A derrota de Evo Morales, presidente da Bolívia, num referendo que propunha o prolongamento dos seus mandatos na Constituição boliviana, está a ser interpretada como o princípio do fim de um ciclo na América Latina.
Carlos Cué e Javier Fuente analisam para o El País as recentes mudanças políticas naquele continente e acreditam que está a terminar a “era dourada da esquerda”. A par deste desaire político de Evo Morales, o “último moicano da esquerda bolivariana” nas palavras dos autores, a crise económica e as mudanças sociais nos países da América Latina estão a fazer surgir novas mentalidades e exigências. As novas gerações não vão tolerar a corrupção generalizada nem tentações de poder absoluto, defendem os autores.
Depois de ter sido o ponto de partida desta época áurea do “eixo bolivariano” em 2005, agora, a Argentina dá sinais de mudanças, com a derrota do kirchnerismo no passado mês de Novembro: Maurício Macri, liberal de centro-direita do Cambiemos, foi eleito novo presidente do país, com 51,4% dos votos contra o peronista Daniel Scioli, do Frente para la Victoria, com 48,6%.
Três semanas depois, a Venezuela teve eleições parlamentares, em que a oposição a Nicolás Maduro conquistou dois terços dos lugares no parlamento venezuelano. Agora, a Bolívia disse não à possibilidade de Evo Morales ter mais um mandato como presidente, depois de 2019: 51,3% dos eleitores dizerem “não”. Também o chefe de Estado equatoriano, Rafael Correa, que enfrenta oposição interna, já anunciou que não vai recandidatar-se em 2017. No Peru, o ciclo pode ser concluído com a saída de Ollanta Humala e a possibilidade do regresso de Fujimori ao poder.
O Brasil está numa crise económica e política em que o Partido dos Trabalhadores, da presidente Dilma Rousseff, no poder há 13 anos, enfrenta forte contestação e pode não apresentar um sucessor forte da actual chefe de Estado em 2018. Lula da Silva, o ex-presidente do país entre 2003 a 2010, já admitiu em público que pondera recandidatar-se ao cargo. Porém, as denúncias de corrupção noticiadas que atingem o próprio Lula, familiares próximos e outros membros do partido, bem como a continuação da recessão, dificultam o sucesso desse projecto de Lula da Silva.
Depois de nos anos noventa, ter triunfado o liberalismo, e de na primeira década do século XXI ter havido um forte grito anti-neoliberal, os autores da análise para o El País perguntam-se se “há uma guinada à direita”. Aparentemente, os cidadãos latino-americanos apenas querem mais para as suas vidas e tornaram-se muito críticos com o poder político; reconhecem as conquistas dos seus governos, mas não se conformam.
Todos os países têm um ponto em comum: os protestos dos cidadãos exigem mais transparência da classe política, luta contra a corrupção e mudança geracional, isto é, a presença dos mais jovens em cargos importantes. No entanto, o discurso oficial destes governos perante as reivindicações dos cidadãos é o de que se trata de uma conspiração orquestrada pelos EUA, tese da qual os eleitores dão sinais de cansaço.
Outro aspecto que também influenciou esta aparente viragem, defendem os autores, é a queda dos preços das matérias-primas, factor que despoletou a crise económica: entre 2011 e 2015, revelou o El País, a queda dos preços dos metais e do petróleo, gás e carvão, foi de quase 50%. Só no ano de 2015 os produtos energéticos viram os preços caírem 24%.
Durante a “década de ouro” dos Executivos mais à esquerda, entre 2002 e 2012, os níveis de pobreza caíram de 44% para 29%. Os de pobreza extrema caíram de 19,5% para 11,5%, com um aumento forte das classes médicas. A despesa pública também aumentou, o que se traduziu em inclusão social. A UNESCO revelou, por exemplo, que o nível de escolarização das populações passou de 55% para 75%. Esta escolarização traduz-se em populações mais letradas e em cidadãos mais exigentes e menos conformados. E esta nova onda pode arrastar consigo alguns dos Governos.