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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Do retrato e da ressaca previsível

Pedro Pereira Neto
Pedro Pereira Neto
Académico. Ensina comunicação e jornalismo.

Entre as utopias da igualdade e felicidade colectivas ou as distopias da desigualdade e da exploração de uma parte da Humanidade (e do resto do planeta) por uma outra sua parte, o nosso tempo insiste em reflectir uma imagem pouco simpática resultado da nossa conduta.

Pedro Pereira NetoVem isto a propósito da (agora confirmada) selecção de Donald Trump para candidato republicado às eleições presidenciais norte-americanas. Se é certo que constitui essa escolha, em grande medida, uma questão política interna, não o é menos que o status quo mundial das últimas décadas revela que a política interna norte-americana raramente se detém na respectiva fronteira, interferindo e influenciando os destinos de milhões de pessoas noutras latitudes e longitudes.

Apontado durante algum tempo como a anedota que dificilmente eleitorado algum levaria a sério, as últimas semanas revelaram uma afeição considerável de algum do eleitorado republicano – e, não o sabemos, se não de eleitorado alheio – pelas suas posições políticas, as quais nada têm de ridículo na medida em que parecem representar as de milhões de norte-americanas e americanos.

Acordamos agora – pelo menos algumas e alguns parecem estar a fazê-lo só perante a evidência dos factos – para um país onde o racismo e a misoginia constituem ilustração do sucesso de políticas educativas, cívicas e económicas fratricidas, onde o delírio da auto-afirmação anda demasiadas vezes de mãos dadas com a mais obtusa ignorância, e no qual parece sempre mais fácil discriminar que descobrir.

Por essa razão, Donald Trump constitui não apenas o desastre político que o respectivo partido cultivou sem, responsavelmente, reconhecer fazê-lo: constitui sobretudo a ilustração do perfil de um certo país, cada vez mais orgulhoso do que qualquer adulto teria vergonha em admitir. Não é o presidente potencial que os Estados Unidos da América (do Norte) precisam, mas é certamente o presidente potencial que merecem.

Adicionalmente, quem analisa à distância os valores associados à sua campanha e ao que consta das declarações de quem o apoia pode, com facilidade, encontrar alguns paralelos com as experiências de manipulação de consciência desenvolvidas no passado no mesmo país, no âmbito do esforço de guerra para produzir soldados e espiões perfeitos.

utopia-entropia-distopia

Soando a argumento mal-reciclado de filme B, tudo isto parece demasiado rebuscado para ser tão eficazmente real: parece bastar juntar ódio não-orientado, um inimigo ou opositor definido de modo relativamente infantil, algumas afirmações grandiloquentes sobre uma certa predestinação à salvação, e um sebastianismo que não seria mais risível se viesse vestido de verde e com antenas. Fosse uma obra de Phillip K. Dick, e acreditaríamos sem grande alarme tratar-se tudo isto de uma experiência para demonstrar o quão fácil é manipular multidões pressionando as “teclas” certas.

A verdade, porém, é bastante mais cruel. O que parece ser o candidato perfeito da anterior Confederação, criado numa ficção Las Vegas-esca à qual não falta a mulher-troféu ex-manequim, riqueza sem sustentação material, ou uma fuga “prá-frent’ista” típica do bully apanhado em contradição, é, efectivamente, aquele que muitas e muitos consideram ser o seu representante, aquele em que se revêem, aquele que pensam poder falar em seu nome.

Uma esmagadora maioria do eleitorado republicano crê, assim, viver (e poder vencer) um reality-show. O problema é não saber que este tipo de programa tem um guião, que o vencedor não é escolhido por mérito ou de forma transparente, e que quem perde o concurso não perde apenas um prémio: perderá, com grande probabilidade, tudo, incluindo o país. E na condição de habitante de um país habitual figurante menor em tabuleiros nos quais existem brinquedos com capacidade para vaporizar continentes, temo que a ressaca seja definitiva.

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