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Sábado, Dezembro 7, 2024

Quando a Língua Portuguesa encontrou Homero e a Ilíada

Quem ama a Língua Portuguesa sabe que ela não é estanque, não é um dicionário ou uma gramática, matéria morta a ser decorada. A língua é um processo vivo, no qual constantemente são recuperadas tradições e construídos novos significados e visões de mundo.

É pela língua que é construído e moldado nosso pensamento, como nos ensina Vygotsky. Um pensamento revolucionário, progressista e inovador sabe reconhecer o valor inestimável de mudanças e novidades que desabrocham constantemente em seu solo fértil.

Por muito tempo, perdurou um conceito de língua derivado do platonismo. Acreditava-se que as línguas, tais como “rótulos”, davam caráter sonoro e escrito à essência imanente das coisas do mundo. Já mais para os tempos do Romantismo, havia a ideia de que a língua expressava o espírito de uma nação ou de um povo, tendo, portanto, um caráter. Sob essa perspectiva, era difícil aceitar mudanças e criações na língua e com a língua. Por isso, invariavelmente foi polêmica a questão da formação de palavras.


A primeira versão da Ilíada integralmente em português foi traduzida pelo brasileiro Odorico Mendes

Em Portugal, na transição do século 18 para o 19, as tendências de criação literária recuperavam a estética da poesia clássica greco-latina. Os estudiosos da literatura denominaram o período “Neoclassicismo”, ou “Arcadismo”, graças à fundação da Arcádia Lusitana – grupo de poetas e eruditos seguidores dessa tendência ao clássico no fazer poético. Exatamente por essa recuperação dos clássicos, datam desse período as primeiras experiências de tradução da Ilíada, de Homero, para o português – embora a primeira tradução integral tenha vindo a lume apenas no fim do século 19, pelas mãos do brasileiro Odorico Mendes.

Aos nossos olhos, são muito semelhantes as correntes “francesa” do Neoclassicismo português, representada por Bocage, por exemplo, e a “latina”, da qual Filinto Elísio é expoente. Ambas recorrem a recursos estéticos típicos da época. Contudo, há ao menos uma importante diferença entre elas – o cunhar de termos novos na língua a partir de radicais latinos e gregos, procedimento que a corrente “latina” procurava fazer. Muitos dos termos que esses poetas cunharam são, hoje, palavras oficiais em nossa língua.

A elocução intrincada e repleta de termos retirados diretamente do latim, ou construídos a partir de verbetes greco-latinos, é herança dessa “escola latina” iniciada por Filinto Elísio, ele mesmo tradutor de poesia latina. Também era característico da “escola” filintista um certo teor arcaizante do vocabulário – o uso de arcaísmos como “dões”, “soer” e “petrina”.

Vemos, portanto, que era recurso desse grupo recorrer tanto a processos de “atualização” da língua, criando palavras, como a recuperação de tradições, ao resgatar usos já perdidos, o que ampliava a quantidade de vocábulos em uso. Essas estratégias nos lembram muito o estilo de Guimarães Rosa, quando nos sentimos perdidos entre saber se um termo foi por ele cunhado ou resgatado dos rincões distantes e perdidos do passado da língua.

Barbarismos

O conceito de língua subjacente a quase todas as escolas literárias europeias da época era que a variedade é constituinte de beleza e qualidade linguísticas. Para essa corrente classicizante, cunhar novos termos e recuperar termos antigos eram um meio de garantir tal variedade. Por meio desses vocábulos, os poetas e os escritores de prosa poderiam proporcionar uma gama mais diversificada de sons e, por conseguinte, tornar a língua superior, conforme o conceito de então.


Busto de Homero, autor da Ilíada

Quanto à expressividade, havia uma percepção de que a Língua Portuguesa carecia de palavras “carregadas de valor semântico”. Sentia-se falta de palavras para exprimir com exatidão termos e conceitos técnicos ou que demandassem precisão. Essa busca seria suprida pelos empréstimos do latim. Nos mais variados tipos de texto, os neologismos supririam a carência de termos expressivos e de rigor léxico no português.

O empréstimo de vocabulário latino e inserção de novos termos ao português não era restrito ao meio poético. A cunhagem de palavras ao modo latino, como “muri-cercada”, e a introdução das próprias palavras latinas, como “conviva”, eram consideradas um fator enriquecedor da língua de todos os falantes, não apenas dos poetas.

Para os adeptos a esse recurso, criar algumas palavras e recuperar outras antigas ajudava a garantir diferenças de estilo, isto é, proporcionava mais palavras para cada tipo de elocução retórica – elevada, média ou baixa – conveniente à nobreza ou à vileza da matéria, da ação, das personagens.

Assim, pelo acesso a uma maior variação sonora, expressiva e estilística, a variedade de vocábulos garantiria a riqueza e o valor da Língua Portuguesa.

Os contra-argumentos dados ao grupo de escritores adeptos ao emprego desses termos são patentes na crítica da época – e, pasmem, há quem até hoje os sustente. De modo geral, percebemos que a desaprovação se sustentava no conceito de “linguagem pura”, ou de “norma purista” da linguagem.

Os literatos se preocupavam ininterruptamente com a absorção de palavras e usos gramaticais estrangeiros pelo vocabulário português, considerados as mais das vezes “conspurcações” da língua portuguesa pura – daí serem chamados de “barbarismos”. Como dissemos, a noção de que cada língua tinha um caráter único e específico era comum.

Ora, para aqueles literatos – dos mais puristas aos mais progressistas –, a absorção de vocábulos do latim ou do grego não era igual à de termos de línguas “vulgares” – as línguas não clássicas. Tomar empréstimos do latim e do grego era considerado “construção do português”, desde que respeitasse o “gênio” da Língua Portuguesa (esse “espírito” de que falamos mais acima). Já o uso de termos de línguas modernas, ou vulgares, era considerado uma invasão de barbarismos, completamente alheios a esse “gênio”.

Ilustração de uma das edições da Ilíada

O problema dos neologismos não era, portanto, fazer uma mera derivação – mas atrair termos que não consideravam condizentes com o “espírito” e a norma da Língua Portuguesa. Hoje, analogamente, brandem-se bandeiras de conservadorismo contra o “inimigo” imaginário que são as influências de outras línguas e considera-se “erro” o uso derivado das línguas dos povos originários e de povos africanos sequestrados.

Elipino x Odorico

Voltemos à Ilíada. Nas primeiras traduções da obra de Homero, há duas linhas verificáveis entre o fim do século 18 e o fim do 19 em Portugal:

  • A tradução que dá ênfase ao fato de a Ilíada ser um clássico: essa linha se submete à estética neoclássica de composição poética (versos decassílabos brancos, ausência de estrofes, sintaxe simples, etc.). É herdeira de Filinto Elísio (o que acarreta certa tendência “estrangeirizante” manifesta no cunhar de neologismos). Dela participam poetas hoje quase desconhecidos, como José Maria da Costa e Silva, Antônio Maria do Couto, Antônio José Viale, João Félix Pereira e, finalmente, o maranhense Odorico Mendes.
  • A tradução que dá ênfase ao fato de a Ilíada ser um épico: essa linha se submete à tradição épica de Portugal, a saber, a estética camoniana dos Lusíadas, admitindo caráter mais “domesticante” quanto à tradução. Dela participam, por exemplo, a Marquesa de Alorna e Mendes Leal Jr.

Sabemos que os epítetos – termos e expressões qualificativos tipicamente dados a personagens em Homero, como “dedirrósea” aurora e aqueus “de fina greva” – são frutos da composição e da transmissão orais das poesias. Os tradutores da linha que dá ênfase ao fato de a Ilíada ser um clássico, em menor ou maior escala, utilizam o recurso de cunhar neologismos ou a recuperação de termos latinos e gregos.

Diversos epítetos utilizados cerca de 40 anos antes da publicação das traduções de Odorico Mendes apresentam, senão traduções muito semelhantes, a mesma estratégia de tradução, que consiste na união de radicais greco-latinos ou portugueses para a formação de neologismos. Podemos ter uma ideia melhor desse recurso ao ler a invocação de abertura da Ilíada nas traduções de dois poetas – Elipino Duriense (período neoclássico português) e Odorico Mendes (herdeiro da mesma corrente, mas já do Romantismo):

Muitos dos termos cunhados por esses poetas estão dicionarizados hoje em dia, como “pulcrícomo” e “argentípede”. São palavras que se tornaram parte da língua segundo instrumentos oficiais. O que era considerado “conspurcação” do português hoje é parte oficial dele.

A contribuição desses poetas para a manutenção da língua como processo vivo perdura até hoje. Por causa de Odorico Mendes, também Haroldo de Campos acolhe, ao traduzir em dodecassílabos a Ilíada, o expediente de cunhar epítetos a essa maneira. E é por causa de Haroldo de Campos que Trajano Vieira se integra a essa tradição, cunhando igualmente novos epítetos e dando continuidade a esse recurso estabelecido no distante período neoclássico.


O professor Trajano Vieira e o poeta Haroldo de Campos, que traduziram a Ilíada

Essa tradição nos faz relembrar o quanto somos devedores de poetas e escritores já esquecidos e distantes no tempo e espaço. Ao ousar criar e manter a língua em seu processo de constante renascimento – a contragosto dos puristas fiscais de línguas alheias –, esses autores deixaram sua marca inovadora. É também um convite ao reconhecimento de nosso pertencimento a tradições e à ousadia. Celebremos a língua indômita!


Quadro O Triunfo de Aquiles, em exposição no Palácio Achilleion, na Grécia, mostra um dos epísódios narrados na Ilíada, de Homero

por Tâmara Kovacs, Professora de Língua Portuguesa em Santos (SP). Graduada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), é autora da pesquisa Ensaios e Experiências de Tradução da Ilíada no Oitocentismo Português (Fapesp, 2013) | Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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