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Quinta-feira, Abril 18, 2024

Não, não somos livres!

António Garcia Pereira
António Garcia Pereira
Advogado, especialista em Direito do Trabalho e Professor Universitário

É que todos nós vivemos hoje uma época em que, a todo o momento e a todo o custo, se procura impor a lógica de que o instantâneo deve prevalecer sobre o duradouro, o superficial sobre o profundo, o espectacular e o primário sobre o reflexivo e o maduro.

A todos os níveis e em praticamente todas as áreas (dos artigos de jornal às teses universitárias, passando pelos mails e demais meios informáticos) se impõem, as mais das vezes sob a mistificadora capa de imperativos técnicos aparentemente neutrais, regras de extensão e de conteúdo sobre as  palavras e os escritos que cada um de nós, na sua área de actividade, possa, queira ou tenha de produzir.

A Era do Vazio

Espalham-se as ideias de que o que é preciso é produzir um “sound bite” tão superficial quanto suficientemente atractivo e impactante para suscitar a atenção instantânea de quem apenas (tres)lê e também de que “ninguém lê” e/ou “ninguém se interessa” por algo de mais profundo, e logo necessariamente mais extenso e mais amadurecido. Chegando mesmo já a existir no léxico das redes sociais, a expressão TLTR, ou seja, “Too long to read” (Demasiado longo para se ler)!!

Apela-se ao que de mais primário e até de mais baixo existe em cada um de nós e rejeita-se tudo o que se aproxime de um apelo à nossa razão crítica.

Small is beautifull?

Tenta impôr-se como normal e até “racional”, por exemplo nas organizações, designadamente as empresariais, que não se podem escrever mails com mais de 5 linhas porque “se assim não for, o chefe nem os lê”. Estipulam-se números máximos de páginas para dissertações e teses universitárias, rejeitando-se à partida aquelas que os não respeitam. Exigem-se apreciações radiofónicas ou televisivas de 30 segundos sobre os temas mais amplos e mais complexos com que diariamente nos confrontamos.

Os campos dos exemplos mais típicos desta lógica – que bem sabem, aliás, ser mais fácil impor-se a cidadãos que não pensam a fundo e reflexivamente sobre as coisas, antes se deixam influenciar e induzir pelo “flash” espectacular do instantâneo e julgam ser livres pelo mero facto de logo poderem lançar numa qualquer rede social a primeira trivialidade ou boçalidade que lhes vier à cabeça – são a Comunicação Social, a Política e até a própria Justiça.

Já nem deveria ser preciso dizer, mas convém sempre relembrar, que não pode ser verdadeiramente livre – embora sempre lhe queiram fazer crer o contrário – quem não tem ganha-pão e está na miséria e na doença; ou quem, apesar de ter um “emprego”, é pobre, é precário, ou é diariamente oprimido, discriminado e perseguido.

O Saber dá lugar à Tudologia

Mas impõe-se dizer igualmente com toda a clareza que também não temos nem Liberdade nem Democracia quando a única coisa que nos pretendem permitir que façamos é colocar, num determinado dia e de x em x anos, um papelinho dobrado em quatro numa qualquer urna eleitoral, ignorando por completo as nossas aspirações, as nossas opiniões e as nossas reclamações no resto dos dias das nossas vidas.

Como não há Liberdade nem Democracia quando a crítica política, fundada e elevada, e o jornalismo de investigação deram a alma ao criador e o espaço público de debate foi por completo expropriado, quer ao cidadão comum, quer simplesmente àquele que pensa de forma diferente, assistindo-se à sua ocupação e utilização, até à náusea, pelos “especialistas” do Poder (entre comentadores e jornalistas que, a maior parte das vezes, até se convidam uns aos outros como “especialistas” para intervir em comentários, debates, designadamente televisivos, conferências e colóquios). E sempre sem que haja um segundo sequer previsto ou atribuído para que possam falar, questionar ou criticar os elementos do Povo, para quem e em nome de quem toda essa legião de “tudólogos” (ou seja, de especialistas em tudo e mais alguma coisa) se arroga ter o direito e a legitimidade – atribuídos por quem? – de falar e de impor os seus pontos de vista e a sua ideologia.

Mas não, também não somos livres quando esse mesmo espaço público é atribuído às chamadas redes sociais e estas (compreensivelmente muito elogiadas pelo pensamento dominante e pelos seus conceitos do “progresso” e da “modernidade”…) são hoje o espaço por excelência igualmente, para não dizer sobretudo, para o desenvolvimento, tão veloz e eficaz quanto impune e irresponsável, da intolerância, do ódio e da cobardia mais inimagináveis. E onde a sociabilidade humana é substituída pela lógica de uma espécie de obrigatoriedade de resposta a tudo o que venha (e cuja omissão é logo sancionada), e a perda da privacidade, da honorabilidade e da selectividade na informação que se quer enviar e receber se pretende impor totalitariamente a tudo e a todos.

O ser e a negação

Não, não somos livres quando toda a chamada “informação” que nos chega através da net é “cientificamente” filtrada, designadamente por meio de algoritmos, pelos grandes interesses económico-financeiros e políticos.

E ainda quando, sob a capa e a protecção da “liberdade de expressão” (aliás apoiada e incrementada numa libérrima jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que, em nome da mesma liberdade de expressão, acha que se pode chamar tudo a outrem, sobretudo se for titular de um cargo público, jurisprudência essa que porventura só começará a mudar quando o mesmo começar a acontecer aos juízes do dito Tribunal…), e sempre sob a protecção da distância física e não raras vezes também do mais cobarde anonimato, se bolçam sobre aqueles que se quer assassinar civicamente, ou simplesmente de quem não se goste ou de quem se discorde, as maiores alarvidades, sem que seja possível travar qualquer debate de ideias minimamente sério.

Dirão alguns, designadamente aqueles que vivem das migalhas que os beneficiários desta Liberdade e Democracia de opereta lhes vão permitindo que apanhem, que ao menos podemos ter liberdade de exprimir livremente e por toda a parte o nosso ponto de vista sem sermos vigiados e presos pela pide, como sucedia antes do 25 de Abril.

Mas se quisermos ver bem as coisas, e uma vez que a liberdade de expressão e de informação é também a liberdade de poder ser ouvido, essa liberdade é hoje apenas a de gritarmos para dentro dum poço, cada vez mais estreito e afunilado, e cada vez mais facilmente escutável e localizável pelas próprias tecnologias que utilizamos, e que são diária e impunemente devassadas por toda a sorte de polícias e de serviços de informações.

A tecnologia traz a liberdade?

Quer tudo isto dizer que essas novas tecnologias não são um enorme progresso tecnológico, que devemos saudar, conhecer e utilizar? Não, não quer de todo dizer tal!

Mas importa compreender, sublinhar e sobretudo começar a discutir a sério, e a tempo, que elas são (apenas) um poderosíssimo instrumento de aceleração do tempo e do espaço e que, tal como a sociedade e as relações sociais estão hoje organizadas, elas estão é a servir para acelerar a superficialidade, o “carneirismo”, o individualismo, a ignorância e a irresponsabilidade, tão necessários afinal para a defesa e manutenção dos grandes interesses económicos, financeiros, políticos e sociais dominantes. E ainda por cima travestidos precisamente de “Liberdade” e de “Democracia”…

Índice Global da Escravatura (IGE), da Walk Free Foundation

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