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Quinta-feira, Abril 25, 2024

O Mundo está perigoso

Carlos Ademar
Carlos Ademar
Mestre em História Contemporânea, escritor e professor na Escola da Polícia Judiciária

europa_1945

Sem alarmismos bacocos, inicio esta crónica com a frase que lhe está na génese: o mundo está perigoso. Dir-se-á que já passámos por fases más e que, com maiores ou menores dificuldades, conseguimos encontrar as melhores soluções para as ultrapassar e seguimos em frente, o que confere com a verdade. No entanto, gradualmente, desde há uns anos a esta parte, a conjuntura foi reunindo condimentos levando-a a assemelhar-se com uma outra que tocou a sociedade europeia no início dos anos trinta do século XX, e que abriu as portas ao mais devastador conflito bélico da história da Humanidade.

As guerras e a Paz

A história da Europa pode contar-se através da história das guerras. Fazendo-o, pouco ficaria por contar. Há, contudo, um lapso temporal em que não se verifica essa coincidência, o período que se seguiu à segunda guerra mundial e que se prolonga até aos dias de hoje.

Não é despiciendo, há cerca de setenta anos que o continente vive em paz, se excluirmos a guerra da Jugoslávia, ocorrida nos primeiros anos da década de noventa. Dir-se-á que foi necessário uma guerra tão mortífera como a de 1939/45 para que a Europa encontrasse o caminho da paz.

Diremos que vinte anos antes, ocorreu a primeira guerra mundial, e antes desta, a guerra desencadeada pela Prússia, que levou à formação da Alemanha e envolveu algumas potências europeias, para ficarmos apenas pelos principais conflitos e mais próximos no tempo. Mas a verdade é que ao longo de séculos, a uma guerra sucedia-se outra mais localizada ou mais generalizada, mas nunca o sangue deixou de correr pelos campos e caminhos da velha Europa.

Por conseguinte, este período em que vivemos é único na história e o seu prolongamento só tem sido possível porque os interesses das nações, que sempre se digladiaram, a partir de meados da década de cinquenta, passaram a ser discutidos à mesa da organização que hoje conhecemos como União Europeia (UE).

Assim, a guerra, dispendiosa e perigosa para os derrotados, perdeu protagonismo neste cenário de entendimento. O sucesso da iniciativa manifestou-se na enorme adesão dos diversos países que ao longo dos anos se foram juntando ao projecto europeu. Deixava de estar em causa o presente e o futuro de um país, mas o do bloco de países que quiseram entrar nesta verdadeira revolução civilizacional que representou, pelo exemplo que deu ao mundo, a União Europeia.

Desequilíbrios

Acontece, porém, que nos últimos trinta anos, uma sucessão de acontecimentos conduziu a um enorme desequilíbrio na UE e no mundo, que nos deve levar a temer pelo futuro. Os factores a elencar são muitos, de distintas origens e complexidades, mas para abordar o tema neste contexto, não podemos fugir aos mais evidentes: o neoliberalismo ou capitalismo selvagem que tomou conta das nossas vidas; a crescente visibilidade dos desequilíbrios Norte/Sul e a instabilidade gerada no Norte de África e Médio Oriente, que originou a fuga em massa das populações para países vizinhos e para a Europa.

Comecemos com o facto de Ronald Reagan e Margaret Thatcher se terem cruzado no exercício do poder nos respectivos países ao mesmo tempo. Tratava-se de políticos fortemente marcados por uma linha económica muito em sintonia com as teorias saídas da Escola de Chicago, encabeçadas pelo nobilizado Milton Friedman, que em oposição às medidas intervencionistas de John Keynes, se pautam grosso modo por uma visão neoliberal, que teve consequências imediatas nas relações entre empregadores e empregados, marcando o início de um retrocesso nas condições de trabalho, como não se via pelo menos desde o fim da segunda guerra.

Esta conjuntura coincidiu no tempo com o declínio do Bloco de Leste, que se desmoronaria no final da década e que, por si só, conduziu a uma enorme retracção das forças de esquerda em todo o mundo. Mesmo a esquerda democrática, que não se revia na prática Soviética, se retraiu como que envergonhada, deixando à direita o espaço de domínio histórico dessa corrente.

Em alguns casos, cederam mesmo na sua prática à doutrinação neoliberal, através da corrente conhecida como Terceira Via, da qual Toni Blair, com o seu Partido Trabalhista, foi o iniciador e protagonista mais destacado. Países houve e há, que continuaram a ser dominados por partidos comunistas não obstante a queda do Muro de Berlim, mas, paradoxalmente aderiram como lapas ao chamado capitalismo selvagem, tornando-se seguidores incondicionais da doutrina não só internamente, como exportando-a para grande parte do mundo através das suas multinacionais, sendo a China um bom exemplo.

O Capitalismo selvagem

O cavalgar constante deste capitalismo selvagem, e selvagem porque não tem freio que o condicione, levou à menorização dos Estados em favor dos mercados, que tudo podem e tudo comandam, ou seja, à menorização da política em favor do poder económico e financeiro. Manda quem tem o dinheiro e obedece quem detém o poder político – o povo não é para aqui chamado. E, claro, fazem-se leis à medida dos interesses de quem manda.

Numa visão mais estreita dir-se-á que quem manda é o povo porque é o povo que vota e elege quem governa; numa visão mais larga, tal não tem correspondência com a verdade. Com os monopólios globais que se geraram e cresceram desmesuradamente nas últimas décadas, deu-se a centralização dos principais órgãos de comunicação social nos grandes grupos económicos, levando à extinção dos jornais e televisões independentes. O povo é sistematicamente bombardeado, subliminarmente ou não, com campanhas maciças que tendem a conduzi-lo a votar como convém aos grupos detentores do poder económico.

O sistema perfeito para este capitalismo selvagem, é conseguir que o cidadão indiferenciado em termos de profissão, condenado por isso a ver o seu esforço de trabalho compensado com o salário mínimo, vote de acordo com os interesses dos seus patrões. E isso está a acontecer hoje, muito por força de uma certa indiferença que foi gerada e se instalou pela acção dessas campanhas propagandísticas que paulatinamente vão obtendo os resultados pretendidos.

Crise económico-financeira

Nunca o mundo viveu uma crise económico-financeira como a que ainda hoje subsiste e é bom lembrar que ela se deu a conhecer em 2008. Decorreram oito anos. Nem a famosa depressão de 1929 demorou tanto tempo a debelar. Entre as duas, outras houve, a mais famosa das quais talvez a de 1987, nos primórdios da implantação deste capitalismo selvagem, como gosto de lhe chamar, ou neoliberalismo, como eufemisticamente é veiculado pela comunicação social certinha e obediente às ordens dos donos.

As crises económicas, em número e gravidade, aumentaram desde então. Não se fala muito deste facto, mas parece-me interessante estabelecer o paralelo entre esta sucessão de crises e a crescente musculação do poder económico-financeiro face ao poder político.

Controlo do destino dos povos

Este cada vez maior controlo do destino dos povos por parte do poder económico-financeiro, este criminoso deixa-andar por parte do poder político, levou ao empobrecimento da democracia, a um alheamento dos eleitores também devido ao alargar fomentado do fosso que os separa dos eleitos. Deu azo, igualmente, a uma globalização da economia completamente ao arrepio dos interesses das populações.

O objectivo é produzir ao preço mais baixo que for possível para que os lucros sejam os mais altos que for possível. E assim se faz. Para isso foi preciso abrir as fronteiras dos países desenvolvidos aos produtos fabricados pelas multinacionais em países subdesenvolvidos. Abriram-se. Foi preciso dar força ao capital, dizem, porque só ele é criador de riqueza e de postos de trabalho, juram. Deslocalizando a produção para países que se encontram no nível de desenvolvimento humano que no Ocidente só encontram paralelo nos primórdios da Revolução Industrial, os custos de produção baixam a 10… vá lá, 5 por cento.

Assim sendo, sem especiais restrições à entrada desses produtos nos países com poder de compra, os do Ocidente, as multinacionais podem até reduzir os preços de venda ao público, 20… vá lá 15 por cento, que ganham sempre muito, muito dinheiro e ao fazê-lo, justificam a globalização.

Há quem diga à boca pequena que a Organização Mundial do Comércio é que regula tudo sem que os Estados estorvem a sua acção. Será ela, e assim as cerca de 500 multinacionais que a compõem, que verdadeiramente põe e dispõe, não só na regulação do comércio e da indústria mundiais, mas também nas políticas que podem interferir no seu desenvolvimento e desta forma, na regulação das taxas alfandegárias e na legislação laboral, que no Ocidente deve regredir para se aproximar o mais possível das condições oitocentistas existentes nos países que estão a produzir a baixíssimo custo o que o mundo rico consome a preços não tão baixos assim.

Fosso entre países ricos do Norte e pobres do Sul

Numa outra vertente do problema, o fosso entre países ricos do Norte e pobres do Sul não se esbateu com a passagem dos anos, bem pelo contrário, terá até alargado pelo retrocesso que as guerras e a instabilidade política, que tocam ou tocaram uma parte significativa destes países, desencadeiam.

A noção da desigualdade existente por parte destes povos, conhecimento que não é possível evitar por força dos meios de comunicação social que chegam hoje onde não chegavam ontem, levam a êxodos contínuos de gente que não se quer conformar ao destino de fome e de miséria a que foram votados onde nasceram, procurando incessantemente aquilo que para eles será o el dourado que bafeja os países do Norte.

Contra tudo e contra todos, muros incluídos com milhares de quilómetros, este êxodo prosseguirá enquanto as diferenças chocantes de qualidade de vida existirem.

Erros da estratégia ocidental

As recentes revoltas populares que ficaram conhecidas como Primaveras Árabes, que ocorreram em países do Norte de África e Médio Oriente, entusiasticamente apoiadas pela quase generalidade dos órgãos de comunicação social do Ocidente, revelaram-se um dos últimos grandes erros da estratégia ocidental de conseguir puxar para a sua esfera de influência esses povos.

Não se aprende com a História, o que faz doer ainda mais a postura dos decisores destas estratégias. Não se pode impor regimes democráticos do tipo ocidental, em civilizações que não conheceram uma revolução das mentalidades, como por cá existiu através da corrente iluminista e consolidada e difundida pela Revolução Francesa. Só ela permitiu a separação entre Igreja e Estado, só ela pôde instituir a separação de poderes, instrumento fundamental para que a Democracia se cumpra.

Enquanto estas condições não estiverem enraizadas nos povos islâmicos, nem vale a pena pensar em qualquer tipo de experiência democrática, porque o resultado só pode ser o que aconteceu na Argélia no princípio dos anos noventa. Aqui a experiência foi feita e o partido fundamentalista ganhou facilmente com a maioria absoluta, impondo de seguida a lei islâmica.

Rapidamente os militares tomaram o poder e a guerra alastrou pelo país durante anos, com alguns exemplos de barbárie a ecoarem nos noticiários do mundo, anunciando a chacina das populações de certas aldeias, onde não ficou ninguém para relatar o sucedido.

Esta memória seria, por si só, suficiente para desincentivar qualquer veleidade de apoiar revoltas que visem a instauração de democracias em países com estas características. Talvez se revelasse mais inteligente canalizar esse apoio para fomentar a tão necessária mudança de mentalidades, através da indução de uma qualquer semente de iluminismo. Havendo vontade e não se tem notado, talvez não fosse assim tão difícil.

A Síria, o Iraque e a Líbia

O resultado das Primaveras Árabes foi a criação de uma enorme instabilidade nos países onde foram tentadas, e no caso da Síria, com um saldo trágico e ainda longe de se adivinhar o fim. Encontra-se em guerra civil há vários anos, com enorme destruição das principais cidades, das estruturas do país e a morte dos seus cidadãos às centenas de milhares.

Acresce que só aqui, vários milhões de pessoas fugiram da guerra e do chamado Estado Islâmico, que se foi instalando onde o aparelho de defesa sírio ruiu ou ficou fragilizado. O mesmo é válido para o Iraque e para a Líbia que viviam agregados pela mão de ferro dos seus ditadores, que ao serem mortos, foi como se desaparecesse a cola que mantinha os povos minimamente estabilizados.

Por estas vastas regiões se estendeu e se mantém a ameaça para o mundo que representa a existência do Estado Islâmico.

Como vimos, para o êxodo tem contribuído a enorme instabilidade gerada por um recrudescer do fundamentalismo islâmico, que o Ocidente não só não tem desincentivado, como tem inflamado, com uma política pura e dura de confrontação bélica, esquecendo-se de o combater pelas ideias, através do recurso a islâmicos moderados com evidente influência nessa importante faixa da população mundial.

Nunca ninguém venceu uma guerra de guerrilha e é disto que se trata, com a desvantagem para o Ocidente, de que esta guerra, sendo de guerrilha, é o inimigo que escolhe onde a quer travar, e o palco pode ser o local onde se faz o quotidiano de cada um de nós. O sentimento de insegurança é real porque o perigo espreita em qualquer canto de qualquer cidade de qualquer país. Ninguém está imune e todos o sabem. As populações estão inquietas e votam em quem lhes prometa segurança e emprego, ainda que demagogicamente, em discursos inflamados de populismo, mas sabemos que surtem efeito.

Chegados aqui, constamos que vivemos uma crise económica sem precedentes, que se arrasta há muito tempo, e, bem o sabemos, quanto esta situação é perniciosa para a cultura de liberdade e da democracia. Assim emergiram as ditaduras dos anos trinta e com elas a guerra.

Focos de emigração e de refugiados

Em contraponto, o capitalismo selvagem vive tempos de glória, apesar de legitimamente poder ser considerado o principal responsável pelas sucessivas crises, muito por força da ganância que nele impera e da liberdade total de que beneficia por falta da regulação dos Estados, que assim abdicaram do seu papel por submissão aos interesses económico-financeiros.

O nível de vida das populações decresce em termos gerais e o desemprego aumenta também por força da globalização desregrada, que conduziu ao encerramento de inúmeras empresas no Ocidente devido à deslocalização das unidades produtivas para sociedades onde os conceitos de férias, segurança social, seguro de trabalho, etc., são desconhecidos.

Juntemos a este clima nefasto os focos da emigração e dos refugiados, dado o impacto que têm nas sociedades ocidentais em crise e conseguimos o caldo que faz florescer políticos extremistas que exploram estas debilidades e conseguem arregimentar apoiantes que vêem a solução dos seus problemas nos discursos demagógicos de ruptura contra a classe política tradicional; contra os estrangeiros que vêm ocupar os empregos; contra os refugiados que vêm consumir recursos que podem ser desviados para outros fins mais proveitosos para os nacionais e que podem mesmo, como os imigrantes, ocupar os poucos empregos que vão surgindo.

Claro que este caldo permite a inclusão no grupo dos ostracizados dos já tradicionais africanos, judeus, muçulmanos, chineses e ciganos, independentemente das suas nacionalidades.

Fascismo e nazismo

Dito isto, pergunta-se: o que nos afasta ainda do fascismo e do nazismo que nos conduziram à segunda guerra mundial? Não falta o racismo, a xenofobia, talvez falte a ideia de expansionismo. Mas como sabemos, esta é a fase que se segue à instalação e estabilização no poder. Primeiro conquista-se o poder e consolida-se, criam-se e difundem-se os ódios necessários para preparar o terreno, seguindo-se o expansionismo, tenha ele a forma que tiver, neste mundo cada vez mais pequeno por força das novas tecnologias, que pode muito bem dispensar a tradicional ocupação dos territórios das populações dominadas.

Até neste domínio não têm que usar a tradicional violência bélica. A verdade é que eles estão aí, quase a entrar-nos em casa. Ouçam o som, ouçam as vozes, sintam o clima de arrepio. Se eles ganharem a força suficiente, e até agora nada os tem impedido, bem pelo contrário, arrombam a porta se nos demorarmos a abrir.

Nota do Director

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