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Quinta-feira, Março 28, 2024

Subfinanciamento crónico do SNS

Eugénio Rosa
Eugénio Rosa
Licenciado em economia e doutorado pelo ISEG

Os projectos de nova Lei de Bases da Saúde em debate na Assembleia da República não resolvem os problemas graves do Serviço Nacional de Saúde (SNS)

Neste estudo, com o titulo “Os projectos de nova Lei de Bases da Saúde em debate na Assembleia da República não resolvem os problemas graves do Serviço Nacional de Saúde (SNS)” analiso, utilizando dados da OCDE e do governo, a situação actual do sector da saúde em Portugal, mostrando que a percentagem da riqueza criada no país (PIB) destinada à saúde dos portugueses diminuiu entre 2006 e 2017, uma tendência contrária à verificada na generalidade dos países da União Europeia.

Mostro, utilizando dados do governo, que o agravamento das dificuldades do SNS resultam da redução, em % do PIB, das transferências do Orçamento do Estado para o SNS. Isto tem determinado, como consequência das dificuldades que enfrenta o SNS, que a parte da despesa total com saúde suportada pelas famílias atingisse, em 2017, 28% em Portugal, quando a média na União Europeia é apenas 18%.

E refiro que nenhum dos projectos de nova lei de bases da saúde actualmente em debate na Assembleia da República resolve dois dos mais graves problemas que enfrenta actualmente o SNS, a saber: o subfinanciamento crónico do SNS e a promiscuidade público-privada que existe e que resulta dos profissionais de saúde trabalharem simultaneamente no SNS e em grandes grupos privados de saúde, o que está, por um lado, a destruir por dentro o SNS e, por outro lado, a promover o grande desenvolvimento dos grupos privados de saúde à custa do SNS.

Termino apontando duas medidas vitais a meu ver para defender o SNS,  não por meio de grandes declarações,  mas com actos – uma norma travão ao subfinanciamento crónico do SNS, e a eliminação gradual da promiscuidade público-privada dos profissionais de saúde (exclusividade) associada a carreiras e remunerações dignas o que nunca vi ser defendido pelas organizações representativas desses profissionais. Estas propostas são também um desafio à coragem dos deputados que dizem defender o SNS.

Espero que este estudo possa ser um contributo para uma reflexão séria e fundamentada sobre a situação do SNS e sobre a necessidade de o defender, não apenas com grandes declarações mas com atos, pois o SNS, uma das principais conquistas do 25 Abril, é um instrumento vital no combate às grandes desigualdades que se têm agravado em Portugal. Sem o SNS a vida seria ainda mais difícil para milhões de portugueses.

Estudo

Estão neste momento em debate na Assembleia da República 5 projectos de nova lei de bases da saúde, mas nenhum deles resolve os problemas mais graves do SNS, até porque eles não resultam da actual lei. E problemas graves são o subfinanciamento crónico do SNS e a promiscuidade público-privado, incluindo a dos profissionais de saúde, que trabalham simultaneamente no SNS e nos grupos privados de saúde, o que resulta também de não terem nem carreiras nem salários dignos no SNS.

Nenhum dos 5 projectos contém medidas concretas para resolver pelos menos estes problemas.

A redução da despesa com a saúde (pública + privada) em Portugal

O gráfico 1, construído com dados divulgados pela OCDE (Health-at-a-Glance” de 2010 e 2018), mostra a variação da despesa com a saúde na União Europeia em % do PIB entre 2007 e 2017.

Gráfico 1 – Despesa com saúde (publica+privada) em % do PIB 2007 (Portugal) e 2017

Fonte: OCDE

Como revelam os dados da OCDE constantes do gráfico 1, entre 2006 e 2017, a despesa com saúde (pública + privada) medida em percentagem do PIB diminuiu em Portugal de 9,9% para 9%, enquanto a média na União Europeia (28 países) aumentou pois, entre 2007 e 2017, subiu de 8,3% para 9,6%. Portanto, em Portugal neste período registou-se precisamente uma tendência inversa à verificada na generalidade dos países da U.E.

O subfinanciamento crónico do Serviço Nacional de Saúde (SNS)

A redução da despesa de saúde em Portugal tem como causa o subfinanciamento crónico do SNS (transferências do Orçamento do Estado muito inferiores à despesa) como mostra o gráfico 2.

Gráfico 2 – Transferências do OE para o SNS (a preto) e a despesa anual do SNS (vermelho) – Milhões €

Fonte: Nota explicativas do Ministério da Saúde durante debate anual dos O.E.

No período 2010/2019, as transferências do Orçamento do Estado para o SNS constantes dos orçamentos iniciais aprovados foram sistematicamente inferiores às despesas previstas do SNS.

Neste período as transferências previstas somaram 83.277 milhões € e as despesas previstas totalizaram 94.769 milhões €. As transferências foram inferiores às despesas em 11.492 milhões €, segundo dados fornecidos pelo atual governo à Assembleia da República.

Esta diferença foi “coberta” pelas taxas moderadoras (120/170 milhões €/ano) e pelo endividamento – em Setembro de 2018 a divida atingia 1.950 milhões € segundo o governo – parcialmente pago com reforços do orçamento no fim de todos os anos. Um processo que levou à degradação a que chegou actualmente o SNS.

Em nenhuma das propostas da Nova Lei de Bases de Saúde existe qualquer norma que ponha um travão à degradação do SNS

E o aumento da despesa das famílias com a saúde

Para se poder saber qual travão que se podia por degradação do SNS, observe-se o gráfico 3.

Gráfico 3 – Transferência do Orçamento do Estado para o SNS em percentagem do PIB – 2010/2019

A parcela da riqueza criada anualmente no país (PIB) destinada pelos sucessivos governos ao financiamento do SNS é cada menor: 5,11% do PIB em 2010, e apenas 4,41% em 2019 (até Cavaco Silva, com a desfaçatez, rancor e desonestidade intelectual habitual, veio agora falar da degradação do SNS, quando foi durante o período em que ele foi presidente da República que o SNS foi mais destruído pelo estrangulamento financeiro e ele nunca abriu a boca).

Se a lei de bases da saúde estabelecesse como limite mínimo que as transferências do OE para o SNS não podiam ser inferiores a 5% do PIB a preços correntes de cada ano, o SNS receberia, em 2019, mais 1.242 milhões €. Este artigo travão na lei impediria que ficasse ao arbítrio do governo transferir o que quiser, e utilizar o SNS, através do subfinanciamento, para reduzir o défice como faz o atual governo, para depois se gabar em Bruxelas de défice zero conseguido também à custa da destruição do SNS.

Quem ousará defender que a nova lei de bases tenha um artigo de travão da degradação do SNS (transferências do OE para o SNS nunca poderem ser inferiores a 5% do PIB, por ex.)? Simplesmente declarar que se defende o SNS não basta. São precisos actos. Como consequência da degradação do SNS, em 2017, segundo a OCDE, a despesa de saúde suportada pelas famílias em Portugal representou já 28% da despesa total de saúde, quando na U.E. era 18%.

A promiscuidade publico-privado está a destruir o SNS por dentro

(cavalo de Tróia)

Interessa analisar o problema da promiscuidade público-privada na sua totalidade. E isto porque a promiscuidade público-privada que está destruir por dentro (autêntico cavalo de Tróia) o SNS não se limita apenas à não entrega da gestão de unidades públicas de saúde a grupos privados de saúde (as PPP; exs: Hospitais de Loures, Cascais, Vila Franca de Xira e Braga) como consta das propostas de lei dos partidos da esquerda que estão na Assembleia da República.

É importante reduzir e mesmo acabar com isso, pois custa ao OE cerca de 474 milhões/ano e fortalece os grandes grupos privados da saúde. Mas não é a única que afecta o SNS. A promiscuidade público-privada inclui também a dos profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, etc.) que trabalham simultaneamente no SNS e nos hospitais dos grandes grupos privados (LUZ, José Mello Saúde, Lusíadas, Trofa, HPA, etc.), o que permite a estes grupos desnatar o SNS e utilizar esses profissionais quando precisam sem ter de suportar os custos permanentes com eles limitando-se a pagar uma % do pago pelo doente. Pagam por ato médico (à peça, temporário, espécie de trabalho à jorna moderno), sendo uma forma também do SNS financiar o sector privado.

É urgente ter coragem de enfrentar este grave problema que está a destruir o SNS por dentro, impondo gradualmente a exclusividade aos profissionais (têm a liberdade de optar livremente pelo SNS ou pelo sector privado, não podendo estar simultaneamente nos dois), oferecendo, em troca, uma carreira e remunerações dignas, o que não acontece actualmente. Nem o governo nem os partidos que apresentaram projectos de lei na Assembleia da República tiveram a coragem de enfrentar este problema que destrói o SNS e de propor medidas concretas visando a eliminação gradual deste tipo de promiscuidade (ex. exclusividade imediata dos directores clínicos e dos novos médicos do SNS).




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