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Quarta-feira, Abril 24, 2024

O refluxo da esquerda

João Vasconcelos Costa
João Vasconcelos Costa
Investigador e professor universitário (Virologia Molecular), depois dirigente de um instituto de investigação, ensino e cooperação, hoje reformado.

Generosamente, vou usar o termo “esquerda” na sua acepção mais geral do conjunto de pessoas e organizações que se consideram e são tidas como expressão dos variados pensamentos e ações que, nos meados do século XIX iniciaram a luta dos explorados por uma sociedade socialista, sem exploração do homem pelo homem. Consideremos todas as famílias políticas que daí derivaram, incluindo por essa razão histórica a atual social-democracia, associando-lhes ainda a luta anticolonial ou anti-imperialista e os movimentos antissegregacionistas. Até podemos incluir os movimentos cristãos inspirados na teologia da libertação.

Esta esquerda, hoje, está em refluxo, estreitou-se e perdeu perspetivas e impacto. Não se vivem hoje momentos revolucionários, muito menos uma dinâmica global e sustentada de esquerda. É negativo, quanto a isto, a esquerda meter a cabeça na areia.

Desabou o sistema do socialismo de tipo soviético e alguns países da Europa centro-leste seguem políticas quase fascistas. Restaram meia dúzia de países socialistas, sendo que a China é caso de um socialismo bem duvidoso. Na Europa, a grande maioria dos países é governada pela direita e poucos partidos de esquerda têm dimensão razoável, enquanto que muitos trabalhadores atingidos pela pós-industrialização são atraídos pela extrema-direita. Na América latina, a oligarquia colonial-esclavagista, com o seu neoliberalismo extremo, deu golpes sérios na Argentina e no Brasil, ameaça na Venezuelana e até no Equador já podem jogar com um presidente que abandonou a sua linha progressista. Em todo o mundo ex-colonizado desapareceram os regimes nacionalistas e anti-imperialistas.

Também no domínio ideológico houve grandes mudanças. Por um lado, a esquerda radical tem-se cristalizado numa ortodoxia que vai contra a flexibilidade metodológica e de mundivisão que é por natureza a da filosofia, marxista, que geralmente invocam. A riqueza de muita reflexão marxista moderna não passa para a “intelectualidade orgânica” e não tem eco na adequação da ação e da mensagem às mudanças aceleradas na economia, na sociedade, na cultura e no senso comum.

Outra esquerda radical, mais recente, “cool” e intelectualizada, tende a privilegiar causas de identidade mais do que de redistribuição ou propriedade, alinhando também por reformismo de raiz burguesa.

Por outro lado, a social-democracia assimilou o pensamento e práticas do neoliberalismo, num cosmeticamente mais suave social-liberalismo. Na Europa, faz parte do grande reino do pensamento único da UE e joga bem no mundo dos negócios, dos capitais livres, da globalização, do atlantismo militar.

Todavia, não decorre de tudo isto razão para pessimismo, apenas realismo e adequação da luta à situação presente. Também não de ilusões. Não se avançará – pelo contrário, quebrar-se-ão forças – se se puser esperanças numa crise global do capitalismo, sobrevalorizando as suas atuais contradições evidenciadas pela crise de 2007. São contradições que o sistema provavelmente superará, como fez com o conflito entre imperialismos, com a descolonização, com a enorme mudança da tecnologia e da organização do trabalho, com a relação entre capital financeiro e capital industrial, com a resolução de conflitos de protecionismos por via da globalização e da desregulação, etc. Não me parece que já se esteja numa situação de interregno gramsciano, em que o velho já está a morrer.

Recusando uma perspetiva redutoramente determinista do processo histórico, com base apenas nas contradições económicas e na luta de classes, e voltando a Gramsci, tenha-se sempre presente a análise em termos de hegemonia, isto é, a dominação também ideológica da classe dominante, em que ela consegue que a massa relativamente informe e alienada de grande parte das classes exploradas adote como interesses “nacionais” os da classe dominante. E aceitando um “sentido comum” de valores, esquemas mentais, quadros de pensamento que a enfileira na ordem estabelecida, e por via do aparelho ideológico da classe dominante (comunicação social, propaganda política, escola e principalmente universidade, igrejas, indústria do lazer e do desporto, etc.). O grau atual de hegemonia do capitalismo é inédito.

Dito tudo isto, não parecem merecer muita dúvida algumas teses, aqui necessariamente formuladas em termos muito gerais.

  1. No refluxo da esquerda, a atitude desta deve ser a de um recuo defensivo em que tem um papel crucial a unidade ou pelo menos a convergência. Sem esbater objetivos finais diferentes, considere-se que na presente situação são postas em causa conquistas que qualquer pessoa de bem consideraria já uma aquisição civilizacional. Concretamente, é necessário um programa e uma plataforma unitária para a reconstrução do Estado social.
  2. À defesa, correm-se maiores riscos de falta de perspetiva do longo prazo, em suma, de oportunismo. É fase em que é necessário afirmar os grandes objetivos ideológicos e estratégicos, iluminando as necessárias cedências táticas.
  3. No entanto, há que pesar sempre os riscos de uma política, mesmo que progressista, de gestão social(ista) do capitalismo, mormente no caso europeu, com o grande condicionalismo internacional, isto é, da UE, sobre a determinação política e económica nacional. O caso português atual é exemplar no que respeita à incapacidade do atual governo de ir para além da reposição de danos troikianos, preso pela obediência europeia que impede a resolução do problema da dívida e o uso de um défice acima das normas para favorecer o investimento. Esta contradição é a maior ameaça à manutenção da convergência de esquerda.
  4. É urgente e decisivo o combate ideológico, o esclarecimento, a luta contra a desinformação (que já chega às campanhas eleitorais, com as “fake news”), a manipulação e a alienação, para o que se deve explorar todas as potencialidades dos novos meios sociais de comunicação pela “net”. A esquerda deve adotar um novo discurso, moderno, apelativo, correspondendo aos anseios das pessoas, do indivíduo concreto e não só da sociedade abstrata, anseios não só materiais mas também de forma de viver e de estar na família, no trabalho, na comunidade.
  5. É necessário conjugar as especificadas com lições gerais interessantes de cada país ou região. Tem havido experiências pontuais que podem fugir aos arquétipos das forças políticas tradicionais e esquemáticas, experiências que podem ter limitações ou terem sido mal conduzidas, mas que podem abrir caminhos de mudança. Pense-se em Bernie Sanders, no trabalhismo anti-imperialista e desenvolvimentista na América latina, na génese de novos partidos baseados em movimentações inorgânicas, na evolução de ações mutualistas para ação política coerente, na emergência de formas de democracia participativa, etc.
  6. É urgente recuperar para a esquerda o seu eleitorado tradicional perdido para a extrema direita populista. Tem de se analisar as razões de tal fenómeno e ir ao seu encontro, embora muitas vezes essas razões tenham a ver com a manutenção de posições políticas e sindicais já inviáveis no mundo atual. É preciso uma oferta alternativa, que a esquerda nem sempre tem apresentado de forma plausível.
  7. Uma frente de ação popular não se deve limitar ao plano partidário, como em Portugal. Tem de integrar um conjunto forte e variado de movimentações sociais. Há desconfiança em relação à política tradicional e ao funcionamento da democracia representativa. Mais, camadas importantes desfavorecidas não têm representação eficaz no sistema político tradicional da esquerda, nomeadamente reformados, desempregados e em particular os mais qualificados, imigrantes, minorias. Para preencher esse vácuo, é fundamental a ação pedagógica de esquerda para o espírito cívico, participativo.
  8. É necessário o exemplo instrutivo de um novo partido da esquerda moderna. Falar dele será objeto de outro artigo.

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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