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João de Sousa

Quinta-feira, Setembro 12, 2024

A euforia do Hidrogénio

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A ‘Europa’ também conhecida por ‘Bruxelas’ é uma entidade mítica que nos habituámos a usar para tudo justificar ou culpar mas que nada quer dizer. A verdade é que a decisão de financiar grandes empresas privadas com o erário público surgiu de um gigantesco investimento publicitário e de lobby junto das instâncias de decisão pública, tanto europeias como nacionais, sem que tenha havido qualquer debate independente e informado na matéria.

  1. Falar muito sem nada dizer

Terminei o meu artigo publicado no Tornado a 17 de Agosto, dizendo que o hidrogénio é um dos temas abordados em ‘Uma Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030’ que penso merecer uma atenção adicional.

Como ponto prévio, para que a problemática da energia renovável a partir do hidrogénio seja compreensível, convém esclarecer que o hidrogénio, sendo embora o mais abundante elemento do universo, não existe em estado livre entre nós, e para o obter o método renovável estandardizado é o da eletrólise da água, com a sua posterior combustão que resulta de novo em água. O hidrogénio funciona assim como ‘armazém energético’ e as suas vantagens e inconvenientes são medidas por contraponto ao método de armazenagem corrente, que é em pilhas de lítio.





O principal problema que eu vejo na ‘estratégia’ e no grande destaque que esta dá ao hidrogénio não é acompanhada de cuidado compaginável com ele, sendo várias as incongruências, como por exemplo:

  1. Fala-se inúmeras vezes do ‘cluster’ do hidrogénio, algumas vezes de ‘fileira’ do hidrogénio, mas em nenhuma se explica onde está o cluster ou a fileira, usados por vezes de forma indistinta, o que não me parece uma boa opção.

Apesar da propriedade e desenvoltura com que se aborda o tema na ‘estratégia’, fica-se com a impressão de que falhou – ou falhou para alguns dos contribuintes para o texto – do que está em questão, usando-se uma terminologia que parece mais moldada à facilidade de leitura que ao rigor dos conceitos.

Na verdade, o único grande projecto na área do Hidrogénio abordado na imprensa por membros do governo como a ‘Nova Autoeuropa’ (uma mega central solar em Sines para a sua produção) tem como um dos ângulos menos compreensíveis a sua total desconexão com a fileira química para que esse hidrogénio iria ser utilizado, que permaneceria no hinterland europeu do mar do Norte. Ou seja, trata-se da antítese da fileira de que se fala.

  1. Apesar dos superlativos usados, esquece-se o hidrogénio na sua utilização mais óbvia (que se está a expandir por toda a Europa) a da alimentação de locomotivas de caminhos-de-ferro em alternativa à electrificação, propondo-se antes uma aposta na ‘rede ferroviária elétrica nacional’;
  2. Abordam-se três dos temas recorrentes que têm sido usados na defesa do hidrogénio: ‘o hidrogénio pode ser também uma solução para a descarbonização de algumas das indústrias que têm maior dificuldade em fazê-lo, como as siderurgias, as cimenteiras e as indústrias químicas.’ (p.97) apenas para algumas páginas mais tarde se dizer que ‘a substituição do clinquer por outros materiais, a eletrificação dos processos industriais e a aposta em tecnologias de rutura, como o puré oxifuel ou o Laylac. Na área das siderurgias, a passagem do alto forno para o forno elétrico reduziu drasticamente as emissões,’ (p.105).

O oxifuel é uma das várias tecnologias que facilitam a utilização de formas mais correntes de energia, e não faço ideia o que seja o ‘Laylac’, mas a questão essencial é que, tecnologicamente, como o diz ‘a estratégia’ na página 105 contradizendo o que afirma na página 97, o hidrogénio não é essencial em nenhum desses planos. É claro que o hidrogénio é essencial na indústria química, mas ele pode ser obtido por fontes energéticas renováveis que nada têm a ver com o hidrogénio.

  1. A articulação do hidrogénio com a combustão de biomassa também defendida pela ‘Estratégia’ não tem também uma lógica compreensível. A combustão de biomassa é ambientalmente controversa (veja-se o ponto da situação neste estudo recente) e não se entende qual a vantagem de transformar a energia dessa combustão em hidrogénio em relação à gestão dessa combustão em função da procura de electricidade.

Como se costuma dizer em linguagem corrente para caracterizar mensagens cuidadas na forma mas vazias de conteúdo, ‘a estratégia’ é um documento ‘mais político do que técnico’ ou seja, serve para causar boa impressão política (e a acreditar nas sondagens que vi publicadas, acertou em cheio) mas não tem qualquer relevância como plano de acção real.

  1. Interesses privados a comandar o orçamento público

No meio de todo o arrazoado ‘hidrogénico’, o documento diz no entanto na página 46 três coisas essenciais:

  1. ‘As tecnologias do hidrogénio ainda não estão maduras do ponto de vista da sua aplicação comercial, e é importante reduzir os custos de produção, em particular da eletrólise da água, como é reconhecido pela Agência Internacional de Energia.’
  2. ‘No entanto, as tecnologias têm evoluído significativamente, o processo de redução de custos está a acontecer, o potencial é enorme…
  3. …e existe uma aposta clara da União Europeia para o desenvolvimento da fileira do hidrogénio como gás renovável. Neste contexto, a aposta de Portugal no hidrogénio faz todo o sentido.’

O principal problema real invocado em (a) – embora em linguagem eufemística – é que separar o hidrogénio da água por electrólise (principal procedimento com energia renovável) se revelou até hoje como ineficaz.

A afirmação feita em (b) é de tal forma vaga a pouco circunstanciada que não deveria existir em documentos tecnicamente relevantes. Implicitamente, faz-se crer que é essa a opinião da Agência Internacional de Energia, mas eu não conheço nenhuma projecção dessa agência feita nessa direcção e, em qualquer caso, não creio que ela seja a melhor fonte nesta matéria. Basta olhar para os erros clamorosos e sistemáticos nas estimativas que a Agência fez ao longo das últimas duas décadas sobre a evolução de custos relativos das várias formas de energia para nos apercebermos disso.

A questão central antes de se empenharem somas colossais de dinheiros públicos em investimentos energéticos baseados em hidrogénio é esta, é a de saber se os seus custos relativos às tecnologias concorrentes (que são hoje muito superiores) se vão tornar inferiores. Nada do que é do domínio público e que se baseia em investigação independente, e não em publicidade mascarada de ciência, nos permite hoje dizer que tal coisa é provável.

Resta acrescentar que um interesse ambiental potencial do hidrogénio está na quebra de dependência em relação a alguns metais raros necessários às actuais baterias elétricas – interesse que não é seguro – mas que ‘a estratégia’ não menciona, exactamente porque faz da mineração não um problema mas uma oportunidade de negócio.

Mas talvez mais importante do que isso, quando se pensa que há potencial para a inovação tecnológica, o que há a fazer é apostar na investigação e desenvolvimento, não em investimentos paquidérmicos feitos pelo ‘big-business’, mas pagos pelo erário público.

E em (c) temos a cereja no topo do bolo; ‘a Europa quer’ logo é bom e vamos todos enfiar o dinheiro que não temos nisso sem questionar, raciocinar ou sequer seguir qualquer tramitação democrática nessa tomada de decisão.

A ‘Europa’ também conhecida por ‘Bruxelas’ é uma entidade mítica que nos habituámos a usar para tudo justificar ou culpar mas que nada quer dizer. A verdade é que a decisão de financiar grandes empresas privadas (a maioria oriunda da exploração de combustíveis fósseis) com o erário público surgiu de um gigantesco investimento publicitário e de lobby junto das instâncias de decisão pública, tanto europeias como nacionais, sem que tenha havido qualquer debate independente e informado na matéria.

  1. Preservar o sistema democrático

Tão mítico como a ‘Europa’ é o ‘Estado’ que a crer nos inflamados debates retóricos que dominaram a política das últimas décadas, seria a pedra de toque que distinguiria a direita (liberal) da esquerda (planificadora).

A realidade é que os actores sociais gostam que o dinheiro público seja gasto com eles ou em matéria do seu apreço e não gostam que ele seja gasto com outros ou em matéria que não apreciam, e o resto é ideologia.

A primeira questão é saber se queremos subsidiar em somas, que não foram quantificadas em lado nenhum mas que serão seguramente da ordem dos milhares de milhões de euros, grandes grupos económicos para que eles montem mega-investimentos que usam hidrogénio como armazém de energia, ou se achamos que esse dinheiro pode ser aplicado com vantagem em investigação, desenvolvimento e disseminação para encontrar as melhores soluções energéticas renováveis.

O argumento de que o dinheiro é da ‘Europa’ por isso não faz mal se for desperdiçado é profundamente falacioso. Em primeiro lugar porque os cofres europeus são alimentados pelo dinheiro dos contribuintes. Em princípio, os países mais pobres pagarão um pouco menos do que o que recebem, mas a diferença será talvez da ordem dos 10% e seguramente não mais do que 25%.

Mas para além disso, esse dinheiro só é dado com cofinanciamento (se houver contribuição nacional), que varia bastante em função de vários critérios (o das regras de elegibilidade é talvez o mais importante e menos entendidos). Isso quer dizer que por cada euro recebido (que será como vimos apenas 10 a 25% de um euro) será necessário gastar outro tanto.

E por isso, o tal dinheiro que vem da Europa custa ao erário público algo que ultrapassa o valor nominal da contribuição europeia, contrariamente ao que a desinformação instalada nos quer fazer crer.

Para que as decisões possam ser democráticas e informadas, há duas questões essenciais a ter em conta.

A primeira é a da existência de organismos independentes (isto quer dizer independentes de interesses particulares, mas estritamente sujeitos a interesses públicos) e tecnicamente competentes capazes de avaliar o que se propõe em tempo útil.

O documento que apresenta ‘a estratégia europeia’ (o documento nacional reflecte fielmente a sua lógica) data de Julho deste ano, é mais publicitário e menos técnico que o seu congénere nacional, e surge depois de os números de investimento estarem acordados e os negócios feitos.

Essa estratégia, para ter sentido, deveria ter aparecido há anos, ser tecnicamente sólida, analisada por organismos independentes – com pareceres obrigatórios – e animar um debate em que todas as instituições que representam o cidadão – e no nosso sistema democrático, imperativamente os parlamentos, europeu, nacionais e regionais – estejam empenhados.

E mesmo aí, caso as soluções acordadas não sejam vistas como positivas pelo parlamento nacional, não há qualquer razão para que este se exima de dizer que não quer participar no programa europeu X ou Y. Se se parte do princípio que isso não irá acontecer, então teremos um parlamento que se limita a carimbar decisões tomadas noutras instâncias, tal e qual como acontece com os sistemas totalitários.

E é por tudo isso que, o único argumento substantivo apresentado na estratégia nacional em análise para se empenharem milhares de milhões de euros no hidrogénio – ‘a Europa quer’ – me parece técnica e democraticamente inaceitável.


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