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Terça-feira, Setembro 10, 2024

Ainda a propósito da eutanásia e do suicídio assistido

José Carlos S. de Almeida
José Carlos S. de Almeida
Professor de Filosofia do ensino secundário. Licenciado em Filosofia e em Direito.

À volta da morte produzem-se afirmações e alinham-se posições que, na maioria dos casos, são contraditórias entre si. A morte suscita posições, tal como sentimentos, contraditórios e isso reflecte bem o modo como o tema nos atinge e nos encontra completamente desarmados.

A certeza da morte é acompanhada pela tensão, por vezes angustiante, acerca da incerteza do morrer: sendo absolutamente certo que, um dia, havemos de morrer, ninguém sabe quando é que tal ocorrerá e em que condições.

A morte é o acontecimento mais certo e seguro na vida do homem; no entanto, é aquele sobre o qual se reúnem mais incertezas. Neste sentido, um fundamental paradoxo envolve desde logo o fenómeno da morte: a certeza absoluta do seu acontecimento e a incerteza do seu acontecer, enquanto processo com inevitáveis mas desconhecidas consequências.

Mors certa, hora incerta, afirma o provérbio latino

Essa incerteza pode tornar-se mais angustiante quando, apesar de sabermos que havemos de um dia morrer, não estamos preparados para a morte. Estranha e assustadoramente, não estamos, com efeito, preparados, para a morte[1].

O convívio diário com a morte não é suficiente para nos preparar para a morte. É certo que a única relação que mantemos é com a morte dos outros, pois a nossa morte é-nos invisível e incompreensível.

Felizmente para nós, representamos a nossa morte como um acontecimento distante, constantemente diferido. Mesmo que a esperança seja a última coisa a morrer, é verdade que sabemos que a esperança acabará por ser derradeiramente vencida.

Durante alguns períodos da nossa vida, julgávamos-nos imortais, porém a morte do outro está-nos ainda marcada por uma espessura silenciosa, há sempre uma distância opaca que nos salvaguarda e preserva a nossa tranquilidade.

A morte do outro, mesmo de um familiar, atinge-nos sempre indirectamente, é da esfera da vizinhança, toca-nos temporariamente e o luto encarrega-se, em princípio, de superar.

A morte do outro é sempre uma outra morte

Contudo, a única morte que conhecemos é essa morte a que assistimos ou que queremos assistir de longe. E quando assistimos a essa morte, na maioria dos casos, trata-se de uma morte envolta num cerimonial, numa representação que a mascara e suaviza.

Quase nunca vemos a morte, mas o espectáculo da morte: a morte do outro aparece sob a forma dum acontecimento que já passou. A morte que vemos é a que já aconteceu, a que já foi, que já passou[2].

A morte é sempre a representação da morte e essa dramatização instala uma distância temporal que é uma separação temporal. A distância dramática e temporal anula a sua presença, suaviza a morte, cuja presença se repete, isto é, re-presenta, mas por isso mesmo está deslocada e desfocada em relação ao acontecimento original.

O morto é um já-morrido, aquele que já morreu, que já não é

De certa maneira, este pequeno desfasamento é essencial porque cria uma distância que nos protege, que suaviza a sua repercussão em nós. Mas, ao mesmo tempo, esse desfasamento que nos coloca fora da sua órbita impede-nos de aceder a uma compreensão mais essencial do fenómeno.

O outro que morreu torna-se ainda mais opaco e a sua morte menos compreensível. A sua presença inanimada aparece já composta e retocada. Contudo, o objectivo de se guardar uma boa imagem do ente que parte não foi o único objectivo do trabalho do cangalheiro.

A agência funerária tratou de reconstituir a serenidade do morto para que não choque tanto os vivos, nem os choque perante um processo pelo qual terão irremediavelmente de vir a passar.

A morte é um tema que evitamos abordar

A morte é um tema que evitamos abordar, em que a própria palavra é temida devido ao seu poder evocativo e realizante. Como se a simples pronúncia da palavra fosse suficiente para convocar a morte para ao pé de nós e por isso preferimos mantê-la longe, não falando dela como se ela não existisse.

Por isso, existe uma áurea de contenção que rodeia a morte, evita-se falar da morte como se a simples evocação da palavra, reunindo em si poderes tão misteriosos, quanto poderosos, fosse suficiente para aproximar esse acontecimento real do convívio despreocupado dos vivos.

Há constantemente um manto de silêncio a rodear a morte e as doenças fatais, nomeadamente os diagnósticos de situações que podem conduzir à morte. É verdade que fazer com que o doente ganhe consciência da evolução da sua situação pode, em muitos casos, agravar o seu estado depressivo e a sua ansiedade.

Mas não é disso que se trata. A não evocação da morte através da palavra é uma forma de a esconjurar ou, pelo menos, de a afastar do nosso convívio. “As coisas de que nunca se fala são um pouco como se não existissem”[3].

Para além duma concepção mágica acerca do poder da palavra e da sua capacidade realizante através da sua evocação, o que está aqui presente é o temor dos vivos perante a irrupção brutal de tão trágico acontecimento e que pode acontecer com a simples (a)presentação / representação da morte através do pronunciar da palavra.

Quando alguém pronuncia a palavra logo se teme que ela se aproxime de nós e fazemos tudo para esconjurar o perigo que fica por perto, instalado na ressonância que perdura na palavra evocada.

Segundo FREUD, as pessoas ficam doentes quando se começam a questionar sobre o sentido da vida e da morte[4]. Há, deste modo, uma dimensão patológica associada à aproximação em relação à morte.

O medo da morte tem a ver com o facto de este acontecimento provar que o nosso mundo está constantemente ameaçado pela possibilidade do caos irromper subitamente nas nossas vidas. A presença da morte vêm-nos lembrar não só da nossa finitude, como também da fragilidade da nossa realidade periclitante.

Morte e vida são um par indissociável; por isso, a morte é um acontecimento natural

Facilmente encaramos a morte como algo que decorre naturalmente da própria vida. Tudo o que vive deverá morrer um dia. Não há vida sem a morte e esta faz parte do ciclo universal da própria vida.

Tudo o que é vivo e nos rodeia tem a morte como fim. Séneca, numa das cartas a Lucilius, onde justifica o suicídio, afirma que todos os dias nós morremos[5]. A nossa morte é anti-natural e escandaliza, porque não aprendemos a morrer, nunca ninguém nos ensinou a enfrentar a morte, porque toda a lógica da nossa vida e da organização da nossas sociedades é um constante festival que idolatra a vida e o prazer (como o corpo jovem e equilibrado) que oculta a luta constante para vencer a morte, como se houvesse uma secreta e íntima convicção de que a poderíamos chegar a vencer definitiva e derradeiramente.

A morte possui, assim, esse carácter duplo: enquanto momento de um processo natural e, portanto, natural, e acontecimento ilógico e, desse modo, perfeitamente anti-natural. Deste modo, fomenta ainda mais a nossa perplexidade perante um fenómeno que é em si mesmo perspectivado contraditoriamente.

A representação mais divulgada e partilhada sobre a morte afirma que a morte é um fenómeno natural, que a morte faz parte da vida. Contudo, essa naturalização da morte não impede que a pensemos, ao mesmo tempo, como um acontecimento que vem contrariar e contradizer o fluxo exuberante da vida, não lhe retira o seu carácter muitas vezes inesperado e não extingue o sentimento de revolta que se manifesta sempre que a morte atinge alguém que nos é familiar ou próximo.

“Morrer é a própria condição da existência”, afirma JANKÉLÉVITCH.

Para este autor, a morte é um não-sentido que dá sentido à vida, um não-sentido que dá um sentido negando este sentido[6]. Assim sendo, a morte tem um sentido, não se pode considerar em absoluto como não-sentido.

Pode ser um sentido escandaloso, chocante, mas não deixa por isso de ser um determinado sentido. Só que é um sentido envolto em mistério, é o próprio mistério mais radical sem ser segredo nenhum, e é, por essa razão, a interpelação suprema.

Aquele que se descobre no preciso instante em que o ser se nega, se apaga. Mas se podemos fazer alguma aproximação reflectida em relação à morte, fazemo-lo sempre a partir da vida, a partir da segurança que a vida é.

A morte não descola da vida, não se entende em si mesma, sem essa relação/posição fundamental. Do mesmo modo, a vida não se entende sem essa referência a um fim absoluto que é a morte. Se a morte não existisse a nossa compreensão da vida seria completamente diferente.

Imaginemos uma vida sem esse fim que é a morte

Como seria tão diferente a nossa vida se soubéssemos que éramos imortais! Em relação a muitas das nossas experiências, sabendo que são irrepetíveis porque existe um fim que nos impede de acedermos de novo a elas, não será que é por essa irrepetibilidade que a morte estabelece que as vivemos intensamente?

Se soubéssemos que poderiam ser repetidas, entregar-nos-íamos de corpo e alma a essas experiências? Guardaríamos delas uma memória tão incandescente? Seriam tão grandiosas ao ponto de aquecerem a nossa memória e a nossa existência?

A morte comprime a nossa vida, retira-lhe essa dilatação própria da imortalidade que convida ao relaxamento e à inércia. A existência dum fim para a nossa vida, apressa-nos e põe-nos alerta. Ao invés, a ausência de um fim, torna-nos seres relapsos, preguiçosos, indiferentes.

A realidade à nossa volta, plena de vida, desenvolve-se à custa da morte de todos os elementos que cumprem o ciclo da sua existência. Existe uma dialéctica evidente na relação vida e morte, na medida em que, do mesmo modo que se morre porque se vive, também se vive porque se morre.

Quem vive, por exemplo, no campo, assiste diariamente à morte dos animais e das plantas como condição da própria sobrevivência e renovação dos seres vivos. As crianças, nesse ambiente, assistem desde muito cedo ao espectáculo da morte.

Como também assistem ao nascimento dos cachorros e dos vitelos. Eles facilmente convivem com o nascimento e a morte e se habituam a incluí-los num mesmo ciclo natural e quotidiano.

Mas à medida que nos aproximamos da nossa morte, à medida que representamos essa nossa possibilidade, retiramo-la desse ciclo natural e recusamos aceitá-la.

[1] E essa impreparação não é, tragicamente, ultrapassada nas faculdades de medicina e na formação dos médicos, apesar de acabarem sempre por ter que lidar com a morte, com os seus sinais, com a sua proximidade terrível.
[2] Não é assim que tentamos consolar uma criança quando esta se magoa: pronto, pronto, já passou?
[3] ABIVEN, M., C. CHARDOT, R. FRESCO, Euthanasie alternatives et controverses, Paris, Presses de la Renaissance, 2000, p. 64
[4] Cf. Luc FERRY, O Homem-Deus ou o Sentido da Vida, Porto, Ed. ASA, 1997, p. 11.
[5] Cit. in Paula La MARNE, Éthiques de la fin de vie, Paris, Ellipses, 1999, p. 98.
[6] JANKÉLÉVITCH, Vladimir, Penser la Mort, Paris, Liana Levi, 2000, p. 40.

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