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Quarta-feira, Março 27, 2024

Reflexões em torno do Belo, do Infinito e da Linha Elíptica

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

Filipa Oliveira Antunes (Texto e Ilustrações)
João de Almeida Santos (Texto)

1. ESTAS REFLEXÕES que aqui propomos decorrem da leitura de um livro de Johann J. Winckelmann, “O belo na arte”, e das longas conversas que tivemos acerca de uma afirmação do fundador da História da Arte (1717-1768; 1755-1768 – os anos em que viveu em Roma) que transcrevemos:

“A linha que descreve o belo é elíptica e nela está inscrita a simplicidade juntamente com uma permanente mudança. A linha elíptica não pode ser desenhada com o compasso e muda em cada ponto a sua direcção”[1].

Aqui está. Trata-se de uma observação feita num escrito de 1759: “Advertências sobre a maneira de observar as obras de arte antigas”. Na arte grega, Winckelmann encontrava a passagem obrigatória do percurso estético e do verdadeiro saber acerca do belo (1953: 65). E nas obras de arte gregas esta linha elíptica está bem presente (1953: 62).

Depois, também sabemos que nas igrejas barrocas, como, por exemplo, em San Carlo alle Quattro Fontane, de Borromini – elipse longitudinal como fundamento do barroco, que prolonga o espaço para o infinito -, está inscrita, como sua nervura central, a curva elíptica. Também a Praça de S. Pedro, de Bernini, foi desenhada em elipse transversal, própria do barroco clássico. O símbolo do infinito é, como sabemos, elíptico e está bem ilustrado pela famosa Fita de Möbius.

Desenho da planta (elipse longitudinal, inscrita em duas circunferências de raio igual, cujos centros – dois – organizam o espaço simetricamente) e fachada da Igreja San Carlo alle Quattro Fontane, 1641, de Borromini. Roma, Itália. A linha elíptica insere-se no conceito linear. A elipse barroca é representada na longitudinal ou sentido vertical.  Este posicionamento potencia a convergência do espaço, alongando-o (para o infinito).

 

2. QUE MISTÉRIO É ESTE? Por que razão a linha elíptica exprime, por um lado, o infinito e, por outro lado, o belo? Que relação há entre a linha elíptica, o belo e o infinito? Que o belo tenda para o infinito compreende-se porque, como este (a-peírôn, em grego, precisamente: infinito, sem fim, sem fronteiras), é indeterminado, no sentido em que não é capturável no interior de formas fechadas ou como qualidade emergente do objecto ou obra[2].

Em Kant, por exemplo, na “Crítica do Juízo”, o belo que se exprime no juízo do gosto “deve pretender a universalidade subjectiva”[3], porque está para além quer da dimensão conceptual quer da dimensão meramente sensorial, não tendo limites que o encerrem ou capturem numa forma ou conceito ou numa mera representação.

Galvano della Volpe sintetiza muito bem a mecânica do juízo estético e o sentido da chamada “universalidade subjectiva” de Kant: o juízo estético é “a priori porque universal e necessário (a sua universalidade subjectiva estando fundada na presença, idêntica em todos os sujeitos, das condições subjectivas das faculdades da imaginação e do intelecto)” (1973: 27).

 

3. LINHA ELÍPTICA, Belo, Infinito. Regressando aos gregos – a referência central de Winckelmann – encontramos lá a dimensão ontológica do belo, como diz Hans-George Gadamer, em “Wahrheit und Methode” (1960: 456)[4]: na “função anagógica do belo, que Platão fixou de maneira inesquecível, torna-se manifesto um aspecto estrutural ontológico do belo e, portanto, uma estrutura universal do próprio ser”.

Mas também já na modernidade, como vimos, o belo não seria confinável num conceito ou numa simples representação sensorial, já que ele transcende a dimensão do pragmático, do útil ou do interesse, como mera projecção da vontade, porque remete precisamente para essa “subjectividade universal” que o diferencia do simplesmente agradável, como defendem o Kant da “Crítica do Juízo” (1790) ou o Schopenhauer de “O Mundo como Vontade e Representação” (1819)[5].

Kant refere-se ao belo como a algo “desinteressado” (veja-se também della Volpe, 1973: 26-29) e Schopenhauer a algo que está para além do princípio da vontade. A contemplação do belo situa-se para além do concreto e do singular, porque os transcende:“no objecto (da contemplação) não reconhecemos a coisa singular, mas a sua ideia”.

E também para além do indivíduo concreto: este, como fruidor, situa-se num plano ideal como “sujeito puro do conhecimento” estético (Schopenhauer, 1965: III, 37, 53, 57, §§ 38, 41 e 42). Nem vontade, nem representação, nem conceito, nem qualidade emergente do objecto ou da obra, portanto. É a impossibilidade de captura em formas fechadas que define o belo. E por isso não é o círculo que o descreve, mas a linha elíptica que, como diz Winckelmann, “muda em cada ponto a direcção”.

O belo como que se desprende da obra de arte para uma zona indeterminada onde só a subjectividade estética o pode captar, reflectir, para usarmos a expressão kantiana, lá onde na interpretação sensorial do juízo estético o sujeito se eleva a uma condição ideal e universal. E daqui ao infinito não há intervalo!

 

 

4. A RELAÇÃO ENTRE BELO E INFINITO pode ser verificada nos gregos – Winckelmann, como dissemos, é para lá que nos remete, na sua obra e no seu conceito de beleza – se nela inscrevermos, com Hans-Georg Gadamer, em “Wahrheit und Methode” (1960: 454), a tradição pitagórico-platónica: “a base da estreita ligação da ideia de belo com a do ordenamento teleológico do ser é o conceito pitagórico-platónico de medida. Platão define o belo através dos conceitos de medida, adequação, proporção; Aristóteles refere como momentos do belo a ordem (táxis), a simetria (sumetría) e a definição (ôrisménon) e encontra-os realizados de modo exemplar na matemática”.  E continua:“a estreita ligação entre a ordem matemática do belo e a ordem dos céus significa, afinal, que o kosmos, o modelo de todas as ordens visíveis, é ao mesmo tempo o mais alto exemplo de beleza no âmbito do visível. A medida, a simetria, é a condição decisiva da beleza”.

Simetria perfeita é o que encontramos no símbolo do infinito, na fita de Möbius, uma forma elíptica, que é linguagem matemática, como veremos mais à frente. Não se exprime também o infinito naquele ponto para onde convergem duas linhas paralelas (simétricas) que o nosso olhar projecte no horizonte? Não é na matemática que se exprime com maior exactidão a linguagem do infinito?

 

5. O CONCEITO de “belo” (tò kalón) é irmão do conceito de bem (tò agathón) e é a sua face visível, lugar intermédio entre o conceito e o fenómeno, sendo ambos e nenhum, ao mesmo tempo, na medida em que resulta de um livre jogo entre as duas faculdades: imaginação e intelecto.

Por outro lado, a simetria – tão importante para os gregos como elemento do belo – é o que encontramos no símbolo do infinito, composto por uma fita elíptica fechada e sobreponível, sem verso nem reverso. Winckelmann via na arte grega e na linha elíptica (não no círculo), nos vasos e nas linhas dos rostos, a geometria que descreve o belo. Nos gregos o círculo era estranho à estética. E o belo era também algo de uma dimensão superior ao mundo fenoménico, apesar de também se exprimir com esta forma, sendo mesmo a forma visível do bom (tò agathón), que não tem outro modo de se exprimir: “In der Suche nach der Guten, zeigt sich das Schoene”, diz Gadamer[6].

O bom como belo, na sua dimensão sensível!

 

 

6. O BELO É FUGA para o infinito cujo símbolo é uma figura elíptica. A ausência de fronteiras no infinito (a-peírôn) também se verifica no belo… Ou seja, se o belo fosse delimitável e capturável pela sensibilidade ou pelo conceito (Kant), confinando-se nas suas fronteiras ou limites formais, deixaria de ser belo. Porque é indeterminado. É projecção do nosso sentido interno até à universalidade (subjectiva) sob estímulo sensorial (sentido externo).

É por isso que, sendo subjectivo, extravasa, todavia, a subjectividade singular e se constitui como horizonte de “acordo” meta-subjectivo, de coincidência não pré-ordenada de subjectividades, de encontro de sensibilidades singulares e diferentes num horizonte ideal mais vasto que as supera, a elas, e ao objecto contemplado… em direcção à universalidade (subjectiva). E o acordo resulta, como bem sublinhou della Volpe, da existência de um dispositivo comum no ser humano centrado no livre jogo ou dinâmica das faculdades (imaginação e intelecto).

Para o Kant da “Crítica do Juízo” a universalidade é condição necessária do belo: “Schön ist das, was ohne Begriff allgemein gefällt” (Kant, s.d: 134)[7]!

 

7. O BELO decorre de um lugar no infinito, na dimensão matemática, geométrica e… poética!

Curiosamente, será numa descoberta matemática, mais tarde aplicada à geometria e à estética, que o conceito se desenha na forma que aqui queremos evidenciar. Materializar-se-á na superfície de Möbius[8] – fita sem frente nem verso, sem princípio nem fim – que, mais tarde, irá inspirar Escher[9], nas propriedades descritivas da perspectiva impossível, de valor renascentista.

Na superfície de Möbius representa-se o símbolo do infinito. O matemático desvendou o espaço configurado por uma fita de duas faces cuja união das extremidades, depois de meia volta de uma delas, resulta num sistema único que anula a noção de frente/verso e de princípio/fim.

Uma viagem que nunca começa nem acaba, não tem começo nem fim. Como o belo! E o infinito!

Representação da Superfície de Möbius, inscrita na planta de elipse barroca. Fita de Möbius é uma descoberta matemática e insere-se na ideia de superfície em curva elíptica. As duas faces unem-se sem princípio nem fim. Representa o símbolo universal do infinito.

 

Autores

Filipa Oliveira Antunes
Escola de Comunicação, Arquitetura, Artes e Tecnologias da Informação ECATI.
Universidade Lusófona

João de Almeida Santos
Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração.
Universidade Lusófona

 

[1] Winckelmann, J. (1953). Il bello nell’arte. Torino: Einaudi; p. 61.
[2] della Volpe, G. (1973). Opere V. Roma: Riuniti; p. 30
[3] Kant, I. (s.d.). Kritik der Urteilskraft. Reclam. Digitale Bibliothek. Band 2., §6, p. 124.
[4] Gadamer, H. G. (1975). Wahrheit und Methode. Tuebingen: Mohr (Paul Siebeck).
[5] Schopenhauer, A. (1965). Il mondo come volontà e rappresentazione. Torino: Paravia.
[6] Gadamer, 1975: 456: “Na procura do bom, o que se mostra é o belo”!
[7] “É belo o que agrada universalmente sem conceito”
[8] August Ferdinand Möbius, matemático alemão, 1790-1868.
[9] Maurits Cornelis Escher, artista gráfico holandês, 1898-1972.

Nota de edição: A segunda e última parte do ensaio será publicada na próxima terça-feira.

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