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João de Sousa

Sábado, Outubro 12, 2024

A segunda morte de Hugo Chávez

Venezuela celebra fim da autocracia cleptocráticaA palavra aos Especialistas

A cleptocracia multibilionária venezuelana é uma das maiores mentiras do mundo, acobertada sob um falso manto esquerdista. Vivi lá seis anos e praticamente todos os muitos amigos e amigas que lá deixei apoiaram de início o Chávez. Entre eles, havia muitos claramente de esquerda, outros de centro-esquerda e outros ainda de direita. Todos apoiaram Chávez quando ele apareceu, nos anos 90, porque ele prometia limpar o país da classe política corrupta dos dois partidos (um democrata-cristão e outro social-democrata) que se alternavam democraticamente no governo desde 1958, quando caiu a ditadura do general Marcos Pérez Jiménez

Mas dois anos depois da ascensão de Chávez o desencanto era geral e o apoio depressa se transformou em aberta oposição. A situação económica não parava de deteriorar-se rapidamente devido à asfixia da iniciativa privada, a situação política também, a criminalidade atingiu níveis impensáveis e a promessa de limpeza da corrupção política transformou-se na simples substituição dos anteriores dirigentes políticos corruptos por uma nova classe de dirigentes corruptos muito mais vorazes. E muitos venezuelanos optaram, progressivamente, por exilar-se em Espanha, em Itália, na Colômbia, nos EUA, no Canadá e até cá em Portugal, um pouco por todo o mundo…

pimentafrancaUm país riquíssimo em tudo, com recursos minerais imensos, rico produtor de petróleo, com uma agricultura riquíssima e uma classe média muito bem preparada, sucumbiu a 16 anos de uma política errática, imposta por um poder cada vez mais loucamente corrupto que tudo fez para cercear a iniciativa privada, matando a economia.
Enquanto o núcleo central dos dirigentes do chavismo enriquecia sem limites, a classe média e o povo penavam duramente, enfrentando carências de todo o tipo. Há anos que a escassez de bens de primeira necessidade é brutal, não há nem comida, cortes constantes de electricidade e água, todos os serviços públicos se deterioraram…

Os chavistas analisam a sua derrota e culpam o boicote estrangeiro pelo sucedido. Mais que vítima de boicote estrangeiro, a Venezuela chavista foi vítima do boicote interno organizado pelo regime, que destruiu a economia ao atacar sem tino nenhum a iniciativa privada e asfixiou uma agricultura próspera que garantia a auto-suficiência alimentar, ao implementar uma reforma agrária completamente falhada, o que tornou a Venezuela totalmente dependente das importações no plano alimentar.
Coisas inimagináveis na Venezuela que eu conheci, o país rico e da abundância de tudo, do pleno emprego, onde nem os pobres passavam fome…

Entretanto, o chavismo nem sequer investia os vastos recursos petroleiros no país, não tem uma única obra de regime para mostrar, nem estradas nem grandes edifícios, nem sequer um serviço nacional que assegure assistência na saúde aos cidadãos venezuelanos. A saúde continua completamente entregue ao mercado e os hospitais públicos não conseguem responder às situações porque faltam os medicamentos e equipamentos de todo o tipo, já que não há dinheiro para o comprar no exterior. Quem adoecer e não tiver seguro nem dinheiro na Venezuela morre…

 

Um cataclismo político

No passado domingo, 16 anos de autocracia chegaram ao fim. Ou melhor, ao princípio do fim. Nicolás Maduro continua na presidência, a governar (ou desgovernar, mais propriamente), foi eleito em 2013 e o seu mandato termina em 2019, a batalha ainda vai durar…
O povo fartou-se da falta de tudo e até a própria base eleitoral do chavismo (que a teve e durante muitos anos) se esboroou.

Ninguém aguenta ter que passar dias inteiros em filas (“colas”, como se diz lá) para comprar papel higiénico, ou um litro de leite, ou fraldas para bebé, ou detergente, ou pasta de dentes, ou uma lâmpada, ou um quilo de arroz ou feijão…
Ninguém aguenta um regime que fechou todas as rádios e canais de TV que não mostravam total submissão à linha oficial do regime, asfixiando a liberdade de expressão de pensamento.

Ninguém aguenta um regime que se apoia num partido, o PSUV – Partido Socialista Unificado de Venezuela, que mantém milícias civis armadas (através dos chamados Círculos Bolivarianos, estruturas partidárias locais espalhadas por todo o país, sob a capa de órgãos revolucionários de “poder popular”…

Tenho estado nestes dias em constante contacto por chat com vários amigos de Caracas – e alguns que se viram obrigados a exilar-se no estrangeiro – e estão todos loucos de alegria. É um 25 de Abril. Nem querem acreditar.
A vitória da oposição foi um cataclismo político. 112 deputados da oposição (um a mais que o necessário para a maioria qualificada) contra 51 do governo, havendo ainda quatro deputados em suspenso, dependentes de operações de recontagem. Um tsunami. Em Caracas, bastião máximo do chavismo, os chavistas não conseguiram eleger nem um único deputado…venezuela

Continuam no poder o presidente Nicolás Maduro e o seu governo sem qualquer apoio político parlamentar… Trata-se de um homem realmente medíocre, burro que nem um tamanco, uma caricatura trágica de Chávez, que de burro nada tinha (pelo contrário) e que, no meio da sua loucura, era um dirigente político com notável carisma pessoal…

Recordo que o regime venezuelano não é parlamentar, é presidencialista, o governo não depende da Assembleia Nacional. Mas as leis têm que passar pela Assembleia, que agora está totalmente nas mãos da oposição, com maioria qualificada. Que fará Maduro? Fará aprovar outra “Lei Habilitante”, um estratagema constitucional inventado por Chávez para governar por um ano por decreto passando por cima da Assembleia caso não tivesse a maioria? Pode ainda fazê-lo, porque a entrada da nova Assembleia só terá lugar a 5 de Janeiro e até lá ainda tem alguns dias com um órgão parlamentar em funções e que lhe é favorável…

Uma coisa é certa: as Forças Armadas da Venezuela não estão dispostas a suportar uma fraude, de outra forma a Comissão Nacional Eleitoral (totalmente composta por chavistas) que ontem levou seis horas a dar os resultados oficiais (o prazo normal máximo seria de 90 minutos), teria inventado mais um resultado fictício (como aconteceu em ocasiões anteriores) para que o PSUV (partido chavista no poder) se mantivesse em maioria na Assembleia Nacional…

 

Delicadas tarefas pela frente

E agora? Como administrar desde o poder legislativo – a Assembleia Nacional – uma vitória tão clara, quando todos os órgãos de poder – desde o Supremo Tribunal de Justiça até ao Conselho Nacional Eleitoral estão TOTALMENTE nas mão de chavistas? Há o risco de a oposição se transformar numa guerrilha enclausurada no Capitólio Federal (sede da Assembleia), o que poderia transformar o governo de Maduro numa vítima.

Como administrar a desmontagem da autocracia chavista sem dor? Um desafio imenso, os dirigentes da MUD terão que actuar com extrema diplomacia e inteligência para que esse processo não degenere em violência civil…
Os primeiros passos estão já aí. Todos os dirigentes da Mesa de la Unidad Democrática (MUD), a plataforma de unidade que venceu as eleições de domingo, anunciaram já que a primeira lei que a nova Assembleia irá promulgar visará a libertação imediata dos numerosos presos políticos que o regime chavista detém nos seus cárceres por simples exercício do direito de dissenção política.

Entre eles estão alguns dos principais líderes da oposição democrática, nomeadamente Leopoldo López ou Manuel Rosales e muitos outros. O regime tem também presos juízes por recusarem directivas políticas e oficiais superiores das Forças Armadas que, ao longo dos 16 anos de chavismo se afastaram do seu camarada Hugo Chávez.
Temos que estar contentes pelos venezuelanos porque começaram a livrar-se um pesadelo, já que a experiência chavista correu da pior maneira possível, foi um falhanço total. Uma perversão do socialismo. Um abuso, um ataque brutal a toda a população. Um anacronismo também. Durante décadas os venezuelanos não quererão ouvir mais falar em socialismo, com toda a certeza…

Alto na prioridade da oposição estará também com certeza o desarmamento dos já mencionados Círculos Bolivarianos, já que a existência de milícias partidárias armadas é incompatível com uma democracia. Veremos como a organização de base do PSUV e as Forças Armadas colaboram nessa iniciativa, que será sem dúvida um delicadíssimo que corre o risco de degenerar em violência civil.

Mas a Mesa de la Unidad Democrática (MUD) – o movimento unitário vencedor – é um movimento muito diversificado no qual, embora os democratas de diversas tendências sejam a larguíssima maioria, há figuras importantes e influentes que vão desde a extrema-esquerda até à extrema-direita…

A MUD acabará por dividir-se. É constituída por vários partidos e movimentos unidos contra o chavismo. Se o chavismo claudicar, autonomizar-se-ão, dividir-se-ão, muito naturalmente. E depois o povo decidirá, já menos condicionado, com plena liberdade de expressão, sem o sistema mediático aprisionado pela autocracia…

José-António Pimenta de França, Jornalista

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