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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Os CDRs ou a última resistência catalã

Gemma Nadal, na Catalunha
Gemma Nadal, na Catalunha
Jornalista, Filóloga e Tradutora

São seis da tarde de um dia qualquer da semana, num local barcelonês emprestado por uma associação popular. Na reunião que vamos aqui celebrar, se quiser pedir a palavra, vou ser a Maria, como o resto das mulheres presentes; os homens, por sua vez, vão ser todos o Pep: a situação exige que se recuperem velhos costumes da luta na clandestinidade, de que muitos só temos a memória dos pais e dos avôs ou dos livros de história. Afortunadamente, a franja etária da assembleia de hoje abrange dos vinte e poucos aos setenta e tal anos, o que garante que a experiência de combates passados (contra a ditadura, em associações de moradores, na universidade) possa conjugar-se com batalhas mais recentes e o manejo de saberes actuais, tais como as redes sociais, neste momento uma ferramenta quase indispensável para a chamada à mobilização. No que diz respeito às ocupações dos membros, há de tudo: estudantes, professores, aposentados, operários…

Os CDR criaram-se para garantir a celebração, e a transparência, do referendo pela independência de Catalunha do 1 de Outubro de 2017, razão pela qual na sua origem se chamavam Comités de Defesa do Referendo – nome que remete para os Comités de Defesa da CNT (na base do exército de milicianos durante a Guerra Civil Espanhola) e para os Comités de Defesa da Revolução cubanos. Depois da proclamação da DUI (Declaração Unilateral de Independência) e da suspensão da República Catalã, a 27 e 31 de Outubro de 2017 respectivamente, mudaram o nome para Comités de Defesa da República e adoptaram como objectivo a defesa da República Catalã a partir de posições não-violentas e de desobediência civil, e da organização em assembleias de bairro ou localidade.

A transversalidade é uma das características que melhor definem os CDR: um eixo que abarca diversas idades, origens, classes sociais – com predominância da classe média-baixa e trabalhadora – e filiação política – ainda que com maioria de simpatizantes de esquerda. No entanto, cada CDR é diferente, como são diversos os seus componentes e os espaços onde estão implantados. Essa transversalidade, que se traduz em poder popular e em empoderamento da cidadania, tem feito com que o governo espanhol leve tão a sério o seu potencial mobilizador que já tenha orquestrado, junto com os meios de comunicação ao seu dispor, uma campanha criminalizadora que só parece ter começado.

A criminalização dos CDR iniciou-se com a manipulação das suas acções nos media, de maneira que pudessem ser interpretadas pela população como terroristas, isto é, a criação de um clima favorável para serem utilizados pela direita e esquerda espanholistas como arma contra o independentismo. Quase paralelamente, continuou com a identificação de alguns dos seus activistas e, mais recentemente, com a detenção de oito dos seus membros (todos em liberdade neste momento), uma das quais, Tamara Carrasco, foi acusada do delito de rebelião, castigado com penas de até 30 anos de prisão. As provas incriminatórias contra esta ela são tão insustentáveis (um áudio de 5 minutos, uma t-shirt, uma localização no Google Maps dum quartel da Guardia Civil e uma máscara com o rosto dum dos presos políticos) que teve que ser libertada, ainda que o ministério público já tenha interposto recurso da decisão do juiz e peça para ela prisão preventiva incondicional.

As múltiplas identificações de membros e esta última detenção pesam na assembleia: fala-se de tomar precauções, até por causa de actividades sem mais relevância política que a venda de artigos relacionados com o processo independentista, e cuja receita vai para as caixas de resistência, tão necessárias nestes momentos de endurecimento da repressão para enfrentar possíveis multas e fianças. Contudo, o número de pessoas que assiste às assembleias dos CDR aumenta proporcionalmente ao incremento das medidas repressoras por parte do governo espanhol. A rua não se vai calar.

A assembleia à qual assisto decide hoje o tipo de acções a realizar no dia de Sant Jordi (festa nacional da Catalunha) para aumentar a visibilidade social dos CDR e da causa independentista. Submetem-se as propostas à votação e vota-se. A assembleia é soberana, embora existam uma coordenadora entre localidades e outra nacional. Até a data, os CDR têm realizado intervenções de todo tipo: desde acções de pouco relevo como a colocação de cartazes até cortes de estrada, apoio à greve geral ou convocatória de manifestações. O potencial destas assembleias ainda está por descobrir, motivo pelo qual o governo espanhol utiliza a estratégia do medo para desmobilizar a cidadania. Quem tem pouco a perder e sim muito a ganhar é perigoso por definição.

No dia de hoje existem aproximadamente uns 400 CDRs, muitos fora da Catalunha (Sevilha, Paris, Bruxelas, Lisboa, Londres, Viena, Milão, etc.), e o seu número continua in crescendo. A existência dalguns destes em território espanhol é sintomática do mal estar que se sente em outras zonas do estado. Assim, a leitura da declaração de intenções da conta de Twiteer do CDR Sevilha é muito clara a este respeito: “Queremos que todos os povos da Espanha se unam para lutar por uma República”. Afirmações como esta fazem acreditar na esperança que os CDR possam ir abrindo fendas em todo o estado até conseguir que o poder popular, construído desde baixo, possa vir a questionar o status quo de um país que está a cair numa deriva fascista muito perigosa.

Além da ameaça de represálias policiais como elemento desmobilizador, os CDR defrontam-se também com perigo do desgaste dos seus membros se a situação se prolongar por demasiado tempo e à possibilidade de que elementos mais conservadores, vindos da ANC e do Òmnium (entidades cívicas agora pouco activas, mas que lideraram as manifestações massivas pela independência dos últimos anos), influam na assembleia para continuar com um processo estático (aquele que promovem os partidos da direita catalã, que se movem realmente por interesses de classe e não de país) que só pode permitir o avanço em loop.

A assembleia acaba, os membros saem e dispersam-se. Alguns voltarão no próximo dia, outros daqui umas semanas ou se calhar uns meses; os seus lugares, no entanto, serão ocupados por outros cidadãos em luta pelo poder popular.

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