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Quinta-feira, Março 28, 2024

Maria do Carmo Medina

Helena Pato
Helena Pato
Antifascistas da Resistência

1925 – 2014

Corajosa antifascista e jurista de reconhecido mérito, a sua vida ficou associada à defesa dos direitos do povo angolano na luta contra o regime colonial fascista. Será lembrada para sempre como a advogada dos presos políticos angolanos do famoso «Processo dos 50». Nascida em Portugal, Maria do Carmo Medina iria, em Angola independente, enveredar por um percurso académico e de jurista, e afirmar-se até ao fim da vida na defesa dos Direitos Humanos.

Biografia

Maria do Carmo Medina nasceu a 7 de Dezembro de 1925, em Lisboa, e desde criança passou por várias cidades, contactando com culturas, costumes e referências, que a marcaram. Até 1938 dividiu o tempo entre Macau e a cidade do Porto, onde viria a concluir o Liceu. Quando regressou de Macau a Portugal, com uma visão alargada do mundo, confrontou-se com um país em pleno fascismo, retrógrado e opressivo[1].

Em 1948 termina, em Lisboa, a sua formação superior em Direito. É na Faculdade de Direito que Maria do Carmo Medina inicia a actividade política. No seu primeiro ano de estudos, junta-se, desde logo, ao pequeno núcleo de estudantes antifascistas; a partir do segundo ano, começa a tomar parte das actividades do MUD Juvenil. A sua militância política ao lado de movimentos da Oposição democrática marcaram-na junto das instituições fascistas portuguesas, muito especialmente da tenebrosa polícia política PIDE. Por subscrever documentos do MUD a pedir eleições livres em Portugal, foi chamada à PIDE pela primeira vez ainda era menor de idade. Depois, terminado o estágio obrigatório na Ordem dos Advogados (com Avelino Cunhal, pai de Álvaro Cunhal), tentou encontrar trabalho em diversos lugares, o que lhe foi negado devido à má informação policial. Por isso, em 1950, não hesitou em partir para Angola e começar lá o seu percurso profissional. Sem conhecer esse país, resolveu em menos de duas semanas fazer as malas e embarcar.

1950, chegada a Luanda

Em Abril de 1950, chega a Luanda, onde inicia a sua actividade como professora no Liceu Salvador Correia e constata, in loco, a realidade de um sistema colonial condenado[2]. Nesse ano inscreveu-se como advogada no então Tribunal da Relação de Luanda e tornou-se a primeira mulher a abrir escritório de advocacia em Angola[3].

Já prestigiada como advogada, participa então em quase todos os julgamentos de presos políticos angolanos e representa-os em inúmeras petições e recursos administrativos dirigidos às autoridades coloniais; intervém em julgamentos em quase todos os tribunais de Angola, elaborando petições e reclamações junto das autoridades administrativas e governativas, predominantemente em representação de funcionários angolanos relegados para as mais baixas categorias do funcionalismo público e na defesa de direitos de propriedade de famílias angolanas[4]. Interpôs recursos junto das mais altas instâncias então sedeadas em Lisboa, como o Supremo Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Militar, Conselho Superior Ultramarino.

Quando foram desencadeadas as primeiras prisões políticas de angolanos, a (ainda) jovem advogada determinou-se em estar ao seu lado na luta contra a opressão colonial. Assim, Maria do Carmo Medina vai destacar-se por uma corajosa intervenção na defesa dos acusados do famoso «Processo dos 50» (um conjunto de três processos políticos, iniciado a 29 de Março de 1959 com as prisões de vários nacionalistas angolanos, terminando em 24 de Agosto do mesmo ano com a última prisão). O princípio da autodeterminação dos povos – na altura já consagrado no Direito Internacional – foi sempre defendido pela advogada, invocando as declarações e resoluções das Nações Unidas e as declarações do Papa João XXIII (O primeiro Papa a reconhecer publicamente o direito de autodeterminação dos povos). Porém, os acusados foram todos condenados à pena mínima de cerca de três anos e máxima de 12 anos.

Maria do Carmo Medina teve então a oportunidade de conhecer e conviver com muito dos mais activos nacionalistas angolanos, e recolher, junto deles, elementos e o esclarecimento que contribuíram para aprofundar a sua consciência dos fundamentos da justeza da luta pela independência de Angola[5]. Aderiu ao MPLA em 1963.

Até 1976 exerceu advocacia em quase todos os Tribunais em Angola.

1975, após a independência de Angola

Quando, em 1975, após 14 anos de luta armada pela libertação, a independência de Angola foi oficialmente proclamada, Maria do Carmo Medina – com a longa experiência acumulada ao lado dos anticolonialistas – foi chamada pelo Estado angolano a participar na elaboração da Lei Fundamental do país (colaborando na redacção do projecto da Lei prevista no Acordo de Alvor), e na Lei da Nacionalidade. Entre Novembro de 1975 e Setembro de 1977 foi Secretária para os Assuntos Jurídicos da Presidência da República Popular de Angola.

Em 1976, adopta a nacionalidade angolana e ingressa na Magistratura, sendo nomeada Juiz do Tribunal Cível de Luanda. Mais tarde, em 1980, é nomeada Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Luanda. Entre 1976 e 1990, colabora no estudo e preparação de diversos importantes projectos de lei e regulamentos nas áreas do Direito Civil, Direito de Família, Registo Civil, Direito Administrativo, Direito Penal, Organização Judiciária e na elaboração de inúmeros estudos e pareceres.

Em 1982, é nomeada Assistente Graduada da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, leccionando a cadeira de Direito de Família e iniciando assim uma assinalável carreira académica no país, chegando a professora titular e a regente da cadeira de Direito da Família. Em 1990, consolidando uma vida repleta de actividade, é a vice-presidente do recente Tribunal Supremo; e, também em 1990, é eleita presidente da Mesa da Assembleia Geral da Associação dos Juristas angolanos. Em 1995 foi eleita presidente da Mesa da Assembleia Geral da Associação Angolana de Mulheres Juristas.

Em 1997 Maria do Carmo Medina é jubilada do cargo de Juíza do Tribunal Supremo.

Em 2005, em colaboração com a Unicef, elabora ante-projectos para o regulamento da medida de prevenção criminal de prestação de serviços à comunidade e a proposta de revisão do código penal na área de protecção dos direitos da criança.

Também se destacou ao nível da produção científica, quase sempre focada nos temas da mulher, da família e dos direitos humanos.

Carreira, prémios e distinções

Teve uma carreira assinalada por diversos prémios e distinções.

Foi homenageada em Luanda, em Abril de 2011, pela Associação 25 de Abril (instituição angolana cuja denominação celebra o fim do fascismo e do colonialismo português). O motivo era homenagear uma figura antifascista e de profundas convicções democratas, além de ter sido a primeira mulher a exercer a advocacia em Angola. Na sua intervenção durante a homenagem, que marcou o ponto alto das celebrações do 37.º aniversário da “Revolução dos Cravos”, Maria do Carmo Medina referiu que, mais do que uma homenagem, a cerimónia foi “um abraço fraterno de bons amigos”. A advogada, professora e defensora dos Direitos Humanos destacou também a persistência de alguns “portugueses progressistas que, desde os anos mais difíceis que marcaram o surgimento do Estado angolano, estiveram presentes e ajudaram a fortalecer os laços de amizade entre os dois povos”.

Maria do Carmo Medina faleceu por doença, em Lisboa, no dia 10 de Fevereiro de 2014, aos 88 anos de idade.

[1] Todo o percurso feito na viagem da minha infância para o Extremo Oriente, a vivência com culturas e raças diferentes, as fortes raízes de amizades que constituí com crianças de outras origens permitiram-me uma visão alargada do mundo e das suas diversas realidades”

Recorda-se de que o ambiente na Faculdade de Direito de Lisboa de então:

”era muito conservador, sendo frequentada na maioria ou por filhos de políticos do sistema ou por jovens oriundos de famílias com o peso da tradição”

[2] Nas aulas, nesse ano lectivo, no Liceu Salvador Correia, apercebe-se do escalonamento racial dos alunos:

A minha primeira impressão sobre a sociedade colonial foi de grande choque. (…) No entanto, só gradualmente me fui apercebendo como o sistema estava montado e toda a dimensão das grilhetas impostas ao povo angolano. Aparentemente era uma sociedade pacífica e ordenada”

[3] Abriu escritório no primeiro andar do prédio da Livraria Lello, em Luanda, onde começaram a afluir pessoas que não encontravam quem as defendesse:

dos poderosos que estavam do outro lado” (…). Tinha como chefe no meu escritório Álvaro Fontes Pereira Galiano, filho da terra, que me levou a conhecer muito melhor a verdadeira realidade do que estava subjacente ao regime colonial”

[4] Não estava apenas perante a situação clamorosa do indígena, mas toda a avassaladora estratégia para desapossar a pequena burguesia angolana dos bens que ainda lhe restavam”

[5] Joaquim Pinto de Andrade, um dos detidos, enviou ao seu irmão que vivia no exterior, Mário Pinto de Andrade, um folheto denunciando a prisão de 50 nacionalistas. A denúncia internacional destas prisões deu então a conhecer ao mundo o que se passava em Angola, desmascarando as autoridades coloniais.

Dados biográficos:

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