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Quarta-feira, Março 27, 2024

A Memória como auxiliar do Futuro

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

leonard-cohen

Vou decorar as letras todas de Leonard Cohen que ainda não sei.

Pior do que discutir o Prémio Nobel para Dylan é ficar sem aqueles que nos fizeram. Cohen é um dos assentos da minha memória – e sim, um dos acentos também –  e olhem que essa, a minha memória, é um anfiteatro muito cheio, até ver.

Não sei se Cohen morreu de emoção, para evitar saber que o Hitler loiro tomaria o poder na América, se o seu coração pars não ouvir os êxitos da Broadway e até os Rolling Stones pontuar a vitória do candidato americano que não interpreta a vontade popular na sua totalidade mas o medo que a alavanca.

Não choro Cohen, judeu de nascimento, budista por opção, canadiano de origem, poeta por destino – porque ele somava os risos como forma de vida – e isso é retemperador, didático e contagiante.

A História como paixão

Quando me licenciei em História não o fiz nem para ter uma “ferramenta” de trabalho – ser jornalista era mesmo a minha prioridade – nem para dar um gosto à família – a maior parte era mais apologista de que não perdesse tempo com esse diletantismo cultural, que não traz dinheiro e até incomoda quem nos rodeia, pela mania de exibir provas materiais e inequívocas dos mais trágicos momentos consumados pelo Homem o que, nas reuniões sociais, cai sempre mal. E sim, a minha avó queria muito, na altura, que eu fosse engenheiro agrónomo, seja lá isso o que for.

Acho que, uma vez mais, fui motivado pela paixão – essa nunca me abandonou nem eu a ela – e por acreditar que só a memória é a verdadeira auxiliar do futuro, em especial num mundo que encolhe os ombros e escolhe o Alzheimer cultural como seu amante mais dileto. A História nunca me abandonou até hoje. Devo-lhe as janelas escancaradas para o entendimento daquilo que somos.

A Ideologia da aceitação

Estive nos Estados Unidos na primeira eleição de Barack Obama e poupo os pormenores se vos disser que já voltei aos Estados Unidos depois disso e que não duvido, enquanto testemunha do que me é dado ver, como a sociedade norte-americana anda perdida, como é quase natural o resultado destas eleições, como os pobres deixam de desconfiar dos ricos para desconfiarem de outros pobres, pois a competição pelo naco de pão é mais realista do que outras batalhas.

Os Estados Unidos ao contrário do que o mundo nota, são mesmo uma reunião de pobres, que engrossam com o seu trabalho e a sua abnegação a grande riqueza que os governa. São, como sempre foram, sustentados pelos estrangeiros que ali procuraram abrigo, onde uma forma de esclavagismo e a atividade criminosa de pequena e grande  escala coabitam.

Sob o ponto de vista das ideologias, o mosaico local enferma de marcas muito definidas: a noção de Democracia que foi sendo delapidada ao longo dos séculos – dos “Pais fundadores”, dos abolicionistas, a este 45º presidente de opereta, racista, xenófobo e ignorante da cultura do seu próprio País -, das marcas mórmones e protestantes que tanto condicionam as decisões, de uma mescla emocional que hispanos, europeus, imigrantes de modo geral, fazem convergir num muito remendado e insípido american way of life.

Para que a sociedade resista, resiste o desconforto

O medo constante da ameaça exterior, que um dia é a comunista, no outro é a presença mexicana, no outro os imigrantes, logo os refugiados, depois o terrorismo que, já foi aliás largamente provado, resulta de apoios muito concretos dos capitalistas norte-americanos, que vivem desses cenários, se possível mantidos à distância do território, para não causar mal estar.

A América dos primeiros tempos de Obama e esta agora piorou. Atamancou-se com algumas medidas provisórias, mas permitiu os extremismos. O extremismo dos responsáveis somado ao extremismo da interpretação coletiva. A ideia de descontentamento instalada nas classes populares que ainda votam, e que não têm formação cultural que permita identificar os inimigos a quem dão a mão, conduz a opções que para alguns de nós são surpreendentes. Mas não o são: quem recorrer à memória perceberá que aquilo que há na história é a escada descendente que conduz à cave onde se aprisionam, momentaneamente, os medos coletivos.

Falando de memória, o Governo desistiu de “privatizar” a Fortaleza de Peniche que assim vai ser retirada da lista de 30 edifícios que vai concessionar parcialmente a privados. A revelação foi feita na Assembleia da República por Luís Castro Mendes, no âmbito do debate do Orçamento de Estado da Cultura para 2017. É uma notícia extraordinária.

Duas notas finais

Deixem-me que acabe por hoje – que a prosa vai tão extensa – com mais dois apontamentos:

  • Faço parte daqueles que trabalham no “Congresso Um Construtor da Modernidade: Lutero – Teses – 500 anos, que pretende refletir sobre as múltiplas dimensões do movimento da Reforma Protestante. É um grande momento anunciado (para Novembro do próximo ano) sobre a emergência da memória. Aliás, neste contexto, ando a ler Eric Voegelin in História das Ideias Políticas, vol. III : Idade Moderna, De Erasmo a Nietzsche, tradução e abreviação de Mendo Castro Henriques, “colega” do Jornal Tornado, a quem saúdo.
  • Finalmente, apesar do lançamento do último disco – numa década, o primeiro – de Sting, vou ouvir Leonard Cohen.

(Ah, é verdade. Cunhal, que esteve preso em Peniche, nasceu em 10 de novembro, em 1913. É só para que a memória tenha alimento e pouco mais.)

PS

“As pessoas costumavam dizer que a minha música era muito difícil ou muito obscura. Nunca decidi que ia fazer música difícil ou obscura. Apenas decidi escrever o que sentia de forma honesta e fico encantado quando outras pessoas se revêm na música.”
Entrevista de Leonard Cohen ao Los Angeles Times (setembro de 1995).

 

Este artigo respeita o AO90

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