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Quinta-feira, Março 28, 2024

As Catalunhas da Europa

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

À partida não encaro como desejável a possível secessão da Catalunha e procurarei explicar porquê ao longo deste artigo. Mas vale a pena reflectir sobre as  condições  em  que é legítimo na actualidade e no espaço europeu, voltar a erguer as velhas bandeiras do direito dos povos à autodeterminação e à independência.

As independências na América, África e Ásia

A independência das 13 colónias britânicas que vieram a constituir os Estados Unidos da América ocorreu em estreita ligação com reivindicações de democracia e foi obtida após uma guerra de independência em que também se envolveu a na altura monárquica França. As independências seguintes – Haiti, colónias espanholas, Brasil – exigiram também, em maior ou menor grau, movimentações militares mas, sobretudo no caso das colónias espanholas do continente americano, consolidaram-se graças às posições tomadas pelos Estados Unidos e pela Inglaterra de Canning. Se foram ou não  consensuais internamente às próprias colónias, é um aspecto hoje em dia pouco discutido, mas não deve ser esquecido que um número bastante elevado de “lealistas” vieram após a independência a deixar os Estados Unidos para se fixarem no Canadá. Em geral (salvo o caso do Haiti, em que são os escravos que se revoltam), e sem prejuízo de situações de miscigenação, os protagonistas da independência  são, não os indígenas, mas os descendentes dos colonizadores  que quiseram emancipar-se politicamente das metrópoles.

A África e a Ásia continuaram durante todo o século XIX a ser um espaço de eleição da criação de colónias, tendo as potências vencedoras da I Guerra Mundial, sobretudo o Reino Unido e a França, visto as suas possessões reforçadas com mandatos sobre antigas dependências alemãs e otomanas. Todavia, com o final da II Guerra Mundial e a constituição do movimento dos não-alinhados após a concessão das primeiras independências, a descolonização dos territórios não – autónomos progride sob a égide da ONU, sendo possível falar do reconhecimento de um verdadeiro direito à autodeterminação e à independência. O referendo surge como instrumento ao serviço da autodeterminação, por vezes em contextos dúbios (ex. a escolha entre a pertença à União Francesa e a independência completa, de que só aproveitou inicialmente a Guiné de Sekou Touré) e a resistência das potências colonizadoras obriga por vezes a recorrer à luta armada (Argélia, Angola, Guiné, Moçambique) que também  é ensaiada quando são as minorias de  ascendência europeia que declaram formalmente a independência (na África do Sul e na Rodésia do Sul). Nem  sempre os novos Estados correspondem à uma realidade clássica de nação e a África, para prevenir  uma evolução dramática, tem de declarar o seu apego às fronteiras herdadas do colonialismo.

Os conflitos posteriores entre Estados ou entre Estados e povos, pela sucessão das potências colonizadoras, protectoras ou mandatárias, que também existiram entre países da América Latina,  não deixaram de se verificar  nas independências asiáticas e africanas (Sará Ocidental, Ogaden, Kuwait, Cachemira, Irião Ocidental, Timor Leste) e nem todos estão definitivamente resolvidos. As secessões (Etriteia, Sudão do Sul) e as reunificações (Iemen), sendo ainda raras, vão marcando presença. Se existiu a certa altura na segunda metade do Século XX um consenso internacional sobre a descolonização, não devemos perder de vista que fora da Europa ainda  existe espaço para reivindicações de autodeterminação e independência que poriam em causa alguns dos Estados constituídos e internacionalmente reconhecidos em consequência de tal consenso. Para não falar da perturbação criada a partir de 1948 pela criação de um Estado de Israel com veleidades expansionistas que não têm sido contidas, e que agora optou também por desqualificar a cidadania das populações de origem árabe.

As redefinições de fronteiras, a criação de novos Estados e as secessões na Europa

A questão das nacionalidades na Europa foi colocada na ordem do dia logo após a Revolução Francesa e a resposta que esta teve de dar às guerras contra si movidas, e esteve frequentemente associada, tal como nos Estados Unidos, a reivindicações democráticas. O Congresso de Viena veio por um lado  consolidar parte da evolução verificada em termos de criação de novas realidades político-territoriais, por outro tentar conter novos desenvolvimentos nesse domínio, e a Santa Aliança tentou fazer o mesmo com as revoluções democráticas. A primeira brecha foi aberta pela  revolução belga de 1930, que  retirou o país à coroa dos Países Baixos, mas foi obrigada a aceitar um rei de origem alemã em vez de um dos filhos do rei francês, como já o tinha sido a Grécia aquando da sua independência do império otomano.  No entanto o Século XIX  assistiu a dois movimentos de grande amplitude, ambos ligados a conflitos militares, ou seja a reunificação alemã (com exclusão da Áustria e incorporação da Alsácia e de parte da Lorena) e a unificação italiana.  Se o império austríaco se manteve até à I Guerra Mundial foi  em parte graças à criação da monarquia dual austro-húngara, cenário que afastou a independência pura e simples da Hungria. Pouco antes da I Guerra,  a Noruega, retirada à Dinamarca pelos vencedores de Napoleão, optou pela separação da Suécia.

O fim da I Guerra Mundial e os tratados posteriormente celebrados conduziram a substanciais alterações no mapa político-territorial da Europa Central e Oriental, ressurgindo a Polónia, reconhecendo-se a Checoslováquia e a Hungria como Estados independentes, e criando-se por decisão das potências vitoriosas uma Jugoslávia, num processo que fez surgir ou ressuscitar alguns Estados  mas neles incluiu novas minorias nacionais. O desfecho da II Guerra Mundial consolidou estes Estados e operou  mudanças de fronteiras, em parte acompanhadas, desta vez, por substanciais deslocações de populações que deram origem a uma homogeneidade forçada . Recentemente o fim da União Soviética voltou a alterar o mapa político e a criar tensões , sobretudo por as potências “ocidentais” terem encorajado, o desmantelamento da Jugoslávia, em detrimento da Sérvia, amputada até do Kosovo. A separação da República Checa e da Eslováquia foi um processo pacífico. Em contrapartida a Bélgica conheceu  sucessivas dificuldades internas que, para já, a levaram até à federalização.

Novos Estados na Europa do Século XXI ?

Muito embora as múltiplas independências, sobretudo de estados insulares do Pacífico, tenham já conduzido à existência de 193 Estados-membros da ONU, não parece haver um caminho internacionalmente consensual para que o direito à autodeterminação e à independência possa ser invocado para viabilizar a secessão de províncias ou regiões actualmente integrados em Estados do continente europeu. O Conselho de Tutela da ONU para os territórios não autónomos já está aliás desactivado. Quanto à União Europeia, apesar de valorizar a “Europa das Regiões” adoptou a propósito dos casos recentes da Escócia e da Catalunha a orientação de que a independência retiraria o território do novo Estado do âmbito geográfico da União, tendo de pedir a admissão, para o que teria de contar com o acordo de todos os Estados membros.

Estão tipicamente em causa:

  • factores que têm a ver com uma dimensão política ou histórica: em princípio nenhum país quer ser amputado de população e território, nem quer pôr em causa a narrativa histórica em que assenta a sua existência,
  • factores económicos:  mesmo que o país e a província ou região fiquem  integrados no mesmo espaço económico, serão de esperar perturbações;
  • factores financeiros e patrimoniais: possíveis conflitos relativos a direitos sobre infraestruturas e equipamentos colectivos;

e pode ser também relevante:

  • a existência na província ou região que aspira à independência de minorias originárias de outras províncias ou regiões  que se arriscam a ser discriminadas ou amputadas  de direitos.

A  Inglaterra, que muito tem aprendido com a questão irlandesa, acabou, ao aceitar que se referendasse a independência da Escócia, por se mostrar pragmática, aliás a união com a Escócia de 1707 fora  livremente aprovada e correspondia aos interesses económicos da altura, sendo que  a “devolução” que no Século XX levou ao restabelecimento do parlamento escocês já mostrara o caminho.  Pelo contrário, o regime franquista, e sobretudo o exército, sempre atribuíram carácter “sagrado” à unidade de Espanha, figurando os  autonomistas entre os vencidos da Guerra Civil, e a institucionalização do regime democrático terá sido facilitada por esta unidade não ter, então, sido posta em causa. Não parece assim à partida fácil a concretização de uma independência pacífica da Catalunha  negociada nas vertentes política, económica e financeira com o Estado espanhol, que não deixaria de ter um efeito dominó quase certo em Espanha e possivelmente noutras “Catalunhas” da Europa.

A independência da Catalunha levantaria aliás a questão da coexistência com  minorias  étnicas. Em tempos o então autónomo Partido Socialista Andaluz teve uma grande expressão junto de trabalhadores deslocados na região, agora o fenómeno Arimadas do Ciudadanos mostra que a presença andaluza é  politicamente transversal. Ora o independentismo catalão tem assentado no bullying linguístico das minorias, o que explica  a proximidade com os nacionalismos estónio e flamengo, não sendo de excluir que uma Catalunha independente pressionasse no sentido da retirada de direitos políticos aos espanhóis “de origem”.

As próprias políticas de organização territorial administrativa prosseguidas pelos governos autónomos catalães terão constituído um obstáculo à modernização administrativa  e não deixa de ser interessante verificar que Barcelona, capital da Catalunha, não o é do independentismo.

Chegado aqui, não deixarei de concluir que, se não se pode preconizar no quadro europeu  um reconhecimento automático dos efeitos de  manifestações de vontade de autodeterminação, convirá garantir o direito à discussão das  propostas que apontem nesse sentido, e inclusive o da organização por governos provinciais ou regionais de referendos onde possa votar todo  o corpo eleitoral  que tem direito a participar nas correspondentes eleições, ainda que nestes se coloque a questão da secessão.

Sendo  mais explícito: é pacífico que exista um Tribunal Constitucional que declare não vinculativo o resultado de uma consulta  que vise a alteração unilateral do que dispõe a própria Constituição, e inexistente uma consulta que não obedeça aos requisitos processuais legalmente fixados; é talvez admissível que haja a posteriori sanções  administrativas e políticas  que respondam às  ilegalidades ou reponham o normal funcionamento das instituições; deveria estar fora da questão enviar, a pretexto de ilegalidade, a polícia de choque para impedir o funcionamento das mesas de voto e espancar os eleitores.

Entretanto para além da realização de conversações políticas faria sentido aprovar e promulgar rapidamente uma amnistia.

Para além da devolução da Alsácia e da Lorena à França e, à margem do conflito, da cisão da Irlanda.
Sobretudo no caso da Alemanha, aliás dividida em dois Estados, e da Polónia, separadas pela linha Oder-Neisse,  da Jugoslávia e da Itália, e da Itália e da  Áustria (Alto Ádige / Tirol do Sul).
O único território europeu cujo destino terá sido efectivamente determinado por plebiscito / referendo foi o  Sarre, ocupado em  1792  pelos exércitos da Revolução Francesa, e desde aí por vezes reivindicado pela França, o  qual  tanto em 1935 como em 1955 votou pela ligação à Alemanha.
Não tanto no plano jurídico, porque sendo a URSS basicamente uma união voluntária de repúblicas, de índole confederal, a partir do momento em que estas se assumiram como Estados independentes os  problemas que se têm suscitado radicam essencialmente na presença de minorias russófonas, históricas ou (caso sobretudo da Estónia) recentes, e na reversão da entrega da Crimeia à Ucrânia, operada por Kruchev.
A União Soviética veio a consagrar a existência, dentro de cada república da União,  de repúblicas  e regiões autónomas constituídas numa base étnica. A integração do antigo  Cáucaso do Norte na Rússia viria a responsabilizar directamente esta, após a dissolução da União, pelas dificuldades na Chechénia, no que acabou por ser, até agora, o seu problema étnico interno mais grave.
Kosovo que muitos países continuam a não reconhecer.
Segundo a biografia O Rei escrita por José Luís de Vilallonga, Franco na hora da morte terá pedido unicamente ao seu sucessor que mantivesse a unidade de Espanha.
Não abordarei aqui a questão do independentismo basco, marcado durante muito tempo pela acção da ETA.
Segundo  comunicação de Paola Lo Cascio apresentada em Junho de 2018 em Encontro promovido pelo Instituto de História Contemporânea.

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