
Isaura Borges Coelho
(1926-2019)
Mulher corajosa e de uma grande doçura, desde sempre admirada pela determinação com que, ainda jovem, enfrentou e desafiou o regime, Isaura é uma figura emblemática da luta das enfermeiras e na Resistência contra o fascismo.
- 25 Junho, 2017
- Helena Pato
- Posted in A Liberdade passou por aqui
- 19
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A vida de Isaura Borges Coelho foi um longo caminho de luta entusiástica e de sofrimento com a repressão, que a atingiu, também, com a prisão do seu companheiro, António Borges Coelho, com quem iria casar no Forte de Peniche.
Biografia
O trabalho nos hospitais era extremamente penoso, com turnos de doze horas que, muito frequentemente, se prolongavam pelas 24 horas. As enfermeiras estavam ainda sujeitas a trinta velas de doze horas consecutivas, apenas intervaladas por uma folga semanal.
Estas condições de trabalho inspiraram a luta de Isauraem defesa da melhoria das condições de trabalho das enfermeiras e dos cuidados de saúde nos hospitais. Um ano depois, ao tomar conhecimento do despedimento de doze enfermeiras do Hospital Júlio de Matos, por terem casado, tomou a iniciativa de encabeçar um abaixo-assinado, dirigido a Salazar, ao Cardeal Cerejeira e ao Enfermeiro-mor dos hospitais.
Foram centenas de assinaturas, na exigência da liberdade de casamento das enfermeiras[1] . Isaura Silva aderiu então ao MUD.
A luta juvenil e a PIDE
Sujeita ao regime de isolamento, foi brutalmente espancada e arrastada pelos cabelos, na presença do seu advogado, Dr. Lopes Correia, também ele barbaramente espancado. A marcação do julgamento de Isaura Silva desencadeou um amplo movimento de protesto com distribuição de panfletos e tarjetas.
Surgiram inscrições nas paredes: «Liberdade para Isaura Silva». Num dos comunicados do MUD Juvenil, publicado em Junho de 1954 e intitulado «Com Isaura Silva, no banco dos réus, estão as enfermeiras e a juventude de Portugal», dizia-se:
Isaura Silva estava à frente da luta pela revogação da lei que proíbe as enfermeiras de casar. Estava na linha da frente das lutas de protesto contra o horário de 12 horas com velas consecutivas, e pela folga semanal e feriados, contra a alimentação miserável e as instalações de caserna”
Foi então julgada em Tribunal Plenário e, durante o julgamento, a PIDE ocupou os lugares destinados ao público, mas não conseguiu impedir que a ré fosse «muito cumprimentada pela assistência», enquanto recebia um ramo de cravos brancos das mãos de uma enfermeira. Entre as testemunhas de Isaura Silva contavam-se duas enfermeiras
Prisão
Após um ano de residência fixa pôde voltar para Lisboa com o objectivo de fazer formação no IPO, junto
Foi com a ajuda do Professor Pulido Valente e do Dr. Pedro Monjardino que conseguiu arranjar emprego numa clínica. Quis especializar-se e concorreu ao Curso de Puericultura e Partos da Maternidade Alfredo da Costa (MAC), mas só depois de muito protestar, por ser sistematicamente impedida na admissão por razões políticas, pôde concluir o curso e entrar na MAC como enfermeira eventual.
Enfermeira-chefe, só após o 25 de Abril
Em 2002, o Presidente da República Jorge Sampaio atribuiu-lhe a Ordem da Liberdade.
António Borges Coelho, seu companheiro, foi preso em 1957, como funcionário do Partido Comunista Português na clandestinidade e só saiu em liberdade em 1962. Casaram no Forte de Peniche. Recorda-a na sua juventude assim:
Antes de a conhecer, já ela, com 11 anos, tinha salvo do mar do Vau uma menina de 12 anos. Aos 16, tirou a blusa vermelha para mandar parar o comboio. Estava uma mula e uma carroça na linha. Moveram-lhe um processo por ter atrasado o comboio”
Ao lado de António Borges Coelho, o grande companheiro da sua vida, com quem casou na prisão. Homenagem a A. Borges Coelho em Murça, 2014
Poema
Até logo
à Isaura
Há oito meses dissemos:
– Até logo!
Era uma tarde fria de Novembro
uma tarde como qualquer outra
gente regressando a casa do trabalho
lancheiras malas rugas profundas no rosto.Se houvesse malas de mão
para a saudade a desventura
não havia malas no mundo que[chegassem…
Era uma tarde fria de Novembro.
Não sei se alguém sorriu
do beijo que trocámos.
– Até logo – disseste.Depois passaram oito meses
os meses mais compridos que tenho[encontrado.
Que pensamentos levava comigo?
Sei que disseste «até logo»
E era como se levasse as tuas mãos
Abertas sobre o meu peito.Pensava
que só nas despedidas breves
por horas
se dizia «até logo»
como a alguém que parte
«boa viagem»
ou ao nosso companheiro
«bom trabalho»..
Mas já passaram oito meses
duzentos e quarenta dias
cinco mil e setecentas horas.
Porque disseste
«Até logo»?[Se eu não soubesse
aprenderia que na minha pátria
os namorados dizem «até logo»
e estão meses anos
por vezes não voltam mais.Fecham-nos
atrás de grades de ferro
espancam-nos
matam-nos devagar
e não permitem que apareçam
«logo»..
Amiga
o ódio que trago armazenado
destas noite de insónia e abandono
dou-o à luta.
Mas temos que sofrer
sofrer deveras.
Até que um dia
Os homens cantarão livres como[os pássaros
os namorados beijarão sem pressa
e as palavras «até logo»
quererão dizer simplesmente
«até logo»[*]
[*] Os oito meses transformaram-se em dez anos. Noutros casos, quinze, vinte anos e mais.
Em António Borges Coelho. Fortaleza, Seara Nova, 1974
[António Borges Coelho entra para funcionário do MUD Juvenil e, depois, do PCP. Em 1955 é preso, condenado em Tribunal Plenário e fica 6 anos na cadeia, dos quais 6 meses no isolamento. Escreve então este poema à namorada, que é decorado e recitado nas festas de jovens antifascistas. A meio da pena, casou-se no Forte de Peniche com a namorada Isaura (até hoje sua companheira), uma enfermeira que havia sido presa em 1953, e porque tinha ficado vários anos na prisão de Caxias não tinha autorização para o visitar ou escrever. [Um casamento em que esteve separado por um vidro de todos os amigos presentes na “festa” que durou uma hora]. Libertado em 1962 não volta à clandestinidade, decidindo terminar a licenciatura, sem nunca se afastar da luta].
Notas
[1] O decreto-lei nº 28794, de 1 de Julho de 1938, estabelecia no artigo 60 que «Nos lugares dos serviços de enfermagem e domésticos (serviço interno) a preencher por pessoal feminino, só poderão de futuro ser admitidas mulheres solteiras e viúvas, sem filhos, as quais serão substituídas logo que deixem de verificar-se estas condições». A proibição do casamento das enfermeiras só terminaria, depois de longa luta, com o decreto nº 44923, de Março de 1963.
Na verdade, a proibição do casamento das enfermeiras e a luta pela sua revogação marcam 25 anos da história da enfermagem e dos movimentos feministas durante o Estado Novo.
«Assente numa imagem de mulher limitada ao trabalho doméstico, para quem a família representa o centro exclusivo da sua vida, não é possível dissociar tal imposição legislativa da definição dos papéis sexuais veiculado pelo Estado, bem como do postulado tradicional da função cuidadora e maternal feminina. Além do impedimento do trabalho feminino em certos sectores ou o acesso das mulheres a determinadas profissões, foram ainda impostas restrições de índole vária a algumas profissionais. Por exemplo, para contraírem matrimónio as professoras primárias tinham de solicitar especial autorização ao Ministério da Educação Nacional, ao passo que a proibição do casamento ficou designada às telefonistas da Anglo-Portuguese Telephone Company, às profissionais do Ministério dos Negócios Estrangeiras, às hospedeiras de ar da TAP e às enfermeiras dos Hospitais Civis»
Excerto de um artigo de Ana Sartóris, in O celibato das enfermeiras dos hospitais civis
[2] Ligada ao movimento das enfermeiras, foi também presa Hortênsia da Silva Campos Lima, sua irmã.
- Autoria de Helena Pato, com a colaboração de António Borges Coelho, que tornou possível a rigorosa enumeração dos factos citados.
- Fotografia de Isaura Borges Coelho facultada pela própria.
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Antifascistas da Resistência