A Igreja Católica exerceu um protagonismo político marcante entre os séculos VII e XV. Esse domínio foi crucial para a consolidação do que chamamos de mundo ocidental, impondo padrões de conduta, crenças e uma rígida definição dos papéis sociais. Por meio de seus dogmas, colaborou para a construção de impérios e legitimou, com a disseminação do medo e de teorias sobre a alma e a salvação, invasões, dominação violenta de povos, processos de catequização, escravização e diversas formas de abuso.
Por outro lado, discussões em seu interior também deram origem a ideias humanistas, como aquelas que inspiraram a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base.
Em seus 12 anos de pontificado, o argentino Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, conseguiu renovar a imagem da Igreja, abalada por décadas de conservadorismo, repressão, escândalos sexuais e financeiros, além de perseguições políticas. Francisco não mudou a instituição, mas lhe deu ares mais leves, humanitários e mais graça.
No momento em que escrevo, sua morte, em 21 de abril de 2025, ainda repercute, e tem início um novo Conclave — o quinto nos últimos 50 anos. Embora cinco Papas em meio século pareça muito para quem os testemunhou, trata-se de um intervalo breve diante da longa trajetória da instituição.
Uma história marcada por debates filosóficos, que também ecoam na cultura. Desde tempos imemoriais, a religião é tema recorrente nas artes — teatro, música, literatura, pintura e cinema — não como mera fantasia, mas como veículo de questionamentos e reflexões que renovam, com o tempo, a compreensão da fé e da espiritualidade.
Irmão Sol, Irmã Lua
O filme Irmão Sol, Irmã Lua, de Franco Zeffirelli (1972), por exemplo, apresenta um dilema moral quando Francisco de Assis (interpretado por Graham Faulkner), despojado de bens materiais, confronta a opulência da Igreja ao chegar a Roma e ser recebido pelo Papa Inocêncio II (até o ano de 1143, no filme interpretado pelo ator Alec Guinness).
“Não armazenem seu tesouro aqui na Terra. Não podem servir a Deus e ao dinheiro”, diz Francisco.
O Papa, por sua vez, responde:
“Descobri a minha vocação há muito tempo, mas o entusiasmo se perdeu com as responsabilidades da administração. Estamos cercados de riqueza e poder. E você, em sua pobreza, me causa vergonha”.
A narrativa se desenrola na transição da Alta para a Baixa Idade Média, período que já sinalizava o surgimento da burguesia — refletido na família de Francisco — e questionamentos ao poder clerical, que, no entanto, ainda perduraria por quase cinco séculos.
Os Bórgias
Esse cenário de transformações — marcado pelo declínio da autoridade absoluta da Igreja e da monarquia — é retratado na série Os Bórgias, de Neil Jordan (2011) centrada na figura de Rodrigo Bórgia, o Papa Alexandre VI (falecido em 1503), interpretado, na série, por Jeremy Irons.
A série aborda eventos históricos como a peste, o fato de o Papa constituir família — incluindo amantes e filhos —, o papel de Lucrécia Bórgia e o uso político dos casamentos e a presença de Maquiavel, cuja obra nasce das mudanças políticas daquele período e inaugura uma nova concepção de poder. É um contexto que representa o surgimento de uma nova classe dirigente, que desbanca a hegemonia eclesiástica e real.
O Banheiro do Papa
Já no século XX, Karol Józef Wojtyła, eleito Papa em outubro de 1978, adotando o nome João Paulo II, imprimiu ao cargo um inédito perfil midiático e voltado à cultura de massa.
Anticomunista, João Paulo II liderou a Igreja nos anos finais da Guerra Fria e enfraqueceu grupos progressistas, o que afetou diretamente organizações populares e a militância de esquerda como as Juventudes Católicas, a JOC, a JUC, a Ação Católica Operária e os padres operários, entre outros.
A crítica ao afastamento entre o pontífice e o povo pobre é retratada na comédia O Banheiro do Papa, de Enrique Fernández, César Charlone (2008), que mostra a expectativa de uma família da cidade uruguaia de Melo, próxima à fronteira com o Brasil, durante a visita de João Paulo II.
A população pobre sonha com lucros vindos dos turistas, mas a realidade frustra as esperanças: ninguém consome nada, e o esforço se desfaz com a brevidade da visita. É uma história que mostra a contradição entre a pompa da Igreja e as carências do povo.
Conclave
Atualmente, a instituição está longe de ter a influência que exerceu até o século XV. No entanto, mesmo diante das tensões entre tradição e modernidade, a Igreja manteve suas bases e continua capaz de mobilizar multidões.
Esse embate entre passado e presente é tematizado no filme Conclave, de Edward Berger (2024), cujo enredo gira em torno da eleição de um novo Papa. Um momento emblemático ocorre quando o cardeal de Cabul, o mexicano Vincent (interpretado por Carlos Diehz), afirma:
“Nos últimos dias, temos demonstrado ser um grupo de homens pequenos, mesquinhos. Interessados somente em nós mesmos, em Roma, na eleição e no poder”.
Sua fala ecoa a do cardeal Lawrence (Ralph Fiennes), que pondera sobre a importância da dúvida:
“A certeza é inimiga da tolerância. Mesmo Cristo não estava certo no fim: ‘Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?’ Rezemos para que Deus nos conceda um Papa que duvide. Que Ele nos conceda um Papa que peque, peça perdão — e siga em frente”.
Vincent e Lawrence apontam para a urgência de reformas, o reconhecimento da fragilidade humana e, ao mesmo tempo, o resgate do princípio fundamental da fé: a comunhão e o crescimento espiritual.
Cultura e debate
As quatro obras citadas — Irmão Sol, Irmã Lua, Os Bórgias, O Banheiro do Papa e Conclave — promovem reflexões sobre a história, o poder e os dilemas da Igreja Católica.
Um debate que se impõe a partir do legado de Papa Francisco cuja trajetória resgata a memória de lideranças religiosas inspiradoras como Dom Helder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Pedro Casaldáliga, Dom Tomás Balduíno e, atualmente, Padre Júlio Lancelotti.
Assim, ressalto não apenas o entrelaçamento entre cultura e religiosidade, mas também, a despeito do reacionarismo que atravessa a história da Igreja, o outro lado deste debate: as ideias e ações humanistas que influenciaram a formação de líderes e movimentos progressistas, como, no Brasil, as Ligas Camponesas, o MST, o PT e o PCdoB.
Texto em português do Brasil