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Sexta-feira, Março 29, 2024

A lei de Gresham e os contratos no ensino superior

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Da precariedade simples à precariedade qualificada, regada por lágrimas de crocodilo.Antes os precários eram os assistentes, que faziam tudo para os professores, mas que com o Estatuto de Carreira Docente Universitária passavam obrigatoriamente a professores se se doutorassem, portanto já não eram bem precários. E havia também professores e assistentes convidados, contratados, respectivamente por um período inicial de um ano e reconduzidos por períodos sucessivos de cinco anos, no caso dos professores e de três anos no caso dos assistentes, não. Deste modo, também não eram propriamente precários e podiam candidatar-se à carreira se reunissem as condições para o efeito.

Sem que a lei mudasse, mas por as instituições terem entrado numa lógica “empresarial” de ajustamento às flutuações da “procura”, a prática foi-se alterando: começaram a ser contratados como convidados docentes que reuniam as qualificações necessárias para pertencerem à carreira (falsos convidados), como convidados a tempo parcial docentes que tinham disponibilidade para exercerem funções a tempo integral (falsos tempos parciais) e os períodos de duração contratual eram artificialmente encurtados, uma vez que no fim do primeiro período se efectuava a denúncia do contrato para voltar a contratar o mesmo docente por um período curto. Quanto aos leitores de línguas vivas, muitos foram empurrados para recibos verdes, assim como alguns convidados de universidades e politécnicos (falsos recibos verdes).

A revisão dos Estatutos de Carreira Docente que Mariano Gago quis fazer adoptar em 2009 veio dar cobertura legal à degradação contratual com introdução de contratos de trabalho a termo certo indefinidamente renováveis para os convidados,  sendo de notar que se em alguns  casos uma maioria PSD-BE-PCP às vezes reforçada pelo CDS introduziu alterações na revisão estatutária de Gago, as medidas de prevenção de abusos contratuais foram na quase totalidade recusadas por uma maioria PS-PSD-CDS, às vezes reforçada pelo PCP, ou seja pelos partidos do arco do poder nas instituições do ensino superior.

Na altura um dos sindicatos intervenientes – o SNESup –  escreveu em comunicado sobre o comportamento de outros sindicatos: “Houve organizações sindicais que, contrariando a posição do SNESup defenderam a liberalização destas contratações. Daqui a uns anos estarão estas organizações sindicais a derramar lágrimas de crocodilo sobre a precariedade e sobre os novos precários, mas era agora que deveriam ponderar a sua posição.”

Da  multiplicação dos maus contratos à miragem  do PREVPAP

A Lei de Gresham – a má moeda expulsa a boa – tem de certo modo correspondência na contratação de docentes do ensino superior – o mau contrato, o seja, o contrato fora da carreira, expulsa o bom, o do professor de carreira.

Assim se tem passado com a celebração de contratos no ensino superior público a partir de 2009 utilizando sobretudo as figuras de professor e de assistente convidado e transformando-se o regime de tempo parcial numa contratação de facto à hora em que se lecciona  frequentemente em  tempo parcial mais horas do que em tempo integral. Histórias de terror que os sindicatos têm feito insistentemente chegar à comunicação social, com rios de lágrimas (de crocodilo …) pelas situações que alguns deles ajudaram a criar ou  manter.

Acresce que a renovação indefinida de contratos a termo, que o parlamento entendeu manter em 2010, não é admitida por nenhuma das duas modalidades de transposição a que a Directiva 99/CE/70 deu lugar em Portugal: a conversão automática em contrato por tempo indeterminado, cominada pelo Código do Trabalho e (imperfeitamente) acolhida, quanto aos professores do básico e secundário, sob pressão “europeia”, pela “lei-travão” de Nuno Crato, e o limite máximo de contratação a termo decorrente do regime geral de função pública, sem possibilidade de conversão automática, por alegadamente violar o princípio constitucional de admissão na função pública mediante concurso. Ser “carreira especial” não pode ser justificação para tudo.

Quando em 2016 e 2017 começaram a soprar, ao menos verbalmente, novos ventos contra a precariedade, as carreiras especiais apareciam excluídas do PREVPAP, e faria sentido que os sindicatos docentes pedissem no ensino superior a renegociação das normas dos Estatutos de Carreira que permitiam os abusos ou a extensão da lei – travão de Nuno Crato. Mas, apesar de um deles – o SNESup – já ter reunido 4000 assinaturas, que foram crescendo sem qualquer novo apelo até às 6000, a opção foi outra, e desastrosa q.b.: pedir a aplicação do PREVPAP, que por um lado não permitia  integrar a maioria dos precários e por outro deixava intactos os mecanismos de contratação.

Um muito comentado texto do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas veio explicar que as universidades públicas  precisavam de docentes e investigadores jovens, precários, mal pagos, de preferência doutorados, numa palavra, de ASSISTENTES modelo anos 1970! O Ministro Manuel Heitor não vai tão longe, reconhece a necessidade de evitar que se abuse dos convidados a tempo integral, mas vota a generalidade dos convidados às gemonias, pensando  provavelmente nos “acumuladores” que conhece no IST. Os próprios sindicatos, ao assumirem a lei do PREVPAP, excluíram da “regularização” os docentes não doutorados, que não podem ser integrados em lugar de carreira, os docentes em tempo parcial e até os leitores de línguas vivas, ainda que em tempo integral e com doutoramento, por não haver carreira em que possam ser integrados. Entretanto a análise da integração das centenas de casos efectivamente abrangidos pelo PREVPAP marca passo nas comissões e a máquina fabrica diariamente  novos precários.

Por uma solução em linha com a lei geral

As carreiras do ensino superior são, juntamente com a de investigação científica,  as únicas em que nos estatutos coexiste a contratação para a carreira com a contratação para fora da carreira. Regularizar a situação dos precários não significa integrar à força na carreira  os que não têm condições de acesso a ela ou querem exercer outras funções a título principal, significa dar-lhes condições de estabilidade que lhes permita investir na actividade profissional docente sem constrangimentos ou sujeição a pressões.

A solução que em 2010 esteve em cima da mesa para os convidados na apreciação parlamentar da revisão dos estatutos de carreira “A duração dos contratos a termo certo, incluindo as renovações, não pode exceder a duração decorrente do regime de contrato de trabalho em funções públicas, salvo  quando no Estatuto se disponha expressamente o contrário e que foi rejeitada,  visava prevenir o regabofe que depois se gerou sem afastar a possibilidade de celebrar contratos de três, cinco, seis anos, com personalidades que se propusessem (re) estruturar  o ensino de disciplinas ou grupos de disciplinas específicos. A sua reedição hoje em dia seria difícil de articular com a lei geral da função pública e poderia ter efeitos negativos se replicada no ensino superior privado onde nominalmente vigora o regime do Código do Trabalho e os contratos a termo certo não podem ter tal duração.

A solução que tenho vindo a preconizar tem, espero, o mérito da simplicidade: contratar o pessoal docente de carreira em regime de contrato em funções públicas e contratar professores convidados, assistentes convidados e leitores, independentemente do regime de dedicação ou da existência de acumulação de funções, no  regime geral do contrato de trabalho consagrado pelo Código de Trabalho, convertendo-se os contratos a termo em contratos por tempo indeterminado nos termos do referido Código.

Os contratos por tempo indeterminado de professores convidados, assistentes convidados e leitores extinguir-se-iam igualmente, com a indemnização legal, nos termos do Código de Trabalho, com um regime adaptado que salvaguardasse a autonomia técnica e independência no exercício de funções, tornando embora lícita a cessação da relação laboral  com fundamento na necessidade de prover no posto de trabalho um professor de carreira admitido em concurso.

 

 

Trata-se afinal, apenas, de investir todos nos direitos e deveres que o 25 de Abril reconheceu aos trabalhadores por conta de outrem.

Na carreira do ensino superior politécnico não era bem assim e esse direito só foi conquistado em 2009 na revisão de ambos os Estatutos, e os beneficiários da medida estão a extinguir-se.
Seja-me perdoada a talvez excessiva simplificação a que tive de recorrer no presente enunciado da situação então existente.
Num contexto, é preciso dizer, de “financiamento por fórmula” em que quer a receita das propinas quer as transferências da tutela dependiam do número de alunos.
Na carreira do ensino superior politécnico, como o primeiro contrato  podia ir “até” um ano, chegou a haver contratos por  15 dias.
Inclusive a celebração de contratos a zero por cento, que já então proliferavam no IST.
O BE endossou na altura a generalidade das propostas do SNESup, a cuja Direcção o autor do presente artigo presidia no momento da apreciação parlamentar.  Manifesto a minha simpatia a José Soeiro que viu uma proposta fundamental sobre a contratação de professores convidados: “Verificando-se que entre as candidaturas apresentadas figuram as de individualidades que manifestam interesse em exercer as suas funções em regime de integração na carreira e reúnem os requisitos exigidos, proceder-se-á, quando houver necessidade de preencher o lugar, a abertura de concurso documental para a respectiva área disciplinar e categoria de carreira.” contrariada por uma coligação PS-PSD-CDS-PCP confortada  num parecer da FENPROF.
Ainda que o SNESup procure salvaguardar a  situação dos que dão seis ou mais horas de aulas.

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