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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Memórias cinéfilas – As fotografias e a crónica

José M. Bastos
José M. Bastos
Crítico de cinema

Onde se fala de Jane Russell e se cita Manuel António PinaNa semana passada recordei aqui Jerry Lewis e o Festival de San Sebastián de 1990.

Foi ao visitar os meus arquivos do Festival desse ano que encontrei duas fotos de Jane Russel (1921/2011) que fiz na conferência de imprensa da actriz.

Nesse tempo as coisas passavam-se assim: eu escrevia os textos à mão e depois os funcionários dos ‘Correos de España’ destacados para o Zinemaldia faziam o favor de enviar um fax (que era pago) para a redacção do ‘Jornal de Notícias’ no qual eu tinha o estatuto de ‘colaborador’. Sim, já se tinha passado a fase do telex e já havia fax! No Porto o texto manuscrito era revisto por alguém da secção de Cultura, “composto” pelos tipógrafos do jornal e ilustrado com alguma foto de arquivo que eu tivesse sugerido em post-scriptum à prosa. No ano seguinte registou-se um enorme avanço tecnológico: foi ultrapassado o manuscrito!… Na sala de imprensa já havia computadores com processador de texto (talvez o dw4). Imprimia-se o que se tinha escrito mas o resto do processo era o mesmo: envio do fax e o trabalho de outros na sede do jornal.

Então para que serviam as fotos que eu tirava e que só eram reveladas quando eu chegava ao Porto? Para além do gozo da criação de um arquivo pessoal, algumas eram utilizadas num artigo de balanço publicado mais de uma semana depois de o festival ter terminado.

Por isso, era costume eu ir ao JN e levar umas dezenas de imagens de vedetas de diferentes grandezas que o Manuel António Pina, à época Editor da Ssecção de Cultura, via com particular deleite.

Em Outubro de 1990 cumpria-se este quase que ritual quando o Pina teve um baque: “Olha a Jane Russell”!. E contou-me que a tinha visto no Festival de Berlim dois anos antes. “Já estava assim!.. Agora que me mostraste esta fotografia é que vou escrever a crónica que ando a adiar há muito tempo”.

Passaram-se alguns meses. E em Junho de 1991 saiu finalmente no JN, ‘A Traição de Jane’, que haveria de constar da colectânea “O Anacronista” editada pelas Edições Afrontamento em 1994 e que aqui reproduzo. Uma crónica brilhante, como todas as que o Pina escrevia.

E pronto. Aqui está como duas fotografias que tirei em San Sebastián despertaram a veia criadora do meu muito saudoso amigo jornalista-cronista-poeta-dramaturgo, ou “apenas” escritor, Manuel António Pina, Prémio Camões em 2011 (o ano em que Jane morreu…). Ele morreria em 2012.

“A traição de Jane”

de Manuel António Pina

“Os homens preferem as loiras”, mas eu (que pairava vagamente no penoso limbo da adolescência e que, por isso, talvez não fosse ainda um homem) hesitava. Uma aurícula e um ventrículo batiam por Marilyn, a loira; outra aurícula e outro ventrículo por Jane, a morena. O meu coração fibrilaria não fora então tão juvenilmente grande que nele não coubessem as duas. E não ficasse, como ficava, ainda lugar para a terceira, Maureen, a ruiva. Com a fita de costura de minha mãe media em mim, na imensa solidão dos 15 anos, as misteriosas medidas delas; e escondia a ”Plateia” na pasta, entre os livros e os  cadernos, para ler nas aulas de Geografia. Incapaz de me decidir, ocorrera-me a opção mais sensata: ficar com as três. Afinal quem é que me impedia?

Depois a loira morreu. E, lentamente, com os anos, esqueci, ou julguei que esqueci, a morena e a ruiva.

Até que há três anos, na Kongresallee, em Berlim, encontrei subitamente a meu lado, o lado de cá da vida, a morena. Foi uma experiência terrível (e a cores!). Não estava, como nos meus sonhos, deitada de olhos semi-cerrados, fitando-me languidamente, cabelos revoltos, boca entreaberta; tinha-se sentado pesadamente numa prosaica mesa do «self-service» e sorvia uma mistela qualquer por um copo absurdo, rodeada de uma legião tagarela de «public relations». Era enorme, metida dentro de um casaco de peles indistinto, tresandando a perfume; alguém lhe despejara, dir-se-ia, uma tonelada de laca no cabelo e, sob os cosméticos (meu Deus, eu nunca tinha visto uma camada tão grossa de base!), as rugas tinham-lhe desfigurado o rosto. E que trazia ela debaixo da camisola púrpura, que aquele peito, que dantes arfava em sítios obscuros dentro de mim, parecia rigidamente feito de cimento armado? Escusava bem de ter tido aquela visão! O que eu perdi da inquieta herança da adolescência naquela tarde fria em Berlim! Algo se desmoronou e fiquei irremediavelmente, e desoladamente, mais só e mais pobre.

A morte de Marilyn legou-ma para sempre, belíssima e jovem, descendo descalça as escadas de “Seven years ich, e a sua voz continua a cantar eternamente “My heart belongs to daddy” nos meus ouvidos (ou nuns ouvidos que há dentro dos meus ouvidos); e Maureen, a ruiva, olha-me ainda paradamente, sob um baixo céu irlandês, de dentro de um  fotograma de “Homem Tranquilo” que só me pertence a mim.

 E outras mortes e outros esquecimentos guardam, do mesmo modo, outras imagens de que é feita e desfeita a minha juventude: James Dean chorando, “I’m bad, I’m bad!”; Gérard Philipe sonhando com Gina Lollobrígida; o capitão da «Atalante» afogando-se no balde, tentando beijar a perdida imagem da amada; Lilian Gish sentada à porta de casa com a espingarda na mão, protegendo o inquieto sono das crianças…

Quando, naquela tarde, em Berlim, regressava ao hotel, pensava em “Fedora” de Billy Wilder e no seu segredo; um sonho, principalmente um adolescente sonho de beleza, não é coisa que se roube a ninguém! Eu fora traído por Jane e nunca lhe perdoaria o meu sonho desfeito.

Esta crónica é a minha vingança.

Jornal de Notícias, 5/6/91

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