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Quarta-feira, Março 27, 2024

Afeganistão 2023

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Mas nem a China parece ter contado com a surpreendente independência do Estado Islâmico, que parece ameaçar directamente os seus interesses. Esta dissidência da Al-Qaeda, criada pelo Irão e adubada pela política norte-americana parasitada pelo Irão, tornou-se uma peça chave no puzzle do Médio Oriente – onde serviu fundamentalmente os interesses de Teerão.

  1. O acordo americano-afegão

Um dos temas mais importantes equacionados por Cynthia Farahat no seu livro sobre o aparelho secreto da Irmandade Muçulmana é o das negociações para a reinstalação dos Talibã no governo afegão, que a autora aborda sob o significativo título de ‘Doze políticas letais norte-americanas para restabelecer o Afeganistão como base internacional jihadista’.

As negociações com os Talibã começaram em 2009, segundo declarações públicas de Hilary Clinton citadas por Farahat, baseadas em três ‘linhas vermelhas’; (1) a renúncia à violência; (2) o respeito pela Constituição afegã e (3) o abandono da aliança com a al Qaeda. As negociações foram intensificadas depois da abertura da representação diplomática dos Talibã no Qatar em 2013, – país que abriga o CENTCOM, comando central norte-americano.

As linhas vermelhas eram óbvia fantasia, e ninguém com o mínimo de informação e bom-senso poderia ter alguma dúvida de que o regresso dos Talibã ao poder iria ser feito pela violência, rasgando todos os princípios de um Estado de Direito – e nomeadamente, o regresso do apartheid de género – e que significaria o regresso do país a centro internacional do Jihadismo. A única surpresa aqui foi a da continuidade da política norte-americana, que permaneceu inalterada mesmo durante a passagem de Donald Trump pela presidência americana.

Os EUA, com o apoio implícito, e por vezes mesmo explícito, de todo o Ocidente, voltaram assim a entregar o Afeganistão aos seus piores inimigos, sendo que, se anteriormente existia a desculpa da contenção soviética, agora, com a Rússia e a China a celebrar entusiasticamente a política norte-americana, nem esse argumento existe.

Responsáveis políticos, analistas e comentadores querem-nos convencer de que há algo surpreendente no facto de o Afeganistão dos Talibã ter voltado a assumir-se como centro internacional da misoginia, do fanatismo islâmico, do terrorismo e da produção e tráfico de drogas e da miséria humana. O que é surpreendente é antes que esses personagens tenham o despudor de se declarar surpreendidos.

  1. As novas rivalidades

Mas não havendo surpresas quanto ao rumo político geral tomado pelos Talibã, há que registar que os poderes islamistas que impulsionaram os Talibã se declararam igualmente surpreendidos pela falta de gratidão dos novos senhores de Cabul.

O Irão foi o primeiro país a constatar a derrota, vendo as facções talibã por si controladas a ser eliminadas de toda a estrutura do novo poder afegão. Trata-se aqui de meia-surpresa, porque já antes o Irão se tinha revelado incapaz de trazer a si os Talibã. O Irão tornou-se mesmo o ponta de lança da nova oposição sob o slogan de ‘Governo inclusivo’, que se deve entender como um governo onde o Irão tenha uma parte importante do poder nas mãos dos seus peões.

O Paquistão foi o país que mais euforicamente declarou vitória por ocasião da queda de Cabul, o que se compreende, tendo em conta que os Talibã foram criados nas escolas corânicas paquistanesas e foram armados e financiados pelos seus serviços secretos. A rede Haqqani, que partilha com os Talibã os principais lugares governativos, foi a criação mais recente dos serviços secretos paquistaneses no país, e tinha supostamente como objectivo assegurar um melhor controlo do terrorismo pelos militares paquistaneses.

Aqui, foi verdadeiramente surpreendente ver a forma como tanto os Talibã como a rede Haqqani rejeitaram enfaticamente qualquer concessão ao Paquistão, quer na aceitação da linha Durand como fronteira internacional, quer no corte de laços com os Talibã paquistaneses, em guerra com os militares do seu país.

Tão pouco o Qatar, principal apoio diplomático talibã, conseguiu fazer com que os Talibã fizessem um esforço de moderação da sua imagem a fim de tornar o jihadismo mais aceitável internacionalmente.

Surpresa maior ainda foi a de ver os Talibã libertar os dirigentes do Estado Islâmico, sem que esta organização os reconhecesse no poder, possibilitando com isso a multiplicação por estes de acções armadas. Se no princípio o principal alvo dessas acções eram as minorias etno-religiosas afegãs e paquistanesas (fazendo lembrar o que fizeram no Iraque), no final de 2022 a presença chinesa tornou-se um dos seus alvos.

Da mesma forma que os Talibã não agradeceram o apoio recebido dos seus patronos oficiais ou dos EUA, também o Estado Islâmico não parece disposto a retribuir o apoio que recebeu dos Talibã.

  1. A diplomacia chinesa do pinhão

A política chinesa em relação aos Talibã tem sido mais constante e compreensível do que a política ocidental, e repousa no apoio consistente ao Paquistão, e por tabela aos jihadistas apoiados pelo Paquistão. Contrariamente ao Ocidente, esta constância faz sentido geopolítico, dado que num caso se tratava de combater a União Soviética e a Índia e noutro caso todo o Ocidente e também a Índia.

Embora a China – como todos os outros países do mundo – não tenha ainda formalmente reconhecido o regime dos Talibã, foi o Ministro dos Negócios Estrangeiros da China, ao receber publicamente toda a direcção Talibã, duas semanas antes da queda de Cabul, que deu a principal bênção internacional ao regime talibã.

É de resto a China que tem mantido publicamente as melhores relações com Cabul no último ano e meio, embora, como eu assinalei aqui no Tornado, a contribuição financeira chinesa para o Afeganistão seja incomparavelmente menos importante do que a americana.

A esse propósito, não deixa de ser interessante registar um facto, aparentemente anódino, que foi o da autorização dada por Pequim à importação de pinhões do Afeganistão. Os pinhões são populares na China, e o Afeganistão é um dos países tradicionalmente exportadores. Pode-se imaginar que se trate de uma actividade intensiva e cujo impacto no rendimento da população rural seja significativo.

Em qualquer caso parece-me digno de nota que em várias declarações chinesas recentes apareça a livre importação de pinhões afegãos como uma das principais contribuições chinesas para esse país (por exemplo, nesta declaração da Embaixada da China em Cabul datada de Novembro e nesta declaração de Janeiro de 2023 numa agência de informação afegã)

Um relatório de Novembro do Instituto de Pesquisa Internacional para a Paz de Estocolmo sobre cooperação regional de apoio ao Afeganistão assinado por ‘Dr Jiayi Zhou’, omisso quanto ao apoio dado pelos EUA, realça que: ‘Exemplificando a necessidade de uma abordagem mais calibrada e mais adaptada à escala, uma iniciativa chinesa para importar mais de 1000 toneladas de pinhões do Afeganistão viu o preço dos pinhões no Afeganistão aumentar várias centenas por cento no início de 2022.’

Enquanto, por um lado, faz render os pinhões comprados, por outro lado, a China não se cansa de explicar ao Ocidente que quer obstar a que o terrorismo se instale no Afeganistão, dado que a China é também uma vítima de um movimento terrorista sediado aí, denominado de ‘Movimento Islâmico do Turquestão Oriental’ (ETIM, no acrónimo em inglês).

Na verdade como me explicou em detalhe Salih Hudayar, fundador do Movimento para o Despertar do Turquestão Oriental (numa explicação aflorada aqui pela Voz da América), o ETIM é uma invenção chinesa que pretende colar ao ‘Turquestão Oriental’ uma imagem jihadista. Em 2020, quando as autoridades americanas finalmente o compreenderam, retiraram esse nome da lista das organizações terroristas, lista onde tinha sido colocada apenas com base em informação oficial chinesa.

Os jihadistas são ferozmente antinacionalistas, e nunca iriam usar o antigo nome do Turquestão Oriental. Acresce a este facto, que todos os jihadistas que vieram do Turquestão Oriental para o Afeganistão usaram rotas fornecidas pelas autoridades chinesas que passam pela Tailândia (e não pela Ásia Central) e nunca participaram em qualquer acção contra a China.

Apesar de se tratar de uma invenção e de mesmo as autoridades americanas terem acabado por o reconhecer já em 2020, a generalidade dos ‘Think Tanks’ ocidentais não hesita em invocar o ETIM para pressionar os EUA a continuar a seguir a política chinesa para o Afeganistão.

Acrescente-se a tudo isto que para Pequim a rivalidade Afeganistão-Paquistão não é necessariamente um problema, e pode mesmo ajudar a China a diversificar as suas ligações.

Mas nem a China parece ter contado com a surpreendente independência do Estado Islâmico, que parece ameaçar directamente os seus interesses. Esta dissidência da Al-Qaeda, criada pelo Irão e adubada pela política norte-americana parasitada pelo Irão, tornou-se uma peça chave no puzzle do Médio Oriente – onde serviu fundamentalmente os interesses de Teerão.

Pode ser que se venha a evidenciar de novo como a peça mais importante do puzzle afegão, pelo que convém olhar para ela com a máxima atenção.

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