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João de Sousa

Quinta-feira, Abril 25, 2024

Populismo, Cidadania e Tecnologia

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

Para onde caminhamos?

A propósito deste tema, fui revisitar os dois sites do “Movimento5Stelle”: o de Beppe Grillo, o líder, e o do próprio M5S. E fui porque, na verdade, este Movimento disputa hoje com o Partido Democrático a liderança em eleições legislativas, encontrando-se (na média de 4 sondagens realizadas entre 31.07 e 13.08) empatados com pouco mais de 27%, sendo certo que, mais à direita, a Lega Nord, juntamente com Forza Italia e Fratelli d’Italia, já ultrapassa qualquer um destes dois partidos.

Assim sendo, o M5S pode legitimamente aspirar à conquista da maioria relativa nas próximas eleições legislativas italianas (previstas para 2018). E, por isso, torna-se verdadeiramente interessante olhar para algumas das propostas políticas que este Movimento vem formulando, não só pelo que já representa em Itália, mas também pela sua novidade: democracia directa; cidadania digital (identidade online reconhecida pelo Estado); referendos sem quorum e propositivos que permitam aos cidadãos propor novas leis sem a intermediação dos partidos; voto aos 16 anos; limitação dos mandatos parlamentares a dois; redução do número de parlamentares; referendo obrigatório quando houver alteração aos Tratados da União Europeia; fim do equilíbrio orçamental como obrigação constitucional; fim do tratado de estabilidade, coordenação e governança da união económica e monetária.

Sobre estas propostas haveria muito a dizer. Mas na visita aos sites encontrei outras coisas verdadeiramente curiosas, pelo significado que têm, como a pergunta insidiosa: qual será o próximo jornal a desaparecer? Ou, mais ainda, “entrevistemos os jornalistas”! Ou, ainda, como o alerta estatutário aos eleitos do M5S: “evitar a participação em talk shows televisivos”, recusar (ironicamente, diga-se) o título de “onorevole” (designação aplicada aos parlamentares italianos), substituindo-o por “cidadã” ou “cidadão”; obrigatoriedade de publicação das despesas mensais dos parlamentares no site do M5S. Atitudes ou decisões que são todo um programa! Que fique claro: os dois adversários principais deste Movimento são o establishment político e o establishment mediático. Sem cerimónia!

Alguns comentários

Há aqui algumas coisas interessantes a comentar, como, por exemplo, a do próximo jornal que irá fechar. Aviso, ou até mesmo ameaça, sabendo-se que o M5S pretende retirar todos os apoios de que a imprensa italiana desfruta. Sendo certo que a crise do sistema político é, para ele, irmã gémea da crise do sistema mediático.

Adivinha-lhes, pois, um fim próximo, a ambos. Tal como à própria função jornalística. A palavra de ordem é, neste caso: “entrevistem os entrevistadores!”, levando-os a meterem os pés pelas mãos, sem saberem o que dizer, para além das perguntas que já levam preparadas. Ou a recusa de participação nos talk shows televisivos, como demonstração clara de desprezo pela exibição mediática, cada vez mais tablóide, em resposta ao crescente ataque que os media estão a fazer ao povo da rede, para não referir a promiscuidade entre poder e media.

Quem me lê, por cá, poderá verificar, in loco, o que digo, olhando para o panorama dos comentadores televisivos que ocupam o prime time, a começar logo pelo famoso “Vidente de Fafe”! Mais promiscuidade do que temos no prime time seria quase impossível. Uns a fazer, despudoradamente, o frete aos outros!

Na verdade, há nisto uma evidente coerência, visto que este movimento considera que o poder mediático é a outra face do poder político. Se aquele é o intermediário da representação social, este é o intermediário da representação política. E para quem defende a democracia directa, ou seja, é defensor de uma progressiva desintermediação da comunicação e da política e de uma cidadania digital reconhecida desde o nascimento, tudo isto tem uma lógica. Beppe Grillo sabe bem do que fala, já que ele próprio foi objecto de um saneamento político da RAI por ter contado uma anedota sobre o poder político de então. Mas, na verdade, a questão é mais profunda e toca o nosso próprio futuro!

Neopopulismo ou populismo tecnológico?

Não se trata de uma exclusiva questão de tecnologia, embora esta, considerando o poder que hoje tem (o poder das TIC), tenha implicações no plano social, na própria base social de apoio do M5S e na gestão do processo democrático. Estando nós perante um fenómeno claramente populista com forte componente carismática, ele não difere, nas suas características gerais, de outros fenómenos do mesmo tipo: recusa da representação e da intermediação orgânica no processo de gestação e de gestão do poder político e comunicacional, substituindo-as por um poder em fluxo directo com o povo (por exemplo, através de um líder carismático).

Mas difere num aspecto: o povo da rede não é igual ao povo do clássico populismo, que começou por ser rural (veja-se o populismo russo da segunda metade do século XIX) e, em geral, pretendia exprimir o grito dos explorados do mundo rural. Este é um povo diferente, que se move com facilidade na rede e usa com desenvoltura as TIC. Por isso, alguns falam de neopopulismo. Mas poder-se-ia falar também de populismo tecnológico, uma vez que é pela rede que este povo se exprime, constituindo-se esta como o canal de gestação e de gestão de todo o processo político. Daí a ideia de cidadania digital institucionalmente reconhecida e a subalternização do velho sistema comunicacional e dos partidos de tipo orgânico.

A tecnologia ocupa, neste sentido, um lugar muito especial, quer pelo referente social que representa quer pelas possibilidades de gestão directa do processo político com subalternização da representação. Daqui também a valorização dos referendos (instrumentos de democracia directa) não só “abrogativi”, mas também “propositivi” e não sujeitos a quorum.

De certo modo, na visão política deste movimento neopopulista, a tecnologia ocupa uma parte importante porque permite precisamente superar os limites da representação, transformando, isso sim, o sistema representativo em mero instrumento auxiliar e subalterno do processo de afirmação de uma democracia directa de matriz tecnológica. Não foi por acaso que por detrás do M5S esteve, e está, uma empresa especializada nestes processos de natureza tecnológica e digital, a Casaleggio Associati, do falecido Gianroberto Casaleggio, número dois do M5S.

Uma divergência preocupante

Não deixa de ser curioso que estes movimentos – e assim é também com o PODEMOS espanhol – coloquem o establishment mediático como alvo tão importante como o establishment político, interpretando – e com eficácia – aquilo que a generalidade dos cidadãos começa cada vez mais a sentir relativamente a eles. E se é verdade que estes dois clássicos mediadores têm vindo a evoluir num sentido claramente tablóide, num caso, e endogâmico, no outro, também é verdade que se começa a notar uma progressiva divergência entre a cidadania mais activa e esclarecida e o establishment tradicional.

Uma divergência que se aprofunda cada vez mais à medida que outros e poderosos actores vão ocupando também esse espaço deixado livre pelas forças políticas tradicionais, como o poder judicial, por exemplo, que se alimenta precisamente da fraqueza do poder político. De resto, o próprio poder mediático já nem sequer se esconde atrás dos códigos éticos, sendo evidente a sua aliança cada vez mais estreita com estas forças politicamente informais que detêm e exibem um poder cada vez maior. A resposta populista, surge, pois aqui, como a única possível perante o esboroar progressivo do sistema político e comunicacional tradicional, já que ninguém parece ser capaz de promover as reformas profundas que se revelam absolutamente necessárias. Isto acontece ao nível das democracias nacionais, mas está também a acontecer com a União Europeia.

Não são fáceis os tempos que vivemos e as democracias vão ressentir-se fortemente desta situação de descontrolo e de impotência do poder político formal. E o populismo, seja de esquerda seja de direita, não é nem nunca será uma boa solução! Com tecnologia ou sem tecnologia!

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