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Quinta-feira, Março 28, 2024

A Perna Esquerda de Tchaikovski

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

O fascínio de dançar até ao último desafio

Barbora Hruskova, Mário Laginha, Tiago Rodrigues, um piano, uma sapatilha apenas, uma barra, um muro grafitado, enorme quadro de ardósia à moda quase antiga, que é afinal a subversão de todos os espelhos, a luz, e, no somatório dos elementos, um grande espetáculo. Mas também Cristina Piedade (desenho de luz) , Raquel André (assistente de encenação), Marco Arantes (desenho na ardósia), nas funções precisas, pois temos sempre a ilusão de que os espetáculos são (apenas) os seus protagonistas e os equipamentos que requerem. O coletivo é que nos consolida a emoção e a permite.

Barbora Hruskova

O centro, é claro, tem um nome: Barbora – que é a atriz bailarina. A peça orgânica. Sobressaltamo-nos com ela ao longo de todo o espetáculo que na aparência é um monólogo, uma história de vida de uma bailarina em final de carreira. Repito: só na aparência.

O monólogo é aqui um grande diálogo, não só de Barbora com a música e o músico mas connosco. Cada um de nós é aquele envelhecer, com diferentes histórias de vida, lesões ocasionais de um percurso (mais ou menos) exigente. Corpos adaptáveis e submetidos ao peso do tempo, entendendo-se que o segredo reside na forma como conversamos com cada um dos nossos elementos (dos pés à cabeça, passando pelo coração, mesmo o pouco ousado, ao cérebro mais apto ao voo, entenda-se, à dança).

Resistência: A Perna Esquerda de Tchaikovski

A Perna Esquerda de Tchaikovski é também a aprendizagem para uma resistência: dançar é preciso, mesmo quando as pernas já não acompanham a coreografia. Por falar nela, esta é de Tiago Rodrigues que criou um espetáculo  sobre a memória (do corpo, da voz, dos gestos, dos sons), de todas as bailarinas para o público – e o público de bailado, em casos mais generosos, é apenas a vontade de ser todas e todos os bailarinos que aplaude. O trabalho de Tiago Rodrigues foi construído sobre um espetáculo de despedida na Companhia Nacional de Bailado, que encerrava (aparentemente) 30 anos de carreira (de dança) de Barbora Hruskova, cuja frase mais intensa é bem capaz de ser uma que a acompanha há muito: dançar é ser “atravessada pelas tempestades”. Uma coisa próxima de viver, mas com mais intensa luz?

O espetáculo é a memória de um corpo – sob os focos da existência. Daí a importância da complementaridade do desenho de luz de Cristina Piedade. Somos claro e escuro – e sobretudo somos clarões e negritude, somos sol e sombra, somos (ou não somos). É uma forma de entendermos como a as marcas de vida, as marcas da dança, traçaram a dimensão maior de Barbora. Mas o espectáculo – como a vida e todos os espetáculos, afinal – é também a dor. A identificação, a luta, a superação da dor. As lesões ficam, a dor invade-nos. A dor desafia-nos. A dor não nos vence se à dor o contraponto for um lado que a sobreleve.

Podíamos aceitar nestas palavras que o espetáculo é pura nostalgia – desengane-se quem me lê. A vida tem esse fascínio prismático: De acordo com cada momento incidente destaca-se um elemento útil, inútil, desprezado. Somos totalidade. E por isso o espetáculo produz uma corrente de sensualidade, onde rimos, pensamos, emocionamos, trauteamos.

Mário Laginha

A música é outra personagem em cena. Música original (e interpretação) de um dos maiores: Mário Laginha. Aceitamos a especulação: Laginha juntou memórias suas às memórias de Barbora. Porque há momentos cénicos em que os dois se confessam em palco. Depois o casamento é perfeito. Desses casamentos que não se explicam, são um sentido, dança?

Mário Laginha, de repente puxado à cena para atuar, é sobretudo a extensão da música: inorgânico-orgânico, transforma o piano e os sons num elemento transcendente. E serve – pas de deux inusitado  – como apoio de Barbora. É Sigfird, o Afinador de Pianos, desajeitado bailarino, que não conhece dúvidas no meio dos sons mas que nos mistérios do corpos se enreda, como um novo som de passos arrastados e notas desprendidas.

Falar de bailado

A Perna Esquerda de Tchaikovski voltou ao palco. Todas as palmas lhe são devidas. Num país onde se lê muito pouco, que consome muito lixo televisivo e pseudoliterário, que vê cinema comercial ocasionalmente, que se aprisiona em pequenos ecrãs onde escreve com erros utilizando o SMS (a que erradamente chama as SMS, pois é tão somente um serviço, o Short Message Service, coisa curta mas que parece suficiente para tantos), falar de bailado é quase absurdo.

Barbora Hruskova voltou ao palco. Não há palmas que cheguem para saudá-la. É a beleza – que tanta falta faz a um mundo que sofre.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90Fotografia Bruno Simão / CNB

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