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Quarta-feira, Abril 24, 2024

Mãe revolucionária

Christiane Brito, em São Paulo
Christiane Brito, em São Paulo
Jornalista, escritora e eterna militante pelos direitos humanos; criou a “Biografia do Idoso” contra o ageísmo.  É adepta do Hip-Hop (Rap) como legítima e uma das mais belas expressões culturais da resistência dos povos.

Mãe revolucionária: notícias em vez de cuecas limpas para o filho nas turnês

…se você mantém negros pobres, brancos, chicanos, coreanos, ou seja lá quem for, uns com o pé na garganta do outro, eles não vão perceber de quem é a bota que pisa no pescoço coletivo“

 

Minha mãe me explicava o que era aquilo,  me dava o discurso do Malcom X ou o de Martin Luther King, dependendo do dia e do tamanho do oponente”.

 

Mary Morello, definitivamente – a mãe de Tom Morello, músico superstar do rap rock – ensinou ao filho, desde cedo, quem calçava as botas que pisoteavam os pobres.

Thomas Baptist Morello nasceu em 1964 no Harlem, bairro nova-iorquino pobre e negro, que sempre viveu em guerra contra a perseguição racial. Particularmente nesse ano, o mundo inteiro enfrentava o crescente ódio racista. Nelson Mandela, ativista negro na África do Sul, foi enviado à prisão, onde cumpriu pena de 27 anos.

Nesse contexto bélico, os pais de Tom formavam um casal incomum. A mãe, Mary, branca e com ascendência italiana e irlandesa, apaixonou-se por Stephen Ngethe, o primeiro embaixador do Quênia nas Nações Unidas. Ngethe lutava pela liberdade do seu país da Coroa britânica; Mary, já com mais de 40 anos, lutava no Quênia (onde morou três anos) e ainda luta hoje, com 92 anos, pela igualdade dos direitos humanos e pela paz.

O casamento durou um ano e Mary resolveu ir viver no seu estado natal, Libertyville, subúrbio ao Norte de Chicago, um lugar predominantemente branco. Mary não teve opção, era professora de história e não conseguia trabalhar no Harlem. Precisava sustentar seu filho pequeno, foi aceita como professora de História dos Estados Unidos e Ciências Sociais no subúrbio de Chicago.

Tom, o filho, enfrentou desde cedo perseguições e bulling, conseguia se colocar a salvo quando corria a informação de que era filho de um “príncipe” negro. Mas não há nobreza ou cargo de alto escalão que elimine o preconceito racial, especialmente porque o pai de Morello era um guerreiro da liberdade, o que significa, quase sempre, ser contrário ao sistema, um subversivo.

“A política já acontece no playground logo no primeiro dia”, declarou Morello sobre o fato de estudar em uma escola de brancos.

Tom Morello, apoiado e conscientizado por Mary da realidade, declarou à revista Alternative Press, muito tempo depois, já famoso como líder da banda “Rage Against the Machine”:

“Quando você é negro na América, você está envolvido em política, querendo ou não”.

Mary consolava o menino que sofria na escola, ao mesmo tempo lhe dava lições de resistência, ensinando a história dos negros, descrevendo a luta dos grandes líderes que viveram e morreram nesse conturbado anos 1960.

Mary Morello estava acostumada a problemas raciais, ela havia participado do Movimento pelos Direitos Civis nos anos sessenta, quando as tensões raciais atingiram seu pico. O movimento foi popularizado por nomes como Malcom X e Martin Luther King. Antes disso,  em 1955, Rosa Parks também ganhou notoriedade e um lugar definitivo como ativista pelos direitos civis depois que se recusou a dar seu lugar no ônibus a uma pessoa branca, como era norma.

Mary Morello também esteve envolvida com a Associação Nacional Para o Progresso de Pessoas de Cor (em inglês, a sigla é NAACP) e com a Chicago Urban League, um coletivo de membros inter-raciais que apoiavam Afro-americanos que chegavam a Chicago vindos do Sul do País. Essencialmente, Mary dedicava-se a ajudar com organização financeira, emprego, educação e empreendedorismo.  Perseguida, chegou a encontrar itens da Ku Klux Klan (grupo racista que executa negros sumaria e violentamente, sem justificativa a não ser o ódio) na sua sala de aula em Libertyville e, até mesmo, uma forca pendurada em sua garagem.

O clima sectário dominante levou à criação de grupos de contra-ataque ao racismo, não só aos negros pobres. Assim surgiu o “Panteras Negros”. Apesar de o partido ter se tornado mais conhecido pelos confrontos violentos do que por sua política e desejo de mudança positiva (um resultado da histórica máquina norte-americana de propaganda), a luta era muito mais ética e abrangente, como explicou Tom Morello:

“…ela não era apenas uma organização Nacionalista Africana. Tinha compromisso com a injustiça econômica e o lance de dividir e mandar, que organizava a sociedade. Como, se você mantém negros pobres, brancos, chicanos, coreanos, ou seja lá quem for, uns com o pé na garganta do outro, eles não vão perceber de quem é a bota que pisa no pescoço coletivo. “

Claramente, a indignação e força da mãe inflamaram Morello. Mary se tornaria uma influência constante, além de consistente fonte de informações à medida que o filho crescia. Como o futuro colega de banda Brian  Grillo (vocalista do “Extra” e “Lock Up” com Morello) observou:

“Ela é a mãe mais legal que qualquer um poderia ter. Quando estávamos na estrada, ela mandava cópias da revista “The Nation” em vez de cuecas limpas.”

Mary abraçou a militância para a vida inteira, sobretudo, jamais saiu do lado do filho, que se tornou um premiado guitarrista, líder da banda RATM (Rage Against  The Machine). A história de Tom é muito longa, Tom é famoso, rico e continua na luta.

Teve álbum inteiro de músicas censurado (“Imagine”, de John Lennon, foi igualmente censurada na época, estava na lista das “proibidas”), enfrentou portas fechadas nas emissoras de rádio do país em 2002, logo após a destruição das Torres Gêmeas (WTC) e a paranoia que tomou conta do país, com a consequente perseguição a migrantes e mestiços.

A RATM lançou seu disco de estreia em 1992, revolucionando o cenário musical com sua mistura única de rap e rock; tornou-se uma das primeiras vozes contra as injustiças sociais crescentes. A dupla que levantava qualquer plateia era formada por pelas guitarras matadoras de Tom Morello e o vocal de Zach De La Rocha, também mestiço, um “chicano igualmente vítima de perseguição racial. Talento e paixão os uniu e une até hoje, apesar de trilharem destinos diferentes atualmente.

Mary nunca escondeu o imenso orgulho da carreira do filho, autor e intérprete de clássicos da resistência. Durante a presidência de George Bush, nos Estados Unidos, Mary tinha já quase 80 anos (nasceu em 1924) e abria os shows do filho. Dizia:

“Olá, meu nome é Mary Morello e quero dizer duas coisas: a primeira é foda-se Bush e a segunda é que tenho o prazer de chamar meu filho, Tom Morello, ao palco”.

Tom Morello no Ocupar LA com a mãe Mary – Outubro de 2011

Participou de movimentos de ocupação, como o de Los Angeles em 2011, sempre com suas bandeiras, atualmente: “Avós pedem paz!”

O mundo seria melhor se as mães, em vez de ensinarem os filhos a baixar a cabeça para toda injustiça sob risco de perder o emprego, colocassem ideias libertárias, críticas e reflexivas nos corações e mentes dos seus descendentes, o que inclui netos.

A autora escreve em português do Brasil

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