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Quinta-feira, Abril 25, 2024

O referendo na Catalunha e a hipocrisia política

António Garcia Pereira
António Garcia Pereira
Advogado, especialista em Direito do Trabalho e Professor Universitário

A Catalunha é uma nação quase tão antiga como a portuguesa, com uma cultura, uma língua, uma identidade e uma história muito próprias e cujo Povo luta desde há séculos pela sua independência.
Convirá aqui recordar que as Cortes Catalãs foram o primeiro parlamento da Europa que, no século XIII, mais exactamente em 1283, proibiu o rei de criar leis unilateral e autoritariamente. E a independência de Portugal, reconquistada à força a Castela em 1 de Dezembro de 1640, muito deve à luta do povo catalão contra o domínio castelhano, luta essa que teve um ponto alto com a revolta, em 17 de Junho de 1640, aquando da celebração da festa do Corpo de Deus, dos ceifeiros (“segadores”) contra os representantes da monarquia castelhana num combate tenaz que durou cerca de 12 anos e que forçou à divisão das tropas e das forças de Castela.

Ora, aquilo a que temos assistido nas últimas semanas, não apenas em Espanha, mas também aqui em Portugal e igualmente por toda a União Europeia, constitui uma autêntica vergonha e uma demonstração da mais absoluta das hipocrisias.

Referendo na Catalunha: Questão política não jurídica

Desde logo porque se procura fazer passar por meramente jurídica uma questão que é essencialmente política, mas, ao mesmo tempo, manipulando grosseiramente os (completamente secundários) aspectos legais do problema.

Com efeito, o Governo, a Assembleia e a maioria do povo catalão pretendem levar a cabo um referendo para fazer aos seus concidadãos uma simples pergunta: “Quer que a Catalunha seja um estado independente em forma de República?”

O Governo espanhol, chefiado por Rajoy, entende que o dito referendo seria ilegal e, logo, os respectivos resultados seriam nulos do ponto de vista jurídico. Mas, como se vem tornando cada vez mais evidente, o que realmente pretende, e está a tentar levar a cabo, é impedir a própria realização do referendo, silenciar o debate político que ele necessariamente implica e esmagar pela força as justas aspirações à independência do povo catalão.

Mas, mesmo do ponto de vista jurídico, haverá então que sublinhar que ainda que se admita que o artigo 2º da Constituição espanhola (ao proclamar a “unidade indissolúvel da Nação espanhola”) afinal negaria o direito dos vários povos à auto-determinação, o certo é que este mesmo direito está consagrado no Direito Internacional Geral e Comum e em várias Fontes de Direito Internacional (a começar pela Carta das Nações Unidas) que são de grau hierárquico superior à lei constitucional interna.

Depois, o Governo Rajoy, quando tal lhe convém, logo manda as leis, inclusive as constitucionais, às urtigas. E por isso está a impor na Catalunha um verdadeiro estado de sítio sem que o mesmo haja sido formalmente declarado, assim como o cumprimento forçado das suas determinações, mas sem seguir os trâmites previstos no artigo 155º da Constituição espanhola que, entre outros requisitos, exige um requerimento prévio dirigido ao Presidente do Governo da Catalunha e a aprovação daquelas mesmas medidas pela maioria absoluta do Senado. Ou seja, para prender activistas, congelar arbitrariamente fundos, encher as ruas de Barcelona de polícias, ocupar as instalações do próprio Governo da Catalunha, fechar sites na net, invadir sedes de partidos políticos e proferir toda a sorte de ameaças e intimidações, aí as leis já interessam pouco!

Delito de opinião

Porque – sejamos claros – o que está verdadeiramente em causa são os 20% que a Catalunha representa de todo o PIB espanhol e, acima de tudo, o exemplo para outros povos, como o basco e o galego, que a independência da Catalunha representaria…

E não nos deixemos iludir! Nunca nenhum Povo alcançou a sua independência porque quem o dominava assim graciosamente o decidiu. Ao invés, todas as independências (desde as das antigas colónias africanas até às dos Estados Unidos da América e do Brasil) foram conquistadas contra as constituições e as leis vigentes no momento.

Finalmente, todos temos visto como para os pretensos paladinos dos direitos e das liberdades – a começar nos EUA e a acabar na União Europeia – os argumentos da “legalidade” e a invocação do direito à auto determinação e à independência servem e são invocados (quantas vezes artificialmente) ou são negados e violentamente reprimidos simplesmente se e quando convém aos seus interesses estratégicos, políticos e económicos.

Assim, o direito dos povos à auto-determinação e à independência serviram para justificar a destruição da Jugoslávia, a guerra dos Balcãs e a criação de Estados-fantoche, verdadeiras colónias da Alemanha, bem como o apoio descarado aos neo-nazis que ocuparam a Praça Maidan em Kiev e o derrube do Governo Ucraniano.

Nas instituições europeias proclama-se o direito à independência da Bósnia e aceita-se o referendo sobre a independência da Escócia, mas logo se nega esse direito a um povo com uma fortíssima identidade própria desde há cerca de um milénio como é o Catalão?!

E onde a falta de vergonha atinge, entre nós, o seu cúmulo é nas mais altas instâncias políticas (a saber, o Governo e o Parlamento) e na esmagadora maioria da nossa Comunicação Social.

Governantes e parlamentares calam-se perante a ocupação policial, ditatorial e fascista da Catalunha (nisto, como noutras coisas, o Governo de Madrid do PP não se distingue do Governo de Madrid de Franco…). E põe a habitual legião de “especialistas” e “comentadores” a, passando por completo ao lado de todas as reais questões políticas, fazer uma verdadeira “barragem de artilharia” contra o referendo e contra a independência catalã. Perdida a vergonha, vale mesmo tudo – jornalistas, ex-ministros, opinantes, correspondentes castelhanos em Lisboa, todos vêm atacar o referendo e a independência da Catalunha e defender essa absurda teoria de que, estrategicamente, não conviria de todo a Portugal que houvesse 3 países na Península Ibérica.

Claro! Para quem sempre tem vergado aos ditames de Castela, seja nas políticas do Mar e das Pescas, seja nas das águas dos rios internacionais ou na rede ferroviária, seja na vigilância dos mares e das costas, o melhor, o melhor mesmo, é continuar a servir Madrid e a apoiar a sua postura arrogante, autoritária e fascizante para com Barcelona.

Portugal conquistou a sua independência face a Madrid… 1640

Mas, sem sequer ser preciso voltar a recordar 1640, é evidente que o que é importante para o Povo Português é a defesa, sem tacticismos hipócritas, do direito de todos os povos irmãos à sua auto-determinação e independência. E, já agora, que não se mantenha, e muito menos se agrave, uma centralização de poder e um reforço das posturas hegemónicas de Madrid.

Por isso, sem hesitação, daqui envio um forte e solidário abraço e proclamo o meu apoio ao Povo Catalão na sua luta pela auto-determinação e independência. Que, por mais manipulação e repressão que sofra, ninguém conseguirá derrotar!

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