-se à NATO através do Pacto de Varsóvia; no plano político, governava-se não por democracias representativas, mas sim através de sistemas políticos de natureza orgânica, onde a sociedade se confundia com o Estado e onde aquela se diluía neste, mas não este naquela; no plano da economia, adoptava uma economia de plano com exclusiva propriedade pública dos meios de produção, onde era o Estado que definia administrativamente os índices de produção, não tendo o mercado qualquer relevância no sistema, ao contrário da economia de mercado, adoptada pelo ocidente, onde os índices de produção eram (são) ditados pela concorrência e pela lei da oferta e da procura.

A revolução contra “O Capital”

A revolução russa foi executada pelo Partido Comunista Bolchevique da União Soviética que se inspirava no marxismo, filiado no pensamento de Marx e de Engels, mas fortemente enriquecido pela obra (enorme) de Lenine. E a questão que se põe – e a que alude o título deste artigo – é a de saber se verdadeiramente ela não constituiu um profundo desvio em relação àquela que era a explicação da evolução da história presente na obra de Karl Marx. A resposta do brilhante marxista italiano Antonio Gramsci (1891-1937) é afirmativa, como se deduz facilmente do título do artigo publicado no “Avanti!”, a 24 de Novembro de 1917: “A revolução contra ‘O Capital’”.

O que diz da Revolução Russa o autor dos famosos “Cadernos do Cárcere”? “Ela é a revolução contra o Capital, de Karl Marx”, diz. “O Capital de Marx era, na Rússia, o livro dos burgueses, mais do que dos proletários. Era a demonstração crítica da fatal necessidade de que na Rússia se criasse uma burguesia, se iniciasse uma era capitalista, se instaurasse uma civilização de tipo ocidental, antes que o proletariado pudesse sequer pensar na sua desforra, nas suas reivindicações de classe, na sua revolução. Os factos superaram as ideologias” (Gramsci, A., Scritti giovanili. Torino, Einaudi, p. 150). E mais à frente: “Por que razão deveria ele (o povo russo) esperar que a história de Inglaterra se renovasse na Rússia, que na Rússia se formasse uma burguesia, que a luta de classes fosse suscitada para que nascesse a consciência de classe e acontecesse finalmente a catástrofe do mundo capitalista?”. E acrescenta ainda, Gramsci: o proletariado russo “começará a sua história a partir do estádio máximo de produção a que chegou a Inglaterra de hoje” (p. 152). Não era grande novidade esta, se é verdade que, em meados do século XIX, já o populista A. I. Herzen, se perguntava: «deve a Rússia atravessar todas as fases do desenvolvimento europeu ou a sua vida desenvolver-se-á segundo outras leis?”. Com a seguinte resposta: “ao povo russo não é preciso começar do princípio este pesado trabalho».

Leituras algo simplistas, como se o mundo rural pudesse, de súbito, adquirir características de mundo urbano, com os camponeses a viverem como se fossem trabalhadores de uma indústria que ainda não existia, a não ser em zonas muito localizadas…

A Perestroika

E é verdade o que diz Gramsci: para Marx a revolução socialista iria acontecer quando se verificasse uma contradição insanável entre as forças produtivas e as relações de produção, entre a concentração oligopólica da propriedade dos meios de produção e a socialização plena do processo produtivo. Mas o que aconteceu foi que a revolução iria acontecer no país da “obshchina”, num país totalmente rural, pouco industrializado, e por obra de uma vanguarda (teorizada no “Que fazer?”, de Lenine), em contexto de guerra (mundial).

Neste sentido, sim, tem razão Gramsci. Mas já não tem razão na segunda parte da sua reflexão, como se pode verificar pelo modo como se deu o fim do sistema soviético (em 1991), na sequência da Perestroika, da reforma económica promovida por Gorbatchov. O sistema estava a colapsar e a tentativa de o renovar fracassou. Um exemplo: carne, pão e rendas

de casa com preços bloqueados respectivamente durante 25, 40 e 60 anos. A Perestroika tentou, sim, introduzir elementos da economia de mercado, juntamente com uma ampla abertura política do sistema (glasnost). Passar de um desenvolvimento extensivo e quantitativo a um desenvolvimento intensivo e qualitativo e descomprimir politicamente o sistema.

Mas tal não foi possível não só pelo seu anquilosamento político, mas também porque a mudança ainda não encontrava suporte numa sociedade civil suficientemente robusta, apesar da intensificação da componente urbana da sociedade soviética, como refere o sovietólogo Moshe Lewin, em, se não erro, “The Gorbachev Phenomenon” (de 1988).

O caso chinês poderá ajudar a compreender o que correu mal na URSS, o fracasso da Perestroika, comparando com a política chinesa de fechamento político do regime como condição de uma ampla abertura à economia de mercado, sabendo-se que, de resto, ambas são compatíveis, pelo menos no curto prazo.

O que mudou

O sistema socialista soviético durou de 1917 até 1991, setenta e quatro anos, e o bloco socialista ainda menos, uma vez que foi instaurado após a segunda guerra mundial. Cerca de 45 anos.

Os partidos comunistas – criados nos anos vinte, logo a seguir à Revolução – têm-se tornado politicamente residuais e a pergunta legítima é se não se tratou de um erro histórico, sobretudo porque não é possível construir sociedades social, civilizacional e culturalmente avançadas sem sociedades civis e cidadania suficientemente robustas e sem desenvolvimento económico, o que só pode acontecer respeitando a temporalidade e o ritmo próprio da história e promovendo impulsos reformistas profundos.

Não se trata bem do dilema “Reforma ou Revolução?”, mas sim da temporalidade própria da gestação dos processos sociais estruturais. De resto, as sociedades foram ficando cada vez mais complexas, a cidadania cresceu e a classe média também. A tecnologia veio alterar o sistema produtivo, com alterações profundas nas relações de produção, tornando-se a ciência e a tecnologia as principais forças produtivas, responsáveis pelos índices de produtividade, pelo crescimento e pelo desenvolvimento.

O modelo de Marx, ainda subsidiário de uma economia que concebia o sistema produtivo a partir da centralidade do conceito de trabalho manual, onde a tecnologia surgia como sua mera extensão ou prótese, perdeu aderência à realidade com a revolução pós-industrial, ainda que o seu génio não tenha deixado de antever esta fase ao valorizar a composição orgânica do capital, o capital constante, em “O Capital”.

Isto para não falar do capital financeiro, desenvolvido ulteriormente por Hilferding, em 1910, com “O capital financeiro”, e usado abundantemente pelo próprio Lenine. O problema, todavia, viria a ser o dos modelos: económico, político, social e tecnológico, como vimos.

O socialismo e a guerra

Há, nesta matéria, um aspecto que não tem merecido muita atenção e é este: se repararmos, todo o sistema socialista foi construído sob os auspícios da guerra, logo a começar pela Revolução Russa (a Grande Guerra) e a acabar no bloco socialista europeu e asiático, todo ele construído logo a seguir à segunda guerra mundial. A posição extremamente defensiva de Estaline relativamente ao Plano Marshall não foi alheia a este desiderato estratégico de construção de um bloco político (sistemas políticos orgânicos), económico (Comecon) e estratégico-militar (Pacto de Varsóvia).

E também é certo que na sua matriz está a ideia de um conflito social e político insanável traduzido na ideia de luta de classes e numa dialéctica histórica de antagonismo radical. No plano internacional, viria a cristalizar-se na chamada guerra fria. É uma marca matricial e ela não pode deixar de ter consequências na afirmação e na consolidação dos sistemas socialistas em tempos de paz, na gramática do seu discurso político e estratégico-militar.

Mas, mesmo assim, a ideia que preside a todo este edifício foi sempre uma ideia generosa, ainda que accionada a partir de meios radicais e inadequados e virada para uma utopia pouco compatível com a mais realista natureza humana com que, inevitavelmente, a política lida.

Finalmente

A cem anos da Revolução Russa é, pois, do maior interesse discutir as grandes tendências da história, aprender com elas, retirando ilações úteis para o futuro, ainda que a presença da vontade humana introduza dimensões de imprevisibilidade que não se verificam nos ciclos naturais. Mas ler em acontecimentos com esta profundidade histórica é de grande utilidade para se entender os mecanismos estruturais que estão sempre presentes nos processos históricos e que não podem ser ignorados, sob pena de virmos a assistir a reversões históricas que em nada ajudam os povos que as sofrem. Utilidade, sim, particularmente para aqueles que são chamados a decidir em nome dos povos sobre as grandes questões que sobem à agenda histórica.

Nos cem anos da Revolução Russa não poderia deixar de propor estas considerações aos leitores do “Tornado”.

 

 

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