Diário
Director

Independente
João de Sousa

Sexta-feira, Abril 19, 2024

Erdogan, a União e os incertos tempos da política internacional

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

Se é verdade que estamos a viver uma época de profundas mudanças estruturais, em todas as frentes, a situação internacional, tal como hoje se apresenta, é clara prova disso.

A guerra-fria, que se seguiu à segunda Grande Guerra, produziu um equilíbrio que foi gerido com grande cuidado e responsabilidade por parte das duas grandes potências hegemónicas, os USA e a URSS. Houve momentos de tensão militar, mas felizmente voltou-se à normalidade. Viveu-se um período de intenso bipolarismo em várias frentes: estratégico-militar (NATO/Pacto de Varsóvia), político (democracias representativas/sistemas políticos orgânicos), ideológico (quadro de referência liberal/quadro de referência socialista) e económico (economia de mercado/economia de plano), incluídas as chamadas zonas de influência.

Um mundo multipolar e em mudança

1989 veio introduzir uma nova geografia política e hoje não temos um quadro claro de referência da política internacional, movendo-se os principais actores num quadro altamente aleatório, em função dos relativos posicionamentos e interesses de momento. Tudo se move a grande velocidade e sem coerência. A delicada situação política na Síria ensina. Nela é visível a complexidade da política internacional e os equilíbrios geoestratégicos. O potencial desestabilizador da Coreia do Norte também. Os ziguezagues da actual Presidência americana igualmente.

O movimentismo de Putin vai-se desenvolvendo ao sabor das fragilidades do lado ocidental. O Reino Unido, com o Brexit, ajudou à festa até que a festa lhe entre pela casa dentro e veja crescer movimentos de Scotexit e de Irexit que acabem com o UK. Uma potência emergente como o Brasil vive um período de perigosa instabilidade. A União Europeia está à prova em vários países, a começar pela França, com o perigo Le Pen, e a acabar com a instabilidade política italiana e com uma, hoje admissível, eventual saída do Euro se o poder passar do PD para o MovimentoCinqueStelle. Esta era uma situação impensável há poucos anos num país sempre na linha da frente do europeísmo.

A questão dos refugiados continua a provocar perigosas ondas políticas no plano interno dos Estados Membros, determinando resultados políticos inesperados (foi o caso do Brexit). Nessa fronteira estratégica que é a Turquia, deu-se um passo gigante para um hiperpresidencialismo com sabor a ditadura e com prováveis ondulações futuras nas suas posições de política internacional. Um país importantíssimo para a União Europeia, agora refém da questão dos refugiados perante um Erdogan temerário!

O hiperpresidencialismo de Erdogan

Erdogan ganhou o plebiscito. Teve à sua disposição meios ilimitados e a máquina do poder, num país que votou em estado de emergência com uma oposição muito fragilizada pela conjuntura. As dúvidas sobre a limpidez do processo eleitoral são, pois, muitas, até pela admissão (contrária à lei) de boletins sem carimbo oficial. Mesmo assim, Erdogan ganhou por uma pequena margem (51,3% dos votos), dividindo o país em dois blocos.

O Presidente ficará com um poder quase absoluto, ficando o poder executivo nas suas mãos, reforçando a influência (agora decisiva) sobre o poder judicial, podendo dispor formalmente de uma formação política ao seu serviço (enquanto líder e omnipotente Presidente da República).

A partir de 2019, mas na realidade a partir de hoje (já que detém as chaves do poder institucional, ainda por cima em estado de emergência), Erdogan detém um poder quase absoluto, podendo gerir as relações internacionais numa lógica movimentista com as ondulações que servirem os seus interesses de momento, para fins internos ou externos.

Em boa verdade, a misteriosa tentativa de golpe foi de imediato aproveitada por ele para anular os quadros intermédios que não estavam alinhados com ele. E fê-lo aos milhares, em detenções ou despedimentos. E não deixa de ser estranho (ma non troppo) que ainda em estado de emergência tenha promovido um plebiscito sobre os seus próprios poderes, uma situação que fragilizou os seus opositores de forma muito intensa quer pelas detenções e despedimentos efectuados quer pelo receio induzido e difuso de outros virem a ser alvo (como já acontecera) das medidas de emergência. E, pelos vistos, a dinâmica referendária poderá continuar com a introdução da pena de morte e com o afastamento definitivo da União Europeia (sua consequência directa, uma vez que a “Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia”, logo no seu art. 2, proíbe a pena de morte). Este afastamento poderá mesmo vir a converter-se em inimizade que, como já aconteceu, funcione como instrumento de coesão interna a seu favor.

Como sabemos, os regimes autoritários precisam sempre de se alimentar com inimigos e ameaças externas. Acresce que poderá ainda aumentar a pressão islâmica e a sua radicalização perante o inimigo laico da União. E acresce ainda o gravíssimo problema dos refugiados em solo turco, resultado dessa negociação hipócrita de Bruxelas, num sinal que, ao mesmo tempo, revelou uma enorme incapacidade política e uma insustentável fraqueza. De resto, a União, exibindo esta fraqueza, expõe-se cada vez mais a injunções oportunistas de terceiros (dele ou de Putin, por exemplo) sobre as políticas internas dos Estados-Membros. E uma União sem um comando político estratégico é fácil presa de lideranças que fazem política internacional com uma lógica movimentista (“guerra de movimento”, para nos entendermos).

Ou seja, a vitória de Erdogan é perigosa para a União, sendo certo que haveria toda a conveniência em contar com a Turquia – como acontece com a NATO – na União Europeia, em especial pela sua excepcional posição geo-estratégica e até mesmo pela existência de um islamismo moderado que pode ajudar a afastar o perigo integralista.

Em suma

O mundo está perigoso e se falta uma cartografia cognitiva para o compreender maior é a dificuldade em o redesenhar politicamente a partir de centros de poder que se estão a mover de forma aleatória, em função do puro exercício do poder e da defesa dos interesses do momento.

Os grandes centros de poder têm responsabilidades perante o destino da humanidade, em todas as frentes, da guerra à destruição do equilíbrio ecológico, à disseminação de desigualdades que afectam a vida de milhões pondo a sua sobrevivência em causa diariamente. Falta grandeza. Como se a vida não exibisse dimensões que todos reconhecem que vale a pena vivê-las, defendê-las e promovê-las à escala mundial.

O mal, a destruição e a injustiça não são obra do destino e por isso podem ser evitados se se promover uma política mais humana e civilizacionalmente mais avançada. A história já demonstrou que é possível derrotar os aprendizes de feiticeiro que usam instrumentos mortíferos sem terem consciência dos efeitos que eles podem produzir… afinal, também sobre si próprios! É cada vez mais necessário que a cidadania tenha um sobressalto cívico e intervenha no espaço público com todas as armas que tiver para defender e promover os nosso valores civilizacionais e culturais.

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a nossa Newsletter. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

- Publicidade -

Outros artigos

- Publicidade -

Últimas notícias

Mais lidos

- Publicidade -