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Sábado, Abril 20, 2024

Onde pára, afinal, a ACT?

António Garcia Pereira
António Garcia Pereira
Advogado, especialista em Direito do Trabalho e Professor Universitário

Sendo o Estado um instrumento de constrangimento de uma classe por outra e sendo o Direito por ele produzido e os Tribunais e outros órgãos da Administração estadual instrumentos de efectivação desse mesmo constrangimento, não há que alimentar ilusões sobre o Direito, e em particular sobre o Direito do Trabalho.

trabalho
António Garcia Pereira, Advogado

A sua função é a de manter o conflito inerente a toda a relação laboral dentro dos limites do “socialmente aceitável” e garantir assim a perpetuação e reprodução do sistema de produção capitalista.

E a função social dos Tribunais do Trabalho e de órgãos como a ACT (Autoridade para as Condições do Trabalho) é rigorosamente a mesma, incumbindo-lhes garantir a “paz social” indispensável a que o sistema capitalista de produção possa afinal manter-se e reproduzir-se.

Como já várias vezes foi afirmado, nem o Direito do Trabalho é qualquer espécie de “ilha socialista” dentro do sistema capitalista, mas antes um instrumento fundamental do mesmo, nem os Tribunais e a ACT existem para defender os trabalhadores.

Aliás, ao agravamento da exploração e da própria opressão patronais, típico das chamadas “épocas de crise”, e aos discursos ideológicos que sempre as têm acompanhado, afirmando a necessidade de o Direito, em particular o Direito do Trabalho, “servir melhor a economia”, corresponderam sempre as teorias do “Direito (do Trabalho) da crise” ou do “Direito (do Trabalho) de emergência”, e as medidas assim pseudo cientificamente “justificadas: facilitação e embaratecimento dos despedimentos e da contratação precária; diminuição dos salários; cortes nos direitos sociais; aumento dos tempos de trabalho e alargamento dos poderes patronais.

Esse foi aliás o sentido essencial, para não dizer único, das chamadas “reformas laborais” impostas à sombra do chamado “Memorando de Entendimento com a Tróica”, em particular pela Lei nº 23/2012, de 25 de Junho desse ano.

Mas também correspondeu o agravamento da desvalorização da jurisdição laboral (nalguns casos, a níveis piores que os de antes do 25 de Abril), onde hoje o que sobretudo conta é a capacidade de “avianço” de decisões.

A manutenção da competência para julgar das cada vez mais numerosas questões laborais públicas nos Tribunais Administrativos e Fiscais (autêntico poço sem fundo, onde se acumulam centenas de milhares de processos e onde a esmagadora maioria dos juízes não tem qualquer formação específica e, menos ainda, qualquer sensibilidade para as questões laborais) completa este quadro negro.

E, claro, correspondeu também uma permanente desqualificação e desvalorização da Inspecção Geral do Trabalho e das respectivas atribuições e competências, em particular a de supervisionarem o cumprimento da legislação do trabalho, sancionar as respectivas infracções e tomar medidas adequadas a prevenir a ocorrência quer de conflitos, quer de acidentes e de doenças profissionais [1].

E entre nós, pode até dizer-se que a Inspecção do Trabalho terá surgido com o surgimento, há mais de 120 anos, da figura do “inspector industrial”, criado para cada uma das 5 circunscrições industriais constituídas pelos Decretos de 14 de Abril de 1891 e de 16 de Março de 1893, os quais, fruto de muito sangue, suor e lágrimas dos operários portugueses, vieram finalmente regulamentar o trabalho dos menores e das mulheres nas fábricas.

A actual ACT foi criada em 2007 [2] com um modelo organizativo alegadamente vocacionado quer para a inspecção propriamente dita quer para a promoção da segurança e da saúde no trabalho.

Curiosamente, porém, há já largos anos atrás a OIT tinha considerado, como número de inspectores do trabalho razoavelmente adequado ao mercado de trabalho português e às suas características, o de 750. Mas o quadro oficial é de 538, e no início de 2016 em serviço efectivo encontravam-se apenas 280! É certo que foi aberto entretanto um concurso para mais 100 inspectores (o que ainda assim representaria um défice de 150 para o preenchimento do já seu mais que insuficiente quadro) mas, com a duração previsível do mesmo concurso e a saída para a aposentação de dezenas e dezenas de inspectores actualmente ao serviço, provavelmente nem a 350, no total, se chegará.

act

 

Com a publicação da chamada “Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas” [3] a inspecção no campo da segurança e saúde no trabalho no âmbito da Administração Pública foi retirada à ACT e atribuída – pasme-se! – aos serviços de inspecção dos vários ministérios e… à Inspecção Geral de Finanças, fazendo assim com que as centenas de milhares de trabalhadores públicos vejam a competência para fiscalizar as suas condições de trabalho atribuída ao Fisco e a competência para julgar as violações dos seus direitos laborais aos Tribunais Administrativos e Fiscais!?

Entretanto, a actual direcção da ACT, procurando apresentar pseudo-omeletes feitas sem ovos, decidiu obrigar todos os inspectores, incluindo os não licenciados em Direito, a executar trabalho administrativo e a fazer a instrução dos processos de contra-ordenação, retirando assim a já depauperada Inspecção do Trabalho do terreno e descredibilizando e impossibilitando a acção inspectiva a sério.

Por tal razão, o artº 152º-B do Código Penal que prevê penas de prisão pesadas [4] para “quem, não observando disposições legais ou regulamentares, sujeitar trabalhador a perigo para a vida ou a perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde” permanece praticamente letra morta e nas grandes obras de construção civil tão sucessiva quanto impunemente morrem operários ou ficam estropiados para toda a vida, de que são um triste e sanguinário exemplo as obras na Barragem de Foz Tua.

E, ao invés do que muito recentemente declararam num programa televisivo responsáveis da ACT, a esmagadora maioria das queixas, designadamente por caso de assédio moral puro e duro, ficam sem resposta. Ou, pior, a ACT considera “legais” operações de exteriorização (out-sourcing) manipulatórias e fraudulentas como por exemplo as de uma empresa despedir trabalhadores sob a alegação de extinção do respectivo posto de trabalho apenas e tão só para, logo de seguida e até sem qualquer interrupção, os fazer contratar por uma terceira entidade, trabalhando no mesmo local, com os mesmos instrumentos, as mesmas chefias e os mesmos clientes, só que com metade do salário e um contrato a prazo com essa terceira entidade (como por exemplo a Vodafone tem estado a fazer com áreas inteiras da respectiva actividade).

Mais! Onde pára a ACT quando, por exemplo, existem anúncios públicos de confessada contratação, designadamente de arquitectos, a falsos “recibos verdes” (tal como sucedeu, nomeadamente com a empresa Ergoproject), ou de contratos de trabalho a termo certo e tempo parcial, de 8 horas semanais rotativas e salário de 119,00? Ou quando o Instituto Superior de Agronomia decidiu, também publicamente, utilizar uma “bolsa de técnico de investigação sem grau académico” para contratar um… pedreiro?! Ou quando a RhClinique SA, por declarada imposição da gerência, tratou de exigir a candidatos “fotografias de corpo inteiro” por pretender apenas “admitir as mais apelativas possível” (sic)??!!

E por isso é caso para questionar, mais fortemente ainda, por onde pára, afinal, a Autoridade para as Condições do Trabalho-ACT?!…

 

[1]Tais competências resultam, desde logo, das Convenções da Organização Internacional do Trabalho – OIT, em particular das nºs 81, de 1947 e nº 129, de 1969. E estas convenções foram ratificadas por Portugal através, respectivamente, dos Dec. Leis 44.148, de 6/1/62 e 91/81, de 17/7 (para além das Recomendações da mesma OIT nºs 20, 81 e 123)

[2] Através da Lei nº 326-B/2007, de 28/9.

[3] ALGTFP é a Lei nº 35/2014, de 20/6.

[4] Essas penas podem, em abstracto, ir até 8, ou mesmo 10 anos de prisão, em caso de morte.

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