Percorrendo o sítio on-line da Bloomberg deparei-me na semana passada com um artigo de Stephen Roach, um economista e investigador da prestigiada Universidade de Yale, que abordava a questão do futuro da moeda norte-americana.
Não sendo frequente encontrar textos na Bloomberg que difundam ideias heterogéneas, parece-me de o ler e sobre ele reflectir; mas antes de passar a mais comentários, aqui deixo a tradução que dele fiz:
A Queda Do Dólar Está A Aproximar-se
por Stephen Roach
A era do “privilégio exorbitante” do dólar americano como a principal moeda de reserva do mundo está a chegar ao seu fim. O ministro das Finanças da França, Valery Giscard d’Estaing, cunhou essa frase nos anos 60 em grande parte por frustração, lamentando uns EUA que atraíram livremente o resto do mundo para apoiar o seu inflacionado padrão de vida. Durante quase 60 anos, o mundo reclamou, mas nada fez contra isso e esses dias acabaram.
Já pressionados pelo impacto da pandemia da Covid-19, os padrões de vida dos EUA estão prestes a ser esmagados como nunca antes se viu. Ao mesmo tempo, o mundo está a ter sérias dúvidas sobre a suposição outrora amplamente aceite do excepcionalismo americano. As moedas estabelecem o equilíbrio entre essas duas forças: os fundamentos económicos domésticos e as percepções estrangeiras da força ou fraqueza de uma nação. O equilíbrio está a mudar e uma queda do dólar pode estar prestes a acontecer.
As sementes desse problema foram plantadas por um profundo déficit na economia interna dos EUA, que era flagrantemente aparente antes da pandemia. No primeiro trimestre de 2020, a poupança nacional líquida, que inclui os valores ajustados da poupança das famílias, empresas e sector governamental, caiu para 1,4% do rendimento nacional. Esse foi o valor mais baixo desde o final de 2011 e um quinto da média de 7% registada entre 1960 e 2005.
Com falta de poupança doméstica, e querendo investir e crescer, os EUA aproveitaram muito o papel do dólar como moeda de reserva principal do mundo e utilizaram fortemente as economias excedentes do exterior para fechar o círculo. Mas não sem um custo. Para atrair capital estrangeiro, os EUA têm um déficit anual na sua conta corrente – que é a medida mais ampla de comércio porque inclui o investimento – desde 1982.
A Covid-19, e a crise económica que desencadeou, estão a esticar essa tensão entre a poupança e a conta corrente até ao ponto de ruptura e a responsabilidade deve-se aos crescentes déficits orçamentais do governo. De acordo com o bipartidário Gabinete de Orçamento do Congresso, é provável que o déficit orçamental federal suba em 2020 para um recorde em tempos de paz de 17,9% do PIB, antes de se reduzir para 9,8% em 2021.
Uma parcela significativa do apoio fiscal foi inicialmente poupada pelos trabalhadores norte-americanos desempregados e orientados pelo medo, o que tende a melhorar algumas das pressões imediatas sobre a economia nacional em geral. No entanto, dados mensais do Departamento do Tesouro mostram que a expansão do déficit federal relacionada com a crise superou em muito o aumento da poupança pessoal motivada pelo medo, com aquele a atingir em Abril 5,7 vezes o déficit no primeiro trimestre, ou 50% maior que o aumento da poupança pessoal no mesmo mês.
Por outras palavras, a intensa pressão descendente está agora a aumentar na já bastante deprimida poupança das famílias. Comparado com a situação durante a crise financeira global, quando se registou pela primeira vez uma poupança negativa das famílias que atingiu uma média de -1,8% do rendimento nacional entre o terceiro trimestre de 2008 e o segundo trimestre de 2010, é agora provável uma queda para valores negativos muito mais acentuada, atingindo possivelmente valores inéditos de -5% a -10%.
E é aí que o dólar entra em jogo. Neste momento, o dólar continua forte, beneficiando da típica procura como valor de refúgio há muito evidente durante os períodos de crise. Em relação à ampla variedade de parceiros comerciais dos EUA, os dados do Bank for International Settlements mostram que, apesar de uma pequena derrapagem no início de Junho, o dólar subiu quase 7% entre Janeiro e Abril em valores ajustados pela inflação e em termos ponderados, para um nível que se situa 33% acima do mínimo de Julho de 2011.
Mas o próximo colapso na poupança aponta para um acentuado aumento do déficit, provavelmente muito além do recorde anterior de -6,3% do PIB atingido no final de 2005. Moeda de reserva ou não, o dólar não será poupado perante essas circunstâncias. A questão-chave é o que desencadeará o declínio?
Não é preciso procurar mais além da administração Trump, cujas políticas comerciais proteccionistas, abandono dos pilares arquitectónicos da globalização, como o Acordo de Paris sobre o Clima, a Parceria Transpacífica (TPP), a Organização Mundial da Saúde e as alianças tradicionais do Atlântico, e a má gestão da resposta da Covid-19, juntamente com uma turbulência social que não se via desde o final 1960, são manifestações dolorosamente visíveis da acentuada diminuição da liderança global da América.
À medida que a crise económica começar a estabilizar, esperamos que no final deste ano ou no início de 2021, essa realidade deverá chegar precisamente quando a poupança interna estiver em queda. O dólar poderá facilmente testar os seus mínimos de Julho de 2011, perdendo até 35% em valores ajustados pela inflação e pelo comércio.
O próximo colapso do dólar terá três implicações principais: será inflacionário – um bem-vindo amortecedor de curto prazo contra a deflação, mas, em conjunto com o que provavelmente será uma fraca recuperação económica pós-covid, mais um motivo para se preocupar com o início da estagflação – a difícil combinação de fraco crescimento económico e aumento da inflação que causa estragos nos mercados financeiros.
Além disso, na medida em que um dólar mais fraco é sintomático de um déficit explosivo, originará um aumento acentuado do déficit comercial da América. As pressões proteccionistas na maior parte do déficit multilateral norte-americano com 102 países – nomeadamente o desequilíbrio bilateral chinês – vão sair pela culatra e desviar o comércio para outros produtores de custo mais alto, tributando efectivamente os impotentes consumidores americanos.
Finalmente, diante do desejo mal planeado de Washington de dissociação financeira da China, quem financiará o déficit de poupança de uma nação que finalmente perdeu os seus exorbitantes privilégios? E em que termos – ou seja, taxas de juros – será esse financiamento exigido?
Tal como a Covid-19 e a turbulência racial, a queda do todo-poderoso dólar lançará a liderança económica global de uma economia americana de baixa poupança, sob uma luz muito severa. Privilégios exorbitantes precisam ser conquistados, não tomados como garantidos.»
Confirmando a ideia, partilhada por muitos, que a hegemonia mundial do dólar caminha a passos rápido para o seu fim, o artigo não deixa de merecer leitura crítica em alguns pontos, nomeadamente ao atribuir à administração Trump uma responsabilidade exclusiva pelo declínio económico, quando na realidade o processo foi iniciado, em 1971 e sob a administração Nixon, com a decisão dos EUA abandonarem unilateralmente o padrão dólar-ouro estabelecido em 1944 pelo Acordo de Bretton-Woods.
Também não espanta que este antigo presidente do Morgan Stanley Asia tenha deixado por referir que não foi a decisão de Trump de abandonar a Parceria Transpacífico (TPP) ou a Organização Mundial de Saúde (OMS) que enfraqueceu a liderança global dos EUA, mas sim as sucessivas guerras de agressão, os golpes orquestrados, os embargos, as sanções económicas e as políticas comerciais injustas, implementadas por sucessivas administrações (republicanas ou democratas) que foram minando o poder de Washington a ponto de já não conseguirem disfarçar as suas fraquezas e as da sua moeda.
E o pior é que quando assistimos a claros sintomas de mudança – com a China e a Rússia a desfazerem-se rapidamente das suas reservas em moeda americana – também se avolumam outros sinais preocupantes, que ao nível interno norte-americano poderão descambar no avolumar de tensões sociais mais graves que as recentemente registadas por causa da morte de George Floyd e do movimento “Black Lives Matter” (país que segundo o Small Arms Survey apresentava em 2017 uma estimativa de 120,5 armas civis por habitante) ou até das eventualmente resultantes de uma não reeleição de Donald Trump.
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