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Sexta-feira, Março 29, 2024

A selecção presidencial no Irão

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A obra do embaixador Peter Tomsen “As guerras do Afeganistão, terrorismo messiânico, conflitos tribais e os falhanços dos grandes poderes” publicada em 2011 é conhecida tanto pela excelente história do Afeganistão como pela crítica à miopia ocidental perante o fanatismo islâmico.

Para além da clarividência de Tomsen sobre os erros identais, o livro é também essencial na análise dos mecanismos de decisão vigentes na União Soviética, em especial da ascensão de Andropov, da forma como este conseguiu render o Politburo às suas ideias e da trágica cadeia de acontecimentos que desembocou na invasão do Afeganistão pela URSS.

Os observadores ocidentais desenvolveram durante a era soviética como que uma “arte de conjecturar” dedicada à compreensão das dinâmicas de ascensão política que caracterizavam o Partido Comunista.

Esta arte, conhecida como ‘Kremlinologia’, baseava-se em dados e factores como o número de segundos que durava um aperto de mãos, o grau de entusiasmo no aplauso de discursos e o número de menções pessoais em documentos oficiais do regime.

Compreender a teocracia iraniana

Hoje, após a queda da União Soviética e perante a ascensão do fanatismo islâmico, os mesmos observadores são confrontados com uma tarefa mais difícil: compreender a agenda, as prioridades e os jogos de influência presentes na ameaça multifacetada que representa o Jihadismo, nomeadamente, o da teocracia iraniana, campeã da arte da dissimulação que se pretende inspirada na “Taquya” corânica.

E assim os analistas tentam entender os objectivos e as estratégias dos clérigos iranianos contando a duração em minutos da entoação de ‘morte à América, morte a Israel’ durante os sermões das sextas-feiras, o número de provocações feitas pelas lanchas rápidas dos guardas revolucionários nos estreitos de Ormuz, ou o número de mísseis lançados pelo Hezbollah para o Norte de Israel. Noutras palavras, vemos hoje uma renovação dos antigos exercícios de “Kremlinologia” no que podemos designar de “Iranologia”.

Um objectivo essencial da “Iranologia” é perceber quem beneficiará do apoio do regime clerical para ocupar os postos mais importantes do regime. No que diz respeito ao ‘Guia Supremo’, a história do regime é relativamente simples. Depois do golpe de 1979, Khomeini elaborou uma Constituição adaptada à sua doutrina teocrática e ocupou o posto até à sua morte.

O favorito na sua substituição, o aiatola Montazéry, foi demitido em 1988 após desafiar uma Fatwa de Khomeini ordenando a execução extrajudicial de dezenas de milhares de membros da oposição (a maioria dos quais pertenciam à principal força de oposição, a ‘Organização dos Mujahedin do Povo do Irão’. Montazéry foi substituído pelo então número dois do regime, o Presidente da República Aiatola Khamenei, o qual se tornou também no cabeça da facção principal do regime (facção K).

Outro aiatola, Rafsanjani, por sua vez substituiu Khamenei na Presidência por oito anos (1989-1997) e tornou-se líder da facção rival (facção R) até à sua morte, há poucos meses.

Processo presidencial

A selecção do Presidente é um processo com duas ou três fases. Num primeiro tempo, o Conselho dos Guardiães – um corpo dependente da escolha e directrizes do Guia Supremo – selecciona os candidatos considerados de maior potencial para se tornarem número dois do regime.

Num segundo tempo, um processo de votação não-transparente (aberto a todos os eleitores) é teoricamente o mecanismo usado para refinar a selecção entre os previamente designados pelo Conselho. Se nenhuma escolha obtém a maioria absoluta, uma segunda volta de votação é feita entre os dois preferidos da primeira volta.

Rafsanjani impôs-se durante o seu mandato de oito anos como líder da facção rival. Depois da sua presidência, um seu seguidor, o aiatola Khatami, substitui-o por mais oito anos. Khatami distinguiu-se pela sua arte em transmitir uma imagem positiva do regime no plano internacional, ao ponto de ser considerado pelos media ocidentais como um ‘reformador’ e um ‘moderado’.

… ao longo dos anos

Em 2005 o regime surpreendeu os ‘Iranologistas’ ocidentais: o aiatola Rafsanjani, de novo candidato, foi eliminado na terceira fase de selecção por Mahmoud Ahmadinejad, antigo presidente da câmara de Teerão e oficial dos guardas revolucionários sem quaisquer credenciais religiosas.

Muito foi dito acerca deste passo. Alguns asseguraram que o regime tinha evoluído de teocracia para ditadura militar; outros que o regime se tinha transformado numa força revolucionária contestatária típica do terceiro mundo; outros ainda admitiram por fim as credenciais antissemíticas e proto nazis do regime.

Em 2009, a facção política liderada por Rafsanjani não aceitou a reeleição de Ahmadinejad, e o confronto entre os dois campos foi violento. Internamente, a facção R alegava que a ausência de treino clerical em técnicas de dissimulação de Ahmadinejad era muito negativa uma vez que ele não era capaz de convencer o Ocidente das boas intenções do regime.

E assim, em 2013, o líder supremo permitiu à facção R dominar de novo a Presidência através do aiatola Hassan Rouhani, o qual disputa hoje a renovação de mandato. Rouhani conseguiu obter um acordo com o Ocidente e expandir o controlo do regime sobre a região através uma rede complexa de grupos armados, agora também beneficiando de apoio russo e aumentou consideravelmente os níveis de repressão interna, com números recordes de execuções. As suas hipóteses de reeleição (e os presidentes têm sido sempre reeleitos desde 1981) pareciam esmagadoras.

… a decorrer

E no entanto o “Guia Supremo” Aiatola Khamenei multiplica os sinais de que o jogo ainda não está decidido. Khamenei fez pública a sua doença de cancro e anunciou querer assegurar a sua sucessão enquanto ainda em vida. Ebrahim Raisi, anterior membro da comissão responsável pelas execuções extrajudiciais de 1988 e agora presidente da “fundação” mais poderosa do Irão, a Fundação Imam Reza, é o nome geralmente indiciado como sucessor.

Com o óbvio incómodo do Presidente em final de funções, Khamenei convidou o seu vice-presidente, Eshaq Jahagiri, a apresentar-se como candidato. Os debates, que iriam supostamente ser emitidos em diferido a fim de poder cortar qualquer acusação mais violenta, acabaram por ser transmitidos em directo. Nestes, candidatos da facção K acusam publicamente o governo de Rouhani de corrupção, nepotismo, incompetência e má gestão.

Os Iranologistas enfrentam assim mais uma vez uma situação em que ninguém sabe ao certo que rumo está a tomar o processo de selecção presidencial. As opiniões dividem-se em dois grupos fundamentais.

Dois ou mais rumos do processo em curso

O primeiro grupo pensa que Rouhani já não é útil a Khamenei. Com o melhor amigo do regime iraniano na Casa Branca substituído agora por Trump, os jogos de decepção de Rouhani já não são uma opção viável. Assim Khamenei tenciona abandonar Rouhani e instalar no seu lugar o seu herdeiro aparente, Ebrahim Raisi, que passará a número dois do regime e eventualmente número um com a morte de Khamenei. Os Basij e os guardas revolucionários (que fazem as vezes de SA e SS do regime) assegurarão, como o fizeram no passado, que a ‘votação por votação secreta dos eleitores’ resulte no que for desejado pelo líder supremo.

O segundo grupo pensa que Khamenei na realidade deseja ser sucedido pelo seu filho (Aiatola Mojtaba Khamenei) e que o seu apoio público a Ebrahim Raisi é apenas mais uma peça de teatro nas linhas tradicionais de dissimulação utilizadas pelo clero iraniano. Khamenei estaria para além disso preocupado com o vasto poder acumulado por Rouhani no seio do Ministério do Interior, desejando antes de mais evitar o risco de um novo choque frontal entre facções, cujo resultado final seria imprevisível.

Pelo meu lado, penso que Khamenei segue toda a situação com cautela. Ele livrar-se-á de Rouhani se considerar que pode fazê-lo se achar que conseguirá evitar o desencadear de lutas potencialmente incontroláveis entre facções no seio do regime; pelo contrário, aceitá-lo-á se considerar que esses riscos são demasiado elevados.

Tal como a maioria dos ditadores, é provável que Khamenei deseje colocar o seu filho em lugar de chefia. No entanto é possível que almeje este fim através da escolha estratégica de uma terceira personalidade para o posto de Presidente: Mohammad Bagher Ghalibaf, presidente da Câmara de Teerão. Este poderia acabar por ser o vencedor da selecção na segunda volta, a qual terá lugar uma semana após a primeira volta a 19 de Maio. Seria um cenário semelhante ao que teve lugar com a selecção de Ahmadinejad em 2005.

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