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Quarta-feira, Março 27, 2024

A canalha dourada

Mendo Henriques
Mendo Henriques
Professor na Universidade Católica Portuguesa
Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa
Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa

Confrontado com o escândalo dos “Documentos do Panamá” o sr. Ramón Fonseca, de 64 anos, banqueiro, novelista, presidente do “partido panamenho” no seu país, co-associado da Mossack Fonseca, e um grande traste, respondeu: “Há duas maneiras de ver o mundo. A primeira é ser competitivo e a segunda criar mais impostos“.

Para já, há uma terceira maneira. É dar um pontapé nesta canalha dourada – incluindo a Mossack Fonseca – que tomou conta dos destinos do mundo ocidental e que nos faz passar por menores aos olhos do resto do globo.

Mas vamos por partes

O que haverá de comum entre Putin, o rei Saud, o presidente Macri , o primeiro-ministro da Islândia, os familiares de  Xi Jining, e pelo menos mais 140 políticos, entre os quais 12 actuais ou antigos chefes de Estado ou de Governo, além de empresários, actores e jogadores de futebol, que se aproveitam das técnicas de fazer dinheiro em off-shores para fugir ao fisco em mais de 200 países ou territórios?

Cometeram ilegalidades nestas aplicações? O pensamento único dos mercados financeiros dirá que não. Mas o que está em causa não é ser ou não ser ilegal. O que é chocante é o que foi legalizado: o roubo organizado dos povos através dos off-shores.

Praticaram subornos, peculatos, abusos de poder, concussão, favorecimentos pessoais, tráfico de influências? Mais escandaloso do que ser contra a lei, é uma lei escandalosa que não permitirá ir muito longe neste caso.

E mesmo se crimes não existiram, nem tudo o que é legal é lícito. Ser ético não é cumprir a lei mas sim criar a lei certa para benefício de todos.

Ora os documentos revelados pelo ICIJ desde 3 de Abril mostram como centenas de personalidades usam paraísos fiscais para fugir ao fisco e criar empresas fantasmas de lavagem de dinheiro.

Então, sabemos onde reside o mal. Dinheiro sujo. Dinheiro não declarado. Dinheiro não tributado. Dinheiro subtraído ao investimento social. Dinheiro roubado ao Estado Social. Dinheiro que nos faz a todos mais pobres do que já somos.

É uma história com barbas

A canalha dourada mundial descobriu há dezenas de anos que os ocidentais têm técnicas de multiplicar o dinheiro. E aproveitam-se enquanto se riem de nós, ocidentais que vendemos a corda com que outros que tais nos enforcam.

Niklas Luhmann explicou em A política da sociedade (2000) que as sociedades ocidentais operam em vários sistemas, cada qual com seus valores. Na política, esse meio é o poder legítimo das eleições; na economia, é o dinheiro, desejavelmente transparente; no direito, é a justiça, desejavelmente imparcial; na ciência é o conhecimento insuspeito nas unidades de investigação.

Até aqui, tudo muito limpinho. A sociedade seria uma máquina. Mas uma sociedade é também uma comunidade viva. Tem um rosto, um propósito, tem um carácter, tem uma ética, um princípio que ao mesmo tempo mobiliza esses sistemas e os mantém autónomos.

Foi com esse propósito de vida em comum para benefício de todos, que o ocidente criou grandes códigos de conhecimento, legalidade, democracia e honestidade que estão na raiz dos subsistemas em que (sobre)vivemos. Foi a esse propósito que o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação deu vida.

colarinhoMas é esse bem comum que é pisado pela canalha de colarinho branco que apaga as fronteiras entre conhecimento, legalidade, democracia e honestidade e deixa à solta a ganância humana.

Desde que Sutherland falou em 1939 dos “crimes de colarinho branco” que se estuda como a riqueza conduz a mais crimes que a pobreza. E com a festa dos paraísos fiscais e do dinheiro roubado ao investimento social, vem a orgia da corrupção e a violação dos valores.

Aí temos as empresas a comprar decisões políticas e sentenças judiciais; os políticos a obter favores de juízes, empresários e cientistas. Empresários, políticos, cientistas, juízes, académicos,  todos se deixam comprar. Em Roma, tudo se vende, escreveu o poeta Juvenal. No Ocidente, também, e sobretudo aos inimigos.

Enquanto não reconhecermos o princípio judaico-cristão que exige ao Estado respeitar o mais humilde dos cidadãos, não vamos a sítio nenhum. Enquanto esquecermos que estas coisas foram ditas por uma equipa que dá pelos nomes de Goethe, Cervantes, Morus, Camões, Shakespeare, Dante, Victor Hugo, Melville, e tantos mais, não vamos a sítio nenhum.

Na nossa arrogância e condescendência de ocidentais, supomos que o mundo vai abusar dos nossos sistemas maravilhosos e deixar-nos a alma intacta. Não vai. E a nossa alma já está quase perdida.

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