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Terça-feira, Abril 23, 2024

A poesia e a fome voraz de Raul Seixas, o último romântico

Adrienne Savazoni Morelato, de São Paulo
Adrienne Savazoni Morelato, de São Paulo
Mestre e doutora em Estudos Literários pela Unesp, é professora da rede estadual de São Paulo e poeta

Raul Seixas é conhecido como o “pai do rock”, e suas letras são lembradas pela irreverência, crítica social e política. Consegue mesclar como poucos o humor às tragédias e fazer da música um manifesto contra a alienação e o a falta de inteligência. “É pena eu não ser burro, eu não sofria tanto assim”, ironizou ele na canção Só Pra Variar. Mas existe uma face de Raul pouco conhecida, até mesmo de seus fãs.

À Ana Cecília, minha filha…

Trata-se de seu lado romântico e poético, que é talvez o mais biográfico de suas canções. O romantismo em Raul Seixas é muito parecido com os dos poetas da segunda e terceira geração romântica. A melancolia, o pessimismo, a exarcebação da subjetividade, o amor não correspondido, a desilusão com a realidade, o saudosismo, a busca do amor como salvação – tudo isso convive com a liberdade e o erotismo frutos da própria personalidade do poeta e de sua visão frente ao mundo. E ele consegue, além de tudo, se inserir dentro de sua música, outra característica própria do Romantismo.

Há até como estabelecer um roteiro afetivo seguindo suas músicas:

“É pena que você pense
que sou seu escravo
dizendo que sou seu marido
não posso partir”.

Mas, por vezes, as metáforas são belíssimas – e a associação e profusão de seus sentimentos com o meio externo e com a natureza se seguem:

“Como as pedras que ficam imóveis
Eu fico ao seu lado
sem saber
dos amores que a vida me trouxe
eu não pude viver.”

O que parece ser um grito pela liberdade do autor e uma carta pró-infidelidade se transforma em uma ode a todo tipo de amor. Afinal, “ninguém é feliz tendo amado uma vez”. Mas a comparação de seu ser com a chuva e de sua vida conjugal com a pedra – ou de todas as vidas conjugais com a pedra – é que dá o tom melancólico e figurativo da letra:

“Eu perdi o meu medo
o meu medo da chuva
Pois a chuva voltando
Traz as coisas do ar”.

É como se o poeta se transformasse na própria chuva, matéria líquida que se complementa através da matéria gasosa – esta, sim, perene, efêmera. E quando ela se completa caindo para a terra, o elemento fixo, ainda assim traz consigo essa marca do escapismo que perpassa o ar. Ele é água e vento, o seu tempo é outro, um tempo não contável e não medido. Perder o medo da chuva é descobrir o seu verdadeiro ser, não deixar-se transformar em pedras choronas que lamentam não poder sair do lugar, que não aceitam a mudança do tempo. O que faz desse poema-letra uma ode, antes de tudo, para o autoamor e para o autoconhecimento.

O autoconhecimento é outra matéria palpável explorada por este baiano arretado que não tinha medo da morte, porque sabia que já era eterno através da arte. Como um bom poeta romântico, a morte também será cantada como se fosse a última mulher amada: “A morte, surda, caminha ao meu lado / E eu nem sei em que esquina ela vai me beijar”. Neste poema-música, Canto para a Minha Morte, Raul indaga quais serão as formas tantas como seu corpo físico vai morrer – mas a morte que mais o atormenta é a do esquecimento ou as pequenas mortes que acontecem todos os dias:

Eu sei que determinada rua que eu já passei
Não tornará a ouvir o som dos meus passos
Tem uma revista que eu guardo há muitos anos
E que nunca mais eu vou abrir
Cada vez que eu me despeço de uma pessoa
Pode ser que essa pessoa esteja me vendo pela última vez

Esse poema-música lembra um conto do escritor romântico francês Théophile Gautier, La mort amoureuse, em que a amada morta se confunde com a própria figura da morte:

Vou te encontrar vestida de cetim
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho que eu quero e não desejo, mas tenho que encontrar

Contudo, a amada morte não é uma amante exclusiva do poeta – é, sim, como a chuva da qual ele não tem medo e que arrasta para baixo, para o chão e para a terra as coisas do ar. Cíclica como a chuva, ela beija a todos os seres e faz deles água e húmus para alimentar um novo ciclo:

Oh morte, tu que és tão forte
Que matas o gato, o rato e o homem
Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar
Que meu corpo seja cremado e que minhas cinzas alimentem a erva
E que a erva alimente outro homem como eu.

E se nos transformamos em água e húmus depois de uma chuva torrencial – a morte, em todas as suas esferas e dimensões do corpo e do tempo –, o melhor que temos de fazer é deixar a calmaria chegar e acalentar uma criança até ela dormir, como fazia Raul com sua filha Vivi, ao som da música-poema Água Viva:

Eu conheço bem a fonte
Que desce daquele monte
Ainda que seja de noite

Nessa fonte tá escondida
O segredo dessa vida
Ainda que seja de noite

“Êta” fonte mais estranha
Que desce pela montanha
Ainda que seja de noite

Sei que não podia ser mais bela
Que os céus e a terra bebem dela
Ainda que seja de noite

Sei que são caudalosas as correntes
Que regam céus, infernos, regam gentes
Ainda que seja de noite

Aqui se está chamando as criaturas
Que desta água se fartam mesmo às escuras
Ainda que seja de noite
Ainda que seja de noite…

Eu conheço bem a fonte
Que desce daquele monte
Ainda que seja de noite

Porque ainda é de noite
No dia claro dessa noite!
Porque ainda é de noite
No dia claro dessa noite!

Nesta obra-prima, conseguimos notar como Água Viva foi meticulosamente construída com um poema, com suas estrofes terciárias e rimas de dois em dois. Além da estrutura, cautelosamente trabalhada, há as imagens lindíssimas da fonte alimentando os céus e a terra, regando céus, infernos e gente como um caminho poderoso de cura, satisfação e desejo. Essa fonte só aparece de noite, porque alimenta e acalanta, como o pai nina à sua filha, ou como a mãe oferece o seio ao seu bebê. Todas as criaturas dela se fartam mesmo às escuras, porque ela limpa, recicla, transforma.

Na verdade, a escuridão é dos outros, nunca da fonte, a qual brilha intensamente dentro desta noite. A única que guia. A fonte como símbolo do mistério, da transposição da vida, da realização dos desejos, como uma passagem, um portal sem nenhum medo de entregar o ser para uma nova dimensão, talvez a dimensão do sonho e de um novo amanhecer cheio de esperança: “no dia claro dessa noite”. E é durante a noite que a criança cresce, mas também é durante a noite que ela descansa e vive seu sonho. Caudalosa a corrente, leva embora todos os dissabores e desgostos, ficando apenas a vida pura e simples de alguém que matou a sua sede de poesia através da Água Viva.

Esse lado do Raul que poucos conhecem, o poeta, o amante e o romântico, confesso que é o lado que mais amo nele. Na magistral Ave Maria da Rua, uma letra e uma melodia que fazem chorar qualquer ser que tenha um pouco de sensibilidade e ame a sua mãe e que, através dela, vê a força e a dor de todas as mulheres. Uma verdadeira oração para a Grande Mãe, para a Deusa e sua força misteriosa, para resgate do Eterno Feminino, o Feminino poderoso, ético e amoroso, não submisso, assim como disse Nietzsche. O amor da mulher é o amor que segura a barra, faz adormecer os criminosos, alivia todas as culpas, verdadeiro amor que cuida, verdadeiro amor que ama, sua força criadora é múltipla e infinita.

No lixo dos quintais
Na mesa do café
No amor dos carnavais
Na mão, no pé, oh
Tu estás, tu estás
No tapa e no perdão
No ódio e na oração

Teu nome é Yemanjah (Yemanjah)
E é Virgem Maria
É Glória e é Cecília
Na noite fria
Oh, minha mãe
Minha filha tu és qualquer mulher
Mulher em qualquer dia

Bastou o teu olhar (teu olhar)
Pra me calar a voz
De onde está você
Rogai por nós
Ooooh, Ooooh!
Minha mãe, minha mãe
Me ensina a segurar
A barra de te amar

Não estou cantando só
Cantamos todos nós
Mas cada um nasceu
Com a sua voz,
Ooooh, Ooooh!
Pra dizer, pra falar
De forma diferente
O que todo mundo sente

Segure a minha mão
Quando ela fraquejar
E não deixe a solidão
Me assustar
Ooooh, Ooooh!

Minha mãe, nossa mãe
e mata minha fome
Nas letras do teu nome
Ooooh, Ooooh!

Minha mãe, nossa mãe
E mata minha fome
Nas letras do teu nome
Ooooh, Ooooh!
minha mãe, nossa mãe
E mata minha fome
Na glória do teu nome.

Esse poema, lido muitas vezes como uma ode à mãe, na verdade, é uma ode à mulher em geral e à sua capacidade criadora e mantedora da vida:

“Teu nome é Iemanjá
É virgem Maria
É Glória, é Cecília
Na noite fria”.

Neste sentido, os nomes e as faces de diferentes mulheres se misturam – filha, mãe e irmã em busca de dessa poderosa energia feminina que o poeta deseja beber e se fartar.

É a figura da fome que se sacia não apenas na mesa de café, ou com o colo e o aconchego – mas através da palavra, da poesia “nas letras do teu nome” que permeia o ser feminino nessa música empoderado, tal como um ente divino. E como um ente divino, merece todas as orações. Por essa razão, a melodia deve ser assim como um canto de coral, uma ópera, uma peça clássica. Merece ser executada, como os grandes cânticos, puros e solenes. E o nome Ave Maria da Rua traz toda essa divindade e esse poder para as mulheres comuns do cotidiano, as da rua.

E por que não falar da linda Coisas do Coração?

Quando o navio finalmente alcançar a terra
E o mastro da nossa bandeira se enterrar no chão
Eu vou poder pegar em sua mão
Falar de coisas que eu não disse ainda não

Coisas do coração!
Coisas do coração!

Quando a gente se tornar rima perfeita
E assim virarmos de repente uma palavra só
Igual a um nó que nunca se desfaz
Famintos um do outro como canibais

Paixão e nada mais!
Paixão e nada mais!

Somos a resposta exata do que a gente perguntou
Entregues num abraço que sufoca o próprio amor
Cada um de nós é o resultado da união
De duas mãos coladas numa mesma oração!

Coisas do coração!
Coisas do coração!

A visão platônica do amor romântico da segunda geração se mistura mais uma vez a doses de sensualidade. Contudo, esse amor sempre se realiza na posteridade – tanto é que o poeta se expressa sempre no futuro do subjuntivo: “Quando o navio finalmente alcançar a terra / e o mastro da nossa bandeira se enterrar no chão”. O amor, aqui, é um evento futuro, só realizável depois dessa grande navegação. A realização carnal do amor só acontece depois desse navegar platônico. O encontro alcançado, a poesia é permitida. Mais uma vez, vemos na música do Raul uma reflexão metalinguística, enquanto o amor se dissolve na cadência da melodia, no encontro das rimas “perfeitas” formando o que ele chama de “uma palavra só”, “igual a um nó que nunca se desfaz”, “faminto como dois canibais”, o que ressalta mais uma vez a figura da fome.

Do que Raul Seixas tem fome realmente? Como ele pode ter fome se nos alimenta há mais de 30, 40 anos com suas músicas e suas letras? Raul, como homem, tinha fome de vida e de liberdade. Pois, como poeta, sua fome é insaciável, porque é mista de justiça, amor e, principalmente, de poesia como aquela única a transformar a realidade.


Texto original em português do Brasil


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