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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Altice: Fraude, conivência, luta

António Garcia Pereira
António Garcia Pereira
Advogado, especialista em Direito do Trabalho e Professor Universitário

Para além das práticas de assédio moral e das perseguições aos trabalhadores, procurando assim forçá-los a sair da Empresa e, um outro dos mecanismos utilizados pela Altice para reduzir, directa ou indirectamente, custos foi o de, confrontar as empresas e entidades que até então prestavam serviços à PT/Meo com a obrigação de reduzirem os respectivos preços em 30%.

O que são e para que servem as empresas arranjadas pela Altice?

Para além das práticas de assédio moral e das perseguições aos trabalhadores, procurando assim forçá-los a sair da Empresa e, mais recentemente, das pretensas “transmissões” de empresa, um outro dos mecanismos utilizados pela Altice para reduzir, directa ou indirectamente, custos foi o de, em autêntico abuso de posição dominante, confrontar (em particular no início do ano de 2016) as empresas e entidades que até então prestavam serviços à PT/Meo com a obrigação de reduzirem os respectivos preços em 30%. Isto sob a ameaça, aliás por diversas vezes concretizada, de substituir aquelas que a tal exigência não acedessem por empresas que fossem da titularidade da mesma Altice, quer directamente, quer através de entidades terceiras, dos seus accionistas ou de “testas de ferro”.

Para esse efeito, o Grupo Altice comprou a integralidade do capital e adquiriu assim o controle exclusivo da Parilis, SA, que, por sua vez, é uma holding, sediada no Luxemburgo, e que detém três empresas prestadoras de serviços no sector das telecomunicações, a saber, a Arcitaura RedeTelecomfib, e as hoje já nossas conhecidas Tnord Tech e Sudtel Tecnologia.

Esta mesma Sudtel, com apenas 50 mil euros de capital social e que tinha a sua sede num autêntico barracão situado na Rua da Cidade de Goa, nº 12, na Quinta do Pinheiro de Fora, no Prior Velho, e um objecto social limitado praticamente à construção e manutenção de redes de telecomunicações, alterou entretanto e muito significativamente a sua sede para as Avenidas Novas de Lisboa, mais exactamente para o Campo Pequeno, nº 2-4º Dº, e alterou e alargou profundamente o seu objecto social de forma a poder preencher formalmente as invocadas necessidades das pseudo-transmissões de unidades de negócio. O seu administrador único é o Sr. Miguel António Gomes Amorim, a quem em determinada altura foi atribuído um gabinete na sede da PT Portugal, no edifício das Picoas.

A Tnord-Tech, SA, também com apenas 50 mil euros de capital, é outra sociedade anónima com objecto social semelhante e com sede num armazém (o Armazém B da Rua da Ramôa, em Merelim – Braga).

E a 3ª das empresas ultimamente utilizadas na manobra fraudulenta das pretensas “transmissões de estabelecimento” – a Field Force Atlântico, SA, com sede no Piso 3 do Palácio do Gelo Shopping, em Viseu – foi a correr, em 13 de Junho último, promover o mesmo tipo de alterações ao respectivo contrato de sociedade, em particular no tocante ao seu objecto social, bem como à designação de novos membros dos órgãos sociais.

Todas estas operações financeiras e jurídicas mostram bem como do que aqui se tratou foi de fabricar “fatos à medida” para que neles se pudessem, abusiva e fraudulentamente, encaixar as operações de pretensa exteriorização de centenas e centenas, e até de milhares, de trabalhadores da PT/Meo. Da qual, recorde-se, desde a sua aquisição pela Altice, já então tinham saído 1.400 trabalhadores (de 11.000 a empresa passara para 9.600) e mais de 1.000 estavam já sem funções e/ou sem local de trabalho.

O que andaram a fazer os Sindicatos e a ACT?

Por tudo o que já antes se sabia, ou se devia saber, acerca da Altice, e também por tudo o que se passou entretanto desde o negócio da compra da PT/Meo, não pode deixar de causar a maior das estranhezas que as organizações representativas dos trabalhadores (sindicatos e comissões de trabalhadores) só muito recentemente e perante o repúdio e os protestos generalizados dos seus representados, tenham finalmente acordado para a realidade e descoberto o que são verdadeiramente a Altice, os seus donos e os seus gestores. Rigorosamente o mesmo se podendo, aliás, dizer da ACT, que nunca vê nada, muito menos a tempo (como já não vira na Cabovisão, na Vodafone, na Banca, etc., etc.) e apenas em 30/5/17 é que foi finalmente efectuar algumas inspecções dignas desse nome (em que, nomeadamente, se dignou inquirir os próprios trabalhadores vítimas de gravíssimos processos de assédio moral) em várias instalações da empresa, mais exactamente em Lisboa, Braga, Caldas da Rainha e Beja.

Como é assim possível que os vários sindicatos da PT tivessem, já em Setembro de 2016, a troco nomeadamente de aumentos salariais de 2% e de aumentos de 0,65€ nas deslocações a mais de 20 Km, assinado um Acordo Colectivo de Trabalho com a Administração da Altice, sob o argumento – exactamente assim expresso pelo Presidente do sindicato porventura com o maior número de sindicalizados na empresa – de que “temos consciência de que obtivémos um resultado final limitado mas que, em contrapartida, não gerou situações de maior constrangimento dos direitos actualmente consagrados no ACT” (sic)?!

E, mais, que as mesmas organizações tivessem permitido que, sem protesto ou oposição visível por parte delas, o CEO de então, Paulo Neves, se tivesse mesmo arrogado declarar publicamente há meio ano atrás, mais exactamente em Dezembro desse mesmo ano de 2016, o seguinte: “Temos um ambiente de perfeito diálogo com os trabalhadores, a Comissão de Trabalhadores e os Sindicatos e por essa razão conseguimos algo que não se conseguia há anos.”??!!

Ora, ou estes representantes dos trabalhadores estiveram, muito e demasiado tempo, distraídos – o que já é grave – ou há aqui algo de mais grave ainda e que, se não cabalmente esclarecido, ou até por isso mesmo, vai acabar por lhes cair em cima das respectivas cabeças!…

As “transmissões de unidade de negócio” são uma fraude à lei

Por fim, e ao contrário do que alguns “especialistas” e até – pasme-se – alguns dirigentes sindicais logo se apressaram a dizer, pelo menos inicialmente, não é de todo verdade que estas manobras de pretensas transmissões de pretensas unidades de negócio para pretensas entidades terceiras sejam conformes à lei (e sobretudo ao artigo 285º do Código do Trabalho), a qual supostamente possibilitaria e permitiria essa sua utilização, e relativamente à qual “pouco ou nada haveria a fazer”.

É que desde logo a cessão, ou transmissão, para o adquirente da posição de entidade empregadora do transmitente nos contratos de trabalho dos trabalhadores que prestam actividade numa dada empresa (ou num dado estabelecimento ou numa parte com suficiente autonomia organizativa e económica) cuja titularidade mude de mãos é uma solução legal antiga e constava já do artigo 37º da “velhinha” Lei Geral do Trabalho (o Decreto Lei 49408, de 1969). E nasceu precisamente para proteger os trabalhadores dessas empresas ou estabelecimentos relativamente a consequências nefastas que poderiam decorrer das vicissitudes da transmissão, maxime a de o novo titular não os querer reconhecer ou receber e de os pretender despedir.

Trata-se, pois e inequivocamente, de um mecanismo de protecção do trabalhador, depois aperfeiçoado pelas Directivas Comunitárias 77/187/CEE, de 14 de Fevereiro e 2001/23/CE, do Conselho, de 12 de Março (a qual revogou e substituiu a primeira) e transpostas para a Ordem Jurídica portuguesa pelo Código do Trabalho (primeiro, pelo artigo 318º do Código de 2003 e posteriormente pelo artigo 285º do Código de 2009).

Ora, a nossa jurisprudência laboral, em particular a do Supremo Tribunal de Justiça, sempre teve (quando era conveniente para os trabalhadores que ela fosse bem mais ampla) uma concepção muito exigente e restritiva daquilo que se deveria entender quer por “empresa”, “estabelecimento” ou “unidade económica”, quer mesmo por “transmissão” – e por isso será até curioso verificar agora se todo esse rigor e aperto de conceitos se mantêm, para declarar que não há aqui real transmissão alguma e que tudo (excepto os contratos de trabalho) se mantém na órbitra e sob a direcção da Altice.

Mas a verdade é que, independentemente desse aspecto, quando através da prática de um ou vários actos formalmente lícitos – o que, como se viu já, não é sequer o caso da Altice – se visa ou se consegue alcançar um resultado (o da precarização e até o despedimento a prazo dos trabalhadores) claramente oposto ao visado e prosseguido pelas normas aplicáveis, a doutrina e a jurisprudência entendem que se estará perante uma verdadeira fraude à lei. Fraude esta que é geradora da nulidade daqueles mesmos actos e que pode, e até deve, ser conhecida e declarada oficiosamente pelos Tribunais.

E aquele que, sendo embora titular formal de um determinado direito (por exemplo, o de transmitir a totalidade ou uma parte autónoma da sua empresa), o faz de um modo que excede os limites impostos seja pela boa fé negocial, seja pelo fim económico e social para que tal direito foi legalmente reconhecido, então actua em incontornável abuso de direito com a consequente ilicitude do negócio praticado.

Tudo isto sendo certo que, também a propósito destas figuras jurídicas, e tão curiosa quanto significativamente, desde que fora do âmbito laboral, sempre o mesmo Supremo Tribunal de Justiça tem considerado, inclusive, que “não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, basta que na realidade (objectivamente) aqueles limites tenham sido excedidos de forma nítida e clara”.

A luta dos trabalhadores tem de continuar!

Ora, querem coisa mais nítida e clara do que o abuso e a fraude de tratar de transformar trabalhadores de uma dada empresa (de capital, património, capacidade financeira, estatuto legal e direitos e regalias sociais bem conhecidos e claramente estipulados) em empregados de empresas voláteis ou de vão de escada, sem património, com um mínimo de capital social e em que, ao fim de 1 ano e 1 dia, a contratação colectiva deixa de se aplicar e, mesmo antes disso, é facílimo levar à falência e “justificar” assim despedimentos colectivos?

Mas, até por isso mesmo, confiar somente – como alguns estão a aconselhar –  na estreiteza de meios e de vistas da ACT e no gritante conservadorismo da jurisprudência laboral para resolver um problema que é essencialmente político, social e laboral é que constituiria um erro tremendo, em que os trabalhadores da Altice/PT/Meo não podem nem devem cair.

A luta tem, pois, de continuar!…

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