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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Greve dos médicos, dívida pública e outras “insignificâncias”…

António Garcia Pereira
António Garcia Pereira
Advogado, especialista em Direito do Trabalho e Professor Universitário

Essa greve tem por objectivos não apenas a luta por melhores condições de trabalho dos médicos como também a defesa do próprio Serviço Nacional de Saúde.

Como é sabido, as duas organizações sindicais dos médicos (FNAM e SIM), com o apoio explícito da própria Ordem e de diversas associações médicas, não apenas convocaram uma greve nacional para os próximos dias 10 e 11 de Maio como a mantiveram após algumas reuniões com o Ministro da Saúde e mesmo com alguns “rebuçados” de última hora apresentados por este para a procurar desmobilizar.

Essa greve tem por objectivos não apenas a luta por melhores condições de trabalho dos médicos como também a defesa do próprio Serviço Nacional de Saúde.

O termo da possibilidade de imposição de 18 horas de serviço de urgência (e até da realização de até 24 horas consecutivas, com o pagamento dessas 6 horas “a mais”), o respeito pelos descansos compensatórios, hoje permanentemente incumpridos, o fim da negociata do não pagamento dos vencimentos adequados aos médicos (cujo internato da especialidade, recorde-se, dura entre 4 e 6 anos e representa, no mínimo, 54 horas de trabalho por semana, e cujos vencimentos se situam entre os níveis 45 e 62 da Tabela Remuneratória Única da Função Pública, com 115 posições) e das contratações milionárias de empresas prestadoras de serviços médicos, a defesa das carreiras médicas como instrumento fundamental de validação de competências e de formação dos mais novos nos respectivos internatos de especialidade, a defesa e dignificação dos médicos de família (hoje transformados  em autênticos “fazedores de salsichas”) são apenas algumas das reivindicações fundamentais, e justíssimas, dos médicos portugueses.

Em defesa do Serviço Nacional de Saúde

Mas é também, para não dizer sobretudo, a defesa do Serviço Nacional de Saúde que está aqui e agora em causa, pois com médicos extenuados, precarizados, mal pagos e sem carreira, mas obrigados a assumir as responsabilidades inerentes, são os cuidados de saúde aos cidadãos que são cada vez mais gravemente postos em risco, seja porque os que podem, à primeira oportunidade, saem para os hospitais privados (e estes são já mais de uma centena em todo o País!), seja porque os que ficam estão cada vez mais desmotivados, extenuados e sem condições minimamente adequadas de trabalho.

Já agora, convém de igual modo dizer que todas as organizações representativas dos médicos (dos sindicatos à própria Ordem) também se viram recentemente forçados a abandonar a pomposamente denominada “Comissão de Reforma da Saúde Pública Nacional” (criada por Despacho do Ministro da Saúde de 19/09/2016), devido à forma absolutamente incorrecta e quase provocadora como os trabalhos dessa Comissão têm vindo a ser conduzidos, com ostensiva ocultação de informação, e culminando com a absolutamente extraordinária ideia – forjada intencionalmente à margem da Comissão – da integração do Instituto Ricardo Jorge na Universidade de Lisboa, na capital,  e na Universidade do Porto, na sua delegação do Norte.

O trabalho da máquina ministerial

Ora, uma vez convocada a greve dos médicos, logo se pôs em marcha a habitual máquina pró-governamental de contra-propaganda. O ministro da Saúde, Adalberto Fernandes – cujas competências nesta área já eram conhecidas, pelo menos desde que esteve a dirigir o SAMS, ali fazendo obras faraónicas e contratações de prestações de serviços que bem mereceriam a devida averiguação – fez e faz declarações gongóricas de respeito pelo trabalho dos médicos e pelo Serviço Nacional de Saúde, mas a sua prática é exactamente o oposto disso mesmo.

Depois, e já com a greve decretada, atirou com o rebuçado do pagamento tardio e parcial de umas horas de trabalho extraordinário, sem mexer em nada do essencial, “proposta” essa que foi, naturalmente, recusada.

Simultaneamente, os médicos internos, que estão presentemente a fazer o chamado Ano Comum no Centro Hospitalar do Oeste, receberam uma convocatória para irem assinar os respectivos contratos logo “por acaso” no… 1º dia de greve (10 de Maio), sendo que, se comparecessem para tal efeito, o Ministério da Saúde trataria a sua ausência ao serviço não como greve mas como “falta justificada”, e se não comparecessem, ficam sem contrato assinado.

E a Comunicação Social

Por outro lado, a máquina ministerial e a comunicação social ao seu serviço logo começaram a referir também que a greve foi marcada propositadamente para se colar à “tolerância de ponto” decretada pelo Governo para 6ª feira, 12 de Maio, como se aquela não tivesse sido decidida muito antes desta!

E também logo desatam a gritar que, desta forma, os médicos grevistas, com esta forma de luta, irão – vejam bem! – inviabilizar mais de 8.000 cirurgias programadas e de 180 mil consultas de especialidade, as quais, propositadamente e com vista a virar a opinião pública contra os médicos em greve, as administrações hospitalares não trataram de, previamente e com toda a antecedência de que dispuseram, reagendar, muito menos a tempo e eficazmente.

E, como sempre, teremos as televisões ao longo do dia, não a divulgar as razões da greve e a analisar a sério a política de Saúde – e o progressivo desmantelamento do Serviço Nacional de Saúde – do Governo, mas sim a procurar amplificar até ao limite os lamentos e protestos dos desesperados cidadãos que aguardavam há meses por uma consulta que agora ninguém os avisou a tempo que teria de se realizar noutra data.

Se a greve, como está previsto, for por diante e constituir um êxito, logo aparecerão, às horas de telejornais, os “especialistas” e “comentadores” do costume a invectivarem os grevistas, a não dizerem uma palavra sobre as razões da sua luta ou a distorcerem-nas por completo (por exemplo, apresentando-as como meras reivindicações salariais de uns quantos privilegiados que já ganham que se fartam e que não se importam de pôr em risco a saúde e até a vida dos outros só para ganharem ainda mais), bem como a pregarem as “excelências” das parcerias público-privadas na Saúde, da utilização dos tarefeiros e da paulatina deterioração do Serviço Nacional de Saúde.

Enquanto isso… dívida pública

E, entretanto, o que se passa? Entretanto é claro que ninguém se preocupará com verdadeiras “insignificâncias” como o facto de a dívida pública portuguesa ter atingido a soma astronómica de 243.500 milhões de euros, representando 130,4% do PIB e sendo a 3ª pior de toda a União Europeia, a seguir à Grécia (179%) e à Itália (132,6%), com juros anuais de cerca de 8 mil milhões, às taxas mais altas (4,2% em 2017) da mesma União Europeia, cuja média é, no mesmo ano de 2017, de 1,8%.

Ou com a circunstância de a dívida externa bruta (pública e privada) ter atingido em 2016 o montante verdadeiramente brutal de 398.850 milhões de euros, sensivelmente o triplo do que existia quando Portugal entrou na zona euro!

Ou ainda com o facto de o chamado “Programa de Estabilidade 2017-2021”, relativamente aos trabalhadores da Administração Pública – cujas carreiras e salários estão congelados desde 2010 – prever apenas, e somente a partir de 2018, algo que denomina de “descongelamento gradual das carreiras”, e que, em matéria de rendimento disponível, representa para o período 2017-2021 um aumento de apenas 3,7%, isto quando a inflacção prevista para o mesmo período é de 8,9%!

Prestações sociais, Fisco e…

Tudo isto enquanto, em matéria das chamadas “prestações sociais” (como os subsídios de doença ou de desemprego, os abonos de família e o rendimento social de inserção), está prevista em tal Programa de Estabilidade, ainda e sempre para o mesmo período de 2017-2021, uma redução de 18,9% para 17,7% do PIB.

E o Fisco – o mesmo Fisco que se atira como gato a bofe relativamente ao pequeno contribuinte – deixa fugir entre os dedos, e declara-os definitivamente incobráveis, 4,2 mil milhões de euros de dívidas fiscais de grandes devedores…

Mas, claro, enquanto houver “circo” para malhar nos médicos grevistas ou nos elementos do Povo que, contra os discursos da “modernidade” e da “reestruturação”, lutam contra o isolamento e a desertificação do interior, contra o abandono, contra os encerramentos de centros de saúde, de estações dos correios ou de agências da Caixa Geral de Depósitos, nenhum comentador e nenhuma força política, no Parlamento ou fora dele, mostra querer realmente analisar e debater para onde vai verdadeiramente este nosso País.

Em matéria de Saúde. Em matéria de Educação. Em matéria Económica. E sobretudo em matéria de independência nacional, financeira e política.

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