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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Da ilha da água onde se morre de sede

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

DO AVESSO

Não há muitos lugares onde a contradição seja tão marcada: o Sri Lanka é uma ilha robusta, verde e autêntica, onde a chuva é muito comum e a população parece viver numa paz interior que contagia, ouvindo-se a palavra Theravada[1] em cada passo.Mas as contradições são evidentes: a abundância das chuvas não equivale à abundância de água potável e as populações sofrem grandes restrições. E a sua pacificidade é quebrada na mobilização permanente do exército que recebe ordens da capital, Colombo, e que, sobretudo, teme os (autodenominados) tigres Tamil, ou Tigres de Liberação do Tamil Eelam (uma organização política armada que pretende a autodeterminação do povo desse nome, mediante a criação, no nordeste da ilha do Sri Lanka, de um Estado independente.

A campanha deu origem à Guerra Civil do Sri Lanka, um dos mais longos conflitos armados da história recente da Ásia e quase coincidente com em data com a tomada de poder dos khmers vermelhos no Camboja, de que resultou o assassinato de muitos monges budistas locais).

Sri Lanka

O Sri Lanka é, ao mesmo tempo, o único País da terra onde o Budísmo, depois de instituído, nunca deixou de vigorar. Ali, as antigas capitais do norte – Anuradhapura e Polonarua – que estão agora desertas e em ruínas, guardam muitos vestígios da devoção dos cingaleses. Mas a contemporaneidade mostra como essas ideias estão vivas – muitos naturais do Sri Lanka entram para a Sangha – comunidade budista de monges e monjas (estas mais raras na atualidade). Tal como entendemos da leitura de Buddhist Sociology, de Nandasena Ratnapala, o Budismo é aqui uma prática de vida, uma estrutura de crença – uma fé viva que molda a existência dos seus crentes, que ultrapassam, no território, 75 por cento da população.

Budistas cingaleses

Cândia é hoje considerada a cidade principal dos budistas cingaleses – e de muitos budistas do Mundo. Situa-se em plena região montanhosa central (zona que parece ser também o abrigo ideal dos esconderijos Tamil). Não longe, situa-se a presença colonial bem patente em construções luxuosas – como o Cinnamon Lodge Habarana, o hotel de cinco estrelas construído no coração da floresta e cujos quartos são individualmente as grandes vivendas dos colonizadores do século XIX. A não muitos quilómetros, a realidade não é a do turista rico: junto ao lago central da montanha, situam-se dois dos lugares mais sagrados do Mundo: o Dalada Maligava, o Templo do Dente[2];e, na margem oposta, Malvata, o grande mosteiro central de Siyam Nikaya, que alberga o maior número de monges da ilha.

Ali, os santuários são sumptuosos, muito coloridos e complexos – e todavia s monges vivem em retiros de grande simplicidade. O turistas são recebidos em locais próprios – e a sua curiosidade maior é sempre obter esclarecimentos sobre a samsara – comummente, ciclos de morte e renascimento – e sobretudo a colocação de dúvidas sobre a experiência insatisfatória da vida e a capacidade – ou não – de alcançar uma nova vida, no renascimento, a reencarnação.

À entrada do mosteiro, destaca-se o grande arco de pedra: determina a separação entre o mundo secular (o da vida quotidiana) e o mundo sagrado do mosteiro. Um portão de pedra e uma roda esculpida, com oito raios, oito vias sagradas recomendadas para a obtenção da liberdade, ou melhor, da libertação das dores da vida do dia a dia. O centro da roda, explicam-nos, é o Nirvana. Em toda a linguagem presente – quando nos falam de meditação, de vacuidade, de luz como fim e objetivo, como paz eterna, só muito remotamente conseguimos transpor conceitos – e práticas para a nossa realidade.

Da Luz e da sua perseguição

Ocorre aqui a frase “Sê verdadeiro na ação; nunca pretendas parecer senão aquilo que és, pois todo fingimento constitui um obstáculo à pura luz da verdade, que deve brilhar através de ti como a luz do Sol através de um vidro transparente.[3]”. Ocorre como sustendo inspirados. Obviamente discutiríamos acesamente as frases, de que Luz se trata, que Verdade falamos? (Isto só para começar). Como foi dito, o título deste trabalho é intencional, quase provocador de uma reação.

Para muitos, Buda é um estádio – e o agente que o atinge. Buda é o iluminado. E a iluminação. Isso parece-nos – mesmo depois de lida a prosa utilitária de Ratnapala – um conceito difícil.

E a dificuldade reside essencialmente em anos de preparação, em escolas, leituras e debates…ocidentais. Não correremos o risco de opor uma barreira que divida o que é Ocidental, de um lado, do que é Oriental do outro. Pois seria falaciosa, dada a complexidade do mundo e do que produziu ao longo da sua já longa história. O que nos chega habitualmente é uma deias de extremos: as civilizações da Ásia Oriental assentam em bases filosóficas, sendo estas rastreáveis a Confúcio, Laozi e a Buda[4].

Entendemos, à maneira europeia, que no uso religioso, iluminação é uma intima associação com as experiências religiosas do sul e leste da Ásia, sendo usada para traduzir palavras do (no Budismo) Bodhi ou satori, ou (no Hinduísmo) moksha. O conceito também tem paralelos na Religião abraâmica (no Kabbalah tradição Judaica, no Cristianismo místico, e no Sufi tradição do Islão).No seu uso secular, o conceito refere-se principalmente ao movimento intelectual Europeu conhecido como Iluminismo, também chamada Racionalismo referindo o desenvolvimento filosófico relatado nas propostas (científicas) dos séculos XVII e XVIII. Impõe-se alguns considerandos.

Quando o eu e a realidade (enquanto construções mentais) são deixados para trás, mais coisas se desvelam tal como são em si mesmas: meandros de correntes de si mesmas. Nos eventos comuns da vida, são encontradas as verdades mais profundas. Somente procurando a realidade última e separada poderemos descobrir que não existe uma realidade separada, que a realidade última se encontra no mais comum da vida. Quão extraordinário é o comum quando experienciado na sua totalidade!

Humanidade antes e depois da luz

No que se refere à Luz, detenhamo-nos: sem grande atrevimento podíamos afirmar que há uma Humanidade antes e depois da luz, a luz real (que não deixa de ser uma luz metafórica, apesar de tudo). Vários historiadores recentes oferecem descrições úteis da transformação cultural que ocorreu desde os tempos das ruas mal iluminadas: os cidadãos trancavam-se nas suas casas, andavam armados e com archotes nas raras saídas, faziam-nos em grupo e cheios de medo. Na longa noite dos tempos, todos os medos se escondiam na escuridão, nesse profundo desconhecido onde os perigos se acolhiam. Na Europa, a introdução progressiva da iluminação pública – primeiro à porta dos ricos, depois nos percursos que elegiam como seus – fazia parte de um movimento mais vasto.

A Revolução Industrial, inglesa, e a Revolução Política francesa operaram um hiato na excepcionalmente intenso na cultura europeia. O século XIX entra, na Europa, sob o signo do desmantelamento das suas estruturas cívicas. Uma Europa arcaica feita de irregularidades, parte-se para novas paixões (que trazem os estigmas das monarquias absolutas e por fim do Iluminismo). Iluminar as ruas da Europa significava iluminar os seus espíritos e conduzi-los a uma nova visão do homem, a uma nova visão de si. A Luz na Europa já não era a temente aparição nos teólogos cristãos dos finais da Idade Média, que reconheciam uma tensão (criativa, mesmo assim) entre a Luz e as Trevas, inimigos essenciais.

O conceito de iluminação a Oriente foi sempre outro. E escutar que a vida é dor e a libertação, pela recusa do que lhe está adstrito, conduz à iluminação, é quase incompreensível para o Homem do Ocidente – que saiu das sombras há menos de 300 anos, eliminando a escuridão sagrada, trocando-a pela luz ténue dos seus equívocos e contradições.

[1] Theravada,  a via da disciplina ou a Escola dos Anciãos. O caminho da auto-redenção. NA prática apenas os monges podem emular o exemplo de Buda – mestre e guia, não um deus – até ao Nirvana, e mesmo entre aqueles poucos o conseguirão nesta vida. Obviamente este trabalho não pretende desenvolver os conceitos do Budismo e as suas várias facetas.
[2] Acredita-se guardar um dente do fundador Siddharta Gautma
[3] KRISHNAMURTI Alcione J. Aos pés do Mestre , seguido de Despertai, filhos da luz! Editora Pensamento, São Paulo, 2006, pág 5
[4] Siddharta Gautma.

A continuação deste artigo será publicada a data a anunciar.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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