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Quarta-feira, Março 27, 2024

Nós todos em 2017. Cem anos depois

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões


Tenho dedicado boa parte da minha atividade intelectual ao estudo do ano de 1917. Não de um mês – e alguns são riquíssimos em acontecimentos – , nem de um acontecimento específico – e alguns são tão ricos que fazem esquecer todos os meses antecedentes – mas de todo o ano.

Um dos motivos para o fazer prende-se com o facto de estarmos a chegar a 2017 – e à vontade de entender como chegámos aqui, 100 anos depois, com tantas raivas, frustrações, dúvidas e ameaças entre nós.

Portugal na guerra

Para Portugal, a “crise do pão” (levantamentos populares contra os preços dos cereais e do peso do pão) e a nossa presença na I Guerra Mundial – com contingentes de tropas e com ameaças reais do inimigo em território português, serão nesse ano os acontecimentos mais relevantes. Os portugueses, com o Corpo de Artilharia Pesada Independente – C.A.P.I. – e o Corpo Expedicionário Português atuavam em frente de guerra. Por cá, a muito jovem I República portuguesa procurava autoafirmar-se por todas as formas que pensava estarem ao seu alcance e sofria, depois de eleições democráticas e pacíficas que reconduziram Afonso Costa ao seu terceiro mandato (de 25 de abril de 1917 até 8 de dezembro de 1917), um dos momentos mais sangrentos da sua história: o golpe de estado encabeçado por Sidónio Pais, um major que se nomeou general e que governou em ditadura até morrer (assassinado 376 dias depois de tomar o poder).

A Revolução Russa e Fátima

Ao contrário do que eu pensava, dois dos acontecimentos que, ao longo dos cem anos seguintes mais entusiasmaram as interpretações da História, pouco relevo parecem ter no nosso território na altura em que foram produzidos: a Revolução Russa, que quase incomoda os nossos republicanos e que progressivamente abandona os títulos da imprensa, entusiasmando aparentemente apenas os meios operários organizados; e as “aparições de Fátima” que só anos mais tarde ganharão notoriedade internacional e, em boa medida, relevo nacional de importância.

A Imaculada Conceição continuaria a ser a Rainha portuguesa, confirmada aliás durante o PREC pelo então presidente revolucionário de Abril, Francisco da Costa Gomes; e Nuno Álvares Pereira, o Condestável, era a moeda de troca que, aliás, o Estado Novo muito usaria. Nuno Álvares Pereira foi beatificado em 23 de janeiro de 1918 pelo Papa Bento XV, pelo Decreto “Clementíssimus Deus”, e foi consagrado o dia 6 de novembro ao, então, beato. Iniciado em 1921, em 1940 o processo de canonização foi interrompido por razões essencialmente políticas.

“O país festejava então os Centenários da Fundação de Portugal e da Restauração da Independência e Salazar desejava que a canonização do Beato Nuno se revestisse de uma pompa nunca vista e num ambiente de grande exaltação nacionalista, incluindo uma possível visita papal a Portugal, para que o próprio Sumo Pontífice presidisse às cerimónias da Canonização”. Pio XII recusaria, vendo-se “instrumentalizado” pelo poder português.

É interessante ver que cem anos passados, a Rússia é o que Vladimir Putin quer que seja. O putinismo não passa de um sistema musculado onde grande parte da política e dos poderes financeiros são controlados por siloviki (pessoas com histórico de segurança do Estado, proveniente do total de 22 organizações de segurança governamentais e agências de inteligência, como o FSB, a Polícia e o Exército). Putinismo que se relança agora na crise do médio oriente procurando na Síria uma plataforma para as suas ambições.

Fátima, tornada progressivamente (a partir de 1924) o (chamado) “altar do mundo”, nunca granjeou a unanimidade de opinião dentro da Igreja Católica – mas agora, cem anos depois, o Papa Francisco virá a Portugal – não a Lisboa, mas a Fátima – sancionar um dos momentos controversos da história da sua Igreja, que a fé popular levou para dentro dos seus templos e tradições.

Mediocridade

Há cem anos, bem mais importante do que isto, aquilo que o mundo sofria era a sua absoluta mediocridade: foi então que verdadeiramente se acabou com a paz, como equilíbrio internacional e capacidade de coabitação dos povos em presença. Não tanto por antes se desconhecer a guerra – o homem sempre se afirmou pelo conflito e pela incapacidade congénita de se entender pacificamente – mas porque a Europa, que tinha sido o centro das grandes mudanças, trocou a Paz pela Primeira Guerra Mundial, determinando o futuro e as suas enormes limitações (de que, afinal, ainda hoje somos herdeiros e sofredores de consequências).

A Europa entra em guerra – na I Guerra Mundial – porque quer. Porque cada país tem a ingenuidade de que ganhará com um conflito de grande escala. Porque acredita – cada país repete a crença – de que sairá honrado e vitorioso e provavelmente mais rico.

Os jovens entusiasmam-se, os mais velhos aplaudem, todos crêem que será uma passeata festiva e decisiva que levará algumas tropas fora das fronteiras, trazendo despojos ou mesmo uma nova geografia dos vencedores.

Em julho de 1914 dá-se uma crise internacional (motivada pelo assassínio, em Sarajevo, do herdeiro do trono da Áustria-Hungria, a 28 de junho de 1914), em agosto combate-se e em todos os meses e anos seguintes. Em 1917 (ano do meu estudo) a desilusão está no seu auge: escombros, mortos, feridos, órfãos, o terrível silêncio das terras dizimadas.

Uma Europa distante das transformações russas que se operam em simultâneo (a Rússia fez uma revolução que ambicionava sair da guerra; na sua propaganda terá, à cabeça, a manifestação de ser uma revolução pacífica que, à escala, é mesmo; o sangue virá depois, não muito depois). Uma revolução pois mudou as formas de pensar, sentir e agir (d)as questões políticas, económicas, sociais e diplomáticas. Da Rússia e do mundo.

A polarização da Europa durante o período da belle époque e os impactos resultantes da divisão do continente em dois sistemas de alianças (a tríplice entente e a entente cordiale) no desenvolvimento e consolidação de diversas teorias internacionais de conflito, cavaram a ruína, produziram a Guerra, reviram-se nela. Mas na grande escala, a pequena produção de pensamento e opções é que ditou este descalabro, nomeadamente o papel dos homens, diplomatas, políticos e militares, que tiveram nas suas mãos a decisão da entrada da Europa em guerra.

Cem anos depois, será chegada a altura de olhar para trás e vermos onde começamos a falhar?
Vou tentar fazê-lo, aqui, neste jornal, pensando em voz alta o que, nos últimos tempos, tenho cogitado em voz baixa.

Este artigo respeita o AO90

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