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Quinta-feira, Abril 18, 2024

Liberdade, religião e senso comum

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

O Tribunal Europeu de Justiça instituiu a norma de “neutralidade religiosa” na sua sentença de 14 de Março de 2017 C-157/15 relativo a uma queixa apresentada contra uma companhia privada pelo Centro Belga para a Igualdade de Oportunidades e contra o Racismo.

Estou convencido que se trata de um passo na direcção errada, baseado em conceitos erróneos, podendo pôr em causa de forma abusiva tradições religiosas e culturais e promovendo a mentalidade jihadista.

Sinos e véus

Nascido em Lisboa, passei em pequeno muitos períodos de férias com os meus avós em Barcelos, numa área ao tempo rural. Lembro-me de estranhar o frequente badalar dos sinos; tantos sinos, tão mais sonoros e tão mais frequentes do que em Lisboa, em particular de madrugada. Também me lembro dos véus usados pelas senhoras, especialmente a partir da meia-idade, mesmo quando fora da igreja.

Existia ainda o hábito feminino de usar colares e pulseiras em ouro maciço (muitas vezes representando as poupanças de toda uma vida), geralmente exibindo variados símbolos cristãos. Hoje em dia, esta ostentação de ouro maciço tornou-se rara, embora não faltem versões desta tradição e simbologia cristã com matérias menos nobres

Cinquenta anos mais tarde, quando volto à zona ainda me dou conta dos sinos, agora muitas vezes substituídos por música irritante e repetitiva, os véus tornaram-se no entanto raros. Tanto há cinquenta anos atrás como hoje não passaria pela cabeça de ninguém questionar o direito ao simbolismo religioso inextricavelmente entrelaçado com hábitos culturais e com a sua evolução.

Tradição e mudanças sociais

As normas sociais mudam, e as mudanças geralmente acabam por ser traduzidas no enquadramento legal, por vezes após períodos de agitação social mais ou menos profunda. Voltando à minha experiência pessoal, houve tempos em que mulheres – geralmente turistas vindas de outros países europeus – que praticavam topless nas praias portuguesas eram sujeitas a multas. Tendo em conta a popularidade do fenómeno hoje em dia, duvido que continue a ser esse o caso.

Estas mudanças sociais são fenómenos complexos com os quais os poderes democráticos (executivo, legislativo, judicial e outras instituições modernas) devem lidar com cuidado. Elementos cruciais a ter em conta são:

  1. tradições estabelecidas dentro de determinado grupo ou área e expressas tanto em direito consuetudinário em dinâmicas sociais do dia-a-dia;
  2. senso comum;
  3. conhecimento profissional do problema;
  4. tradução em normas objectivas de direito.

O TEJ falha em todos estes parâmetros. Começa por aceitar um conceito de “véu islâmico” cuja definição não faz, aparentemente aceitando os conceitos truncados dos jihadistas sobre o assunto sem as discutir. Os véus tradicionais usados em Portugal são iguais aos que hoje em dia são associados a mulheres muçulmanas na Bélgica.

Mesmo os vestidos pretos até aos pés combinados com véu que vemos tantas vezes em Bruxelas não são nenhum símbolo de vestuário muçulmano. Lembro-me por exemplo da surpresa genuína demonstrada por um compatriota português pela primeira vez em Bruxelas ao me dizer que “não fazia ideia que havia tantas freiras por aqui”.

Fora alguns detalhes de estilo, os vestidos agora tidos por “islâmicos” são de facto semelhantes aos de freiras católicas.

Na realidade não existe nenhuma base tradicional objectiva que permita caracterizar qualquer desses trajos como “islâmicos” ou construir um argumento religioso (muito menos de discriminação com base na fé) a propósito de um código de trajo que diga respeito a véus ou os hábitos pretos.

Em segundo lugar, o TEJ nunca se refere a tradições estabelecidas ou a qualquer direito consuetudinário como base da sua noção de “neutralidade”. Não é de todo em todo “neutro” obrigar pessoas a abandonar elementos tradicionais ou identitários como anéis, colares, pulseiras, véus, etc. É na realidade uma sentença que interfere grandemente com a liberdade do cidadão e cuja interpretação pode vir a tornar-se um instrumento de luta social jihadista na Europa.

Em terceiro lugar, embora o uso de véus pelo sexo feminino seja comum numa grande variedade de ambientes tradicionais e conservadores comuns  várias religiões, é claro que devemos distinguir atitudes religiosas passíveis de criar problemas profissionais e culturais de atitudes que não têm significado desse ponto de vista.

Fazer jejum durante quarenta dias pode causar problemas profissionais sérios e até riscos a nível de segurança, por exemplo durante a condução. Interromper a sua actividade cinco vezes por dia e exigir um espaço e sistema sonoro específicos para o fazer também são práticas passíveis de criar problemas profissionais e de segurança.

O acórdão do TEJ está formulado de tal forma que impõe aos empregadores a proibição de colares com cruzes ou luas crescentes, ou kippah e uma grande variedade de adereços religiosos absolutamente inofensivos caso ele queira introduzir um código de vestuário que possa não contemplar hábitos ou véus.

Segurança e eficiência

Para além disso a expressão ambígua de “véu islâmico” pode descrever não só os véus normais mas também os véus de ocultação facial que tornam a identificação da pessoa em questão virtualmente impossível. Este é um problema profissional e de segurança que não tem nada a ver com religião. No século XIX em Portugal existiam já decretos municipais proibindo a ocultação facial por razões de segurança pública. Imagino que Portugal não seja um caso único.

Os códigos de vestuário das empresas podem naturalmente ser contestáveis. Existem por exemplos casos em que se impõem saltos a colaboradoras femininas. Esta obrigação é dificilmente aceitável pelos potenciais riscos para a saúde de quem é obrigada a usá-los.

Resumindo, pensamos que o acórdão do TEJ acerca de um assunto tão delicado falha no seu objectivo e em nada contribui para uma resolução pacífica destas questões.

Cada cidadão goza de liberdade religiosa independentemente do peso demográfico e tradição da religião em questão. Todavia, existem infindáveis conceitos e preceitos religiosos.

Se o TEJ aceita sem qualquer tipo de escrutínio todas as pretensões “em nome da religião” vai acabar por ter de lidar com um sem número de situações absurdas. Não existe um “véu islâmico”; existem véus tradicionais usados por senhoras oriundas de várias culturas.

Penso que proibir toda a expressão de atitudes religiosas e tradicionais – tanto as que não são específicas de nenhuma religião em particular (como o véu) como as que o são (crucifixos e luas crescentes) é uma limitação séria da liberdade individual. Deveria ser possível a um empregador tomar este tipo de atitude apenas em circunstâncias e por razões específicas fortes; e certamente nunca em nome da “neutralidade religiosa”.

Para além disso, todas as práticas levadas a cabo em nome da religião devem ser avaliadas em função do seu impacto na segurança e eficiência do trabalho.

Na sua obra-prima em dois volumes “Ascensão e queda dos sistemas políticos” (tradução livre) Francis Fukuyama considera a judicialização da política, tão comum tanto nos EUA como na Índia, como um dos sintomas da decadência política da democracia.

Embora o contencioso jurídico americano e a invasão dos poderes executivo e legislativo pelo poder judicial na Índia sejam problemáticos, penso que a via judicial é necessária para resolver problemas como os aqui discutidos. O problema não é o poder judicial em si, mas a sua actuação com base em bons pareceres técnicos.

O TEJ não o fez quando decidiu considerar todos os véus como necessariamente “islâmicos” e ao misturar questões religiosas com códigos de vestuário, eficácia e segurança no local de trabalho.

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