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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Carta da prisão

Conto a minha história na esperança que me oiçam. Sou apenas um exemplo de todos os saharauis. A minha voz serão estas palavras. 

Carta da prisão
Prisão El Arjat, Rabat, Marrocos

Conto a minha história na esperança que me oiçam. Sou apenas um exemplo de todos os saharauis. A minha voz serão estas palavras.

Sou Sidi Abdallah Abahah, tenho 42 anos de idade e sou saharaui. Quando eu nasci, o meu país era uma colónia espanhola. Depois de ser abandonado pela Espanha foi invadido por Marrocos pelo norte e pelo sul pela Mauritânia. A Frente Polisário liderou a luta contra o ataque da Mauritânia, e passados quatro anos, a Mauritânia assinou um acordo de paz que reconhece o direito do povo saharaui e o seu estado. Enquanto isso, Marrocos continuava a  invadir o território.

Após 16 anos de guerra entre a Frente Polisário e Marrocos, as partes assinaram o acordo de cessar-fogo, que deveria ter culminado na celebração do referendo da autodeterminação do povo saharaui em 1991.

Até 1991 eu vivi no meio da guerra, vi o meu pai morrer e muitos dos meus familiares. Pessoas vivas foram atiradas de aviões e outras enterradas vivas em valas comuns. Muitos dos meus familiares nunca os vi porque fugiram, quilómetros a pé, até à Argélia escapando aos bombardeamentos de fósforo branco e napalm. Aí, no deserto da morte, a Hamada, construíram campos de refugiados. No início dos anos 80, Marrocos começou a construir o primeiro muro, que nos anos seguintes se ligou com outros cinco, de modo a construir em sete ano o maior muro militar do mundo; um muro de 2.720 quilómetros que divide o Sahara Ocidental de norte a sul e garante a sua ocupação. O muro é uma ameaça diária para a vida dos civis saharauis: crianças, pastores e até mesmo gado. Tem mais de 200 mil soldados, tem tanques, drones, satélites tudo o que possam imaginar e  de um lado e outro a maior extensão de minas terrestres e o maior número de minas per capita.

Em 1991 a Polisário estava a ganhar a guerra e foi negociado um cessar-fogo sob os auspícios das Nações Unidas. Acreditámos que em breve teríamos a nossa liberdade, a nossa pátria e os nossos recursos naturais, que em breve seriamos capaz de viver em paz e juntos.

Infelizmente passa ano após ano sem que o Reino de Marrocos honre o acordo, e as autoridades marroquinas continuam a desrespeitar os direitos, a dignidade dos saharauis, submetendo todos diariamente à mais vil ocupação e pilhagem dos nossos recursos naturais. Homens, mulheres, crianças e idosos são espancados, torturados e violados pela polícia marroquina e militares. Somos vítimas de apartheid social, económico e político, nossas famílias vivem separadas entre os campos de refugiados saharauis de Tindouf e os territórios ocupados do Sahara Ocidental.

Fui obrigado a emigrar ilegalmente para poder ganhar a vida. Não estudei, odiava a escola onde todos os dias os saharauis são discriminados, onde as crianças são obrigadas a cantar o hino marroquino, onde nos espancam e chamam saharauis imundos. As escolas parecem quartéis militares, não têm cor, não têm alegria, rodeadas de carrinhas de intervenção da polícia que à saída maltrata a seu bel prazer as crianças saharauis.

A minha viagem em patera (bote clandestino) foi igual ao que vêem todos os dias nas vossas televisões: o frio, o medo, as ondas, a polícia marítima.

Cheguei a Espanha, país que me vendeu, me abandonou como a todos os saharauis, o país que durante anos nos roubou e que agora teve a oportunidade de me explorar como mão-de-obra barata. O ciclo não tem fim. Trabalhei no campo, nas obras, na hotelaria, sempre com a ânsia de voltar para a minha terra, para a minha família. Tive que “pedinchar” o direito a papéis de residência ao mesmo país que durante anos nos obrigou a ser espanhóis e agora nos recusa a nacionalidade.

Em 2005 iniciámos a intifada pacífica e continuámos a ser torturados, sequestrados, tudo o que possam imaginar mas o silêncio internacional, o isolamento absoluto manteve-se até hoje.

Passados anos regressei a El Aaiun, voltei para a minha família com mais de trinta anos, sem filhos, sem mulher, sem futuro.

No dia 10 de Outubro de 2010, eu e mais de 30.000 saharauis iniciamos o acampamento de protesto de Gdeim Izik no Sahara Ocidental, nos arredores de El Aaiun; este acampamento pacífico manteve-se até à madrugada de 08 de Novembro, quando as autoridades marroquinas desmantelaram o acampamento violentamente. Durante todo o tempo em que estivemos no acampamento tentámos negociar uma solução pacífica com o governo marroquino. Em 24 de Outubro as autoridades marroquinas quebraram o cessar-fogo, assassinando Nayem Elgarhi, um saharaui de 14 anos e ferindo sua irmã e outros dois saharaui. Noam Chomsky, chamou ao acampamento protesto de Gdeim Izik, o início da Primavera Árabe.

Participei neste acampamento e no rescaldo do brutal desmantelamento, após o qual centenas de saharauis foram detidos, as autoridades marroquinas sequestraram-me e o meu calvário nas mãos da justiça marroquina começou.

Sofri todo tipo de torturas. Vinte homens armados entraram na casa no dia 19 de Novembro de 2010, às 12h00, estava a tomar chá, quando eles vieram levaram-me para um lugar (eu não sei qual), onde fui posto numa sala com 25 polícias e  torturado sem interrupção durante oito horas. Por dias, semanas, meses, fui torturado de todas as formas possíveis que se possa imaginar, sem roupa, com os pés descalços, sem comida ou água. Eu fui colocado na posição “Dajaja” (como um frango grelhado), fui espancado e eles colocaram-me de gatas…, … proibido de beber ou comer durante vários dias, enquanto me queimavam com cigarros e me regavam com água gelada e pressionavam um pano com lixívia no nariz e boca. Punham cigarros na minha boca e fui repetidamente molestado sexualmente. Era continuamente ameaçado com estupro; fui submetido a torturas físicas e psicológicas e tratamento desumano durante meses. As algemas de plástico nos meus pulsos e tornozelos provocaram cortes profundos, de que ainda tenho as cicatrizes. Penduravam-me pelos pés, de cabeça para baixo. Os insultos eram constantes, bem como as humilhações. Os guardas “regavam-me” com urina e óleo de latas de sardinha. Estive em isolamento, sem luz, nu, sendo flagelado, impedido de dormir e espancado nas solas dos pés.

Sou um dos 21 detidos do chamado grupo de Gdeim Izik, e fomos condenados em Fevereiro de 2013, num tribunal militar em Rabat. Fui condenado à prisão perpétua. E aí os observadores que assistiram ao nosso julgamento do primeiro ao último dia, por vezes 16 horas seguidas, viram as marcas das nossas torturas e assistiram quando o meu companheiro Laaroussi ficou com a roupa encharcada em sangue das feridas que tinha em pleno tribunal.

A minha história de vida é semelhante à de todo o meu grupo: todos nós fomos torturados, sofremos todos as maiores humilhações.

O nosso julgamento foi uma farsa, nenhuma das acusações pode ser provada, todas as acusações foram baseadas nas confissões obtidas sob tortura. Obrigaram-nos a colocar a nossa impressão digital nas confissões quando nós não assinávamos. Estamos agora na prisão El Arjat em Rabat, e as nossas sentenças variam de 20 anos à prisão perpétua. Eu tenho perpétua acusado de profanação de um cadáver que nunca vi, acusado de um crime que nunca poderia cometer.

Os observadores internacionais que estavam presentes no nosso julgamento testemunharam em primeira mão todas as violações da lei neste processo.

Neste momento estamos de novo a ser julgados, desta vez num tribunal civil que não é mais que uma segunda versão do primeiro.

Além do nosso grupo existem dezenas de presos políticos saharauis, cujo único crime é ter participado em manifestações pacíficas, exposto a nossa bandeira nacional ou ter entoado slogans exigindo a autodeterminação do Sahara Ocidental. Nós não aceitamos o plano de autonomia de Marrocos como uma solução; sabemos que eles não honram qualquer compromisso, por isso, vamos para as ruas todos os dias exigindo a nossa terra, a nossa liberdade. Homens, mulheres, crianças e idosos estão diariamente nas ruas exigindo os seus direitos.

Todos os presos políticos saharauis são submetidos a tratamento desumano, eles estão espalhados por várias prisões em Marrocos e no Sahara Ocidental.

Desde o início de 2014 vários presos políticos saharauis fizeram greves de fome, não temos nada a perder, as condições das prisões e o tratamento desumano são abomináveis, bem como a falta de atendimento médico após longos períodos de torturas e também para os presos que têm doenças crónicas.

Todos sabem que somos inocentes, mas estamos condenados ao silêncio, ignoram-nos mês após mês, ano após ano.

Eu conto a minha história na esperança de que possa denunciar a nossa situação, precisamos da ajuda da comunidade internacional para ser a nossa voz uma vez que estamos condenados a ficar em silêncio. A minha história é apenas uma e queria apelar para que rompam este silêncio.

Nós não cometemos nenhum crime, não atacámos ninguém, somos pessoas pacíficas com um desejo e uma vontade única, o nosso direito à nossa terra, à nossa liberdade. Somos a última colónia de Africa, vós portugueses, africanos, timorenses, conhecem a guerra, conhecem a ocupação, conhecem o sofrimento, precisamos da vossa ajuda.

Que deus vos bendiga

Sidi Abdallahi Abahah

 

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