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Quarta-feira, Março 27, 2024

Maria Carvalho

Helena Pato
Helena Pato
Antifascistas da Resistência

1926 – 2016

Uma figura histórica do PCP. Militante na resistência, passou à clandestinidade em 1952, e assim permaneceu 23 anos, desempenhando sobretudo tarefas de apoio e de defesa das casas clandestinas. Passou por inúmeras situações em que arriscou ser detectada pela PIDE, mas com inteligência, sangue frio e muita coragem conseguiu sempre iludir a polícia e disfarçar, o que contribuiu para nunca ter sido presa.

Era uma mulher discreta, mas activa e de grande tenacidade, que se manteve fiel aos seus ideais de juventude até falecer, aos 90 anos.[1] 

Biografia

Maria nasceu e cresceu na Nazaré, oriunda de uma família numerosa da média burguesia. Era filha do médico da terra, homem de ideias progressistas, que não cobrava consultas a quem não podia pagá-las, e de uma mulher do povo que, sendo analfabeta, aprendeu por si a ler, a escrever e a contar.

Foi criada em ambiente de conversas animadas e alinhadas sobre a Guerra civil de Espanha e a Revolução Russa; e, em sua casa, o regime fascista em Portugal era objecto de referências diárias. Cresceu no meio de revistas progressistas, como a Seara Nova e a Vértice, cercada de livros, e leu os primeiros Avantes, ainda criança, pela mão de um dos irmãos.

Quando chegou a idade de ir mais longe nos estudos, Maria Carvalho foi viver para casa de uns tios, em Lisboa, para frequentar o liceu. Aí foi colega de Eugénia Cunhal, Irene Dias Amado e Dulce Rebelo. Depois, fez o curso de Educadora de Infância na Escola João de Deus.

A clandestinidade de Maria Carvalho

Fotografia de Maria Carvalho do livro «Álvaro Cunhal e as mulheres que tomaram partido», de João Céu e Silva (ASA, 2006)

Influenciada por um dos irmãos, comunista[2], cedo se entregou à luta clandestina. Em 1949, começou a militar no MUD Juvenil: participava em reuniões e dava apoio material, dactilografando documentos e copiografando-os. Não tardou a ser contactada para entrar para o Partido Comunista. Segundo ela, foi também «motivada pela leitura do Manifesto Comunista e de A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado» que aceitou. Porém, ao ser convidada para ingressar na clandestinidade, pensou nos riscos e nas renúncias que uma tal entrega implicava, mas não demorou a decidir-se. Era então uma mulher disponível e sem encargos. Terminado um período de «quarentena», (habitual no PCP para ocorrerem todos os “cortes”), em finais de 1951, apoiada pelo Pai na decisão, despediu-se da família. Tinha 25 anos, e só voltaria a ver os pais uma outra vez na vida.

Foi no Barreiro, já em 1952, que viveu na sua primeira casa clandestina, (já com identidade e papéis falsos), sendo então responsável pela vigilância da casa e contactando com os vizinhos para, em conversas naturais, afastar quaisquer suspeitas. E tudo se passava como de costume: nas redondezas inventavam casamentos, usavam aliança, falavam do marido, tudo o que fosse mais indicado para dar normalidade a uma vida clandestina.

E dos seus filhos

Só mais tarde, em outra casa e noutra terra, iria conhecer o pai dos seus três filhos, dois rapazes e uma rapariga. O companheiro nunca quis ter filhos: Aconteceu, mas a decisão de os ter foi minha, porque a ele tanto fazia – “isso é contigo, tu é que resolves, os filhos são teus”. Pronto, então os filhos são meus, assumo. Fui eu que escolhi os nomes: José e Joaquim, os nomes de dois dos meus irmãos, e Ana da Paz

Quando nasceu o Joaquim, o PCP considerou mais prudente entregar o mais velho à família. Maria concordou e José, que ainda não tinha dois anos, foi viver com os tios. Depois de uma dolorosa separação, Maria só voltou a vê-lo na Figueira da Foz, (uma única vez, oito anos antes do 25 de Abril), tinha ele 11 anos.

Três anos depois, nasceu Ana, e Maria passou a ter dois filhos a viver consigo. Os meninos estavam isolados, quase não podiam contactar com as crianças da vizinhança porque havia sempre o medo do que pudessem dizer, e estavam limitados no convívio, que era muito esporádico e apenas com militantes do PCP, quando havia reuniões em casa dos pais. Mesmo assim, Maria vivia sobressaltada com a possibilidade de deslizes das suas crianças.

Os filhos dos “funcionários do partido” não podiam frequentar a escola, dado que não possuíam documentos nem registo de morada, o que, neste caso, levou a que fosse ponderada a opção a tomar: ou as crianças iam para junto dos avós (já idosos) – uma vez que uma delas já estava com os tios – ou eram levadas para uma casa de acolhimento e escola, na URSS, onde se encontravam filhos de comunistas clandestinos de todo o mundo.

Maria Carvalho, com o filho mais velho, José, ao colo. Fotografia de “Até amanhã, mãe”, Catarina Pires, Notícias Magazine

Para não separar os irmãos (um de 8 e outro de 5 anos), Maria decidiu pela segunda escolha. Sofreu muito com esta separação, e foi acompanhando o seu crescimento pelas notícias e fotografias que recebia, através dos canais da clandestinidade.

A ida para a União Soviética

Um largo tempo depois de ver os filhos partirem, Maria Carvalho rumou à União Soviética, onde durante um ano

Maria Carvalho na URSS. Fotografia publicada no livro Álvaro Cunhal e as mulheres que tomaram partido, de João Céu e Silva (ASA, 2006)

frequentou a «Escola do Partido». Foi então que esteve, por três vezes, com o Joaquim e a Ana. Numa das ocasiões, em 1966/67, passou férias com eles em Sotchi, já o filho tinha 18 anos e a filha 15. Terminados os dias vividos em comum, novamente a separação e a dor de os deixar[3].

O seu companheiro durante 10 anos, pai dos seus filhos, foi preso e não teve um comportamento correcto, o que a levou, zangada, a ter com ele uma posição severa, mesmo depois do 25 de Abril. Em entrevistas omitia sempre o seu nome. Os filhos tratavam-na por Maria, o que a ela não soava estranho, já que era a forma usada por todos os seus amigos e camaradas.

Mas confessava que a separação – a que a luta política obrigara – lhes deixara marcas profundas [3]. Nenhum dos três filhos aceitou bem a opção da mãe. Mesmo já em adultos, muito depois do 25 de Abril, não compreenderam as suas razões[4]. Porém, nunca as dificuldades com que se confrontou na vida, nem a situação de pobreza da clandestinidade, esmoreceram, em Maria Carvalho, a determinação de lutar pelas ideias em que acreditou desde a juventude[5].

Após o 25 de Abril

Depois do 25 de Abril, Maria Carvalho desempenhou tarefas de organização na Concelhia do Barreiro do PCP, com destaque para as responsabilidades que lhe foram confiadas na abertura do primeiro centro de trabalho desse partido. Assumiu depois tarefas diversas na Organização Concelhia de Almada, integrando durante vários anos a Comissão Concelhia e o seu Executivo.

Em 2016, o Município de Almada, por deliberação unânime da Câmara Municipal, atribuiu-lhe a Medalha de Ouro de Mérito e Dedicação.

Maria Carvalho morreu aos 90 anos, num lar, no dia 28 de Junho de 2016.

Maria Carvalho, em Almada (2005), fotografada por Reinaldo Rodrigues – “Até amanhã, mãe”, Catarina Pires, Notícias Magazine

[1] Com 79 anos, era uma mulher pequenina, hiperactiva, uma «histórica» do PCP, militante orgulhosa. Quem a queria ver era na concelhia do partido em Almada ou na construção da Festa do Avante, empoleirada num escadote a pintar um qualquer mural

[2] António Carvalho, arquitecto, professor da Escola Secundária António Arroio e militante comunista até ao fim da vida, casado com Maria Amélia Carvalho, professora e também militante do PCP.

[3] Os meus três filhos ressentiram-se muito destas separações, acusam-me de os ter abandonado (…) O problema é que eles ainda não se convenceram de que eu optei por um trabalho político, avisada de todas as dificuldades com que me ia deparar. Quando me puseram a questão de passar à clandestinidade disseram logo que tinha de me separar da família, abdicar de quase tudo, passar privações, que corria o risco de ser presa, torturada, até morta. Avisaram-me de tudo isto. E eu, depois de pensar, aceitei, em consciência! E não podia virar costas à luta com a qual me tinha comprometido. (…) Sabia que tinha de fazer aquilo e, garantindo sempre que os filhos estavam bem, o partido estava em primeiro lugar – era como haver sol ou chuva, não dependia de mim.

[4] Os dois filhos de Maria que ficaram na União Soviética adquiriram formação universitária: ele é arquitecto e ela psicóloga. O filho que ficou em Portugal não se formou.

[5] Maria Carvalho afirmava que quando aceitou passar à clandestinidade assumiu consciente as dificuldades da separação total da família, o abdicar de quase tudo, passar privações, correr o risco de ser presa, torturada e até de ser assassinada.

Dados biográficos:

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