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Sábado, Abril 20, 2024

Anglicismos… ou talvez não

Os anglicismos perseguem-nos e já fazem parte do nosso linguajar diário.

Adriana Freire Nogueira
Adriana Freire Nogueira

Quem usa computador não diz «carrega na tecla do apagar», mas sim «carrega na tecla do delete» (e lemos com pronúncia inglesa, «dilite»). Os filmes de cowboys nunca serão de vaqueiros. E se o mouse lá conseguiu ser rato e os links cada vez mais se tornam ligações, já os bifes (de beef, carne de vaca na língua inglesa) ou o futebol (football) já ninguém nos tira, pois que até os incluímos nos nossos dicionários.

Os exemplos são inúmeros. Não vale a pena enumerar mais, pois todos os conhecemos.

Não se pense, porém, que em Inglês não há lusitanismos.

Comprei um dicionário etimológico daquela língua para oferecer a um amigo e andei por lá a bisbilhotar antes de lho oferecer. Foi nessas andanças que encontrei a marmelada. A nossa é feita de marmelos, que só servem para isso mesmo (também servem para a geleia, claro), de tão duros que são. A marmelade deles é usada para designar o que chamamos genericamente «doce de qualquer coisa». Apesar de ter havido hesitações entre origem francesa ou portuguesa, marmelade está atestada desde 1480 e é aceite como sendo de origem lusitana. Parece que as nossas exportações para Inglaterra seriam de tal monta que, em 1495, até foi criado um imposto específico para este produto. Apesar de a forma ser igual à francesa marmelade, essa etimologia não vingou, visto só quase um século mais tarde, em 1573, se ter encontrado referências documentais ao termo.

Voltando ao início deste texto (não se diz que as palavras são como as cerejas? Vêm umas atrás das outras…), um dos exemplos que indiquei, curiosamente, não é de uma palavra inglesa do ramo germânico da língua, mas sim uma palavra latina, deletare, com o mesmo significado.

anglicismos 2

Era sobre este tipo de suposição etimológica (falsas etimologias, como por vezes são chamadas) que queria tratar hoje.

Surpreendeu-me, há uns tempos, uma reportagem de um telejornal sobre o uso de palavras estrangeiras na nossa língua. A jornalista alargou o tema e tratou mais concretamente os anglicismos (palavras de língua inglesa introduzidas em Português). Foi nesse contexto que entrevistaram uma professora da Universidade Nova de Lisboa, com a qual tenho de discordar (coisa que detesto fazer). Mas… paciência.

A propósito de «paciente», com o sentido de «doente», afirmando que os médicos não têm pacientes, mas doentes, disse a referida professora que esta palavra vinha do inglês pacient e que, por isso, seria de evitar.

Não é bem verdade. Isto é, é de evitar estar doente, claro, mas não há razão para evitar o uso do vocábulo.

Como adjectivo, paciente significa «o que sabe esperar», único sentido que lhe foi atribuído naquela reportagem. Como substantivo, além de «indivíduo que espera calmamente» (veja-se a definição no dicionário de António Houaiss, por exemplo), significa também «aquele que está doente».

Paciente vem directamente do particípio presente do verbo depoente (um verbo depoente é um verbo que tem forma passiva – em Latim a voz passiva tinha uma morfologia própria – mas sentido activo) latino patior, que significa «sofrer». Portanto, paciente é aquele que sofre. O mesmo se passa com o seu cognato, o nome paixão (passio, passionis), na acepção que encontramos quando falamos da paixão de Jesus Cristo.

Neste contexto, não nos estamos a referir a nenhum amor, mas, sim, à expressão do seu sofrimento; também o nome passos é da família de patior, num mesmo contexto religioso, na expressão Senhor dos Passos. Não se chama assim à imagem de Cristo que passeia ou que dá passos (pois assim seria do nome latino passus, passus), mas sim ao Cristo que sofre, dado que passus, passa, passum é o particípio passado do mesmo verbo patior.

O que acontece, infelizmente, na maior parte das vezes, é termos de ser pacientes quando somos pacientes de alguns médicos…

* Doutorada na área dos Estudos Clássicos, é professora na Universidade do Algarve e, actualmente, também directora da Biblioteca.Traduziu diálogos de Platão, escreveu livros de aventuras para jovens (sobre as aventuras do Hércules) e variados artigos na sua área de investigação. Escreve regularmente na imprensa daquela região.

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