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Sexta-feira, Outubro 4, 2024

Contributos de Nazis para a Ciência da Gestão

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.
Johann Chapoutot
Par Ziko van Dijk, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=36594794

Com este artigo pretendo formular algumas observações sobre Livres de Obedecer – A gestão, do nazismo aos dias de hoje (no original Libres d’ óbéir – Le management, du nazisme à aujourd’ hui) publicado em 2020 nas Éditions Gallimard por Johann Chapoutot e devendo-se a publicação da edição portuguesa de 2023 à Antígona, Editores Refractários que confiou a tradução a Miguel Serras Pereira. O livro foi apresentado em 7 de Setembro no Público por uma extensa recensão assinada por José Marmeleira.

Interessará também ter presente a biografia do autor, professor de história e investigador Johann Chapoutot.

Impressiona tomar consciência de que, já na Idade Contemporânea, e de certa forma em articulação com o movimento das nacionalidades, tantos trabalharam para reconstituir a origem e as qualidades da “raça” com que se identificavam. Associavam-lhe qualidades que na actualidade em que viviam já não eram discerníveis, mas o mito ficava. Deste modo, e simplificando, os alemães das florestas que em Teutoburgo derrotaram as legiões romanas eram livres. E a romanização, o catolicismo, a sujeição ao modelo de Estado que se tinha desenvolvido em Itália e em França, e, ouso dizê-lo, embora não tenha reparado que Chapoutot lhe tenha dado relevo expresso nesta obra, o Direito Administrativo, eram de certo modo vistos como elementos estranhos ao espirito da raça germânica.

Deste modo podia ser discutido se para o sector público era mais adequada uma organização de base territorial, temperada ou não por autonomia política nos vários escalões, ou uma organização, digamos, por agências. Os Nazis optaram a seguir ao acesso ao poder, por intervencionar os Länder, e até por substituir burgomestres, e, chama-nos a atenção Chapoutot, por altura da II Guerra Mundial a Alemanha operava um conjunto de organizações tipo agência: Organização Todt, Plano para Quatro Anos, Comissariado do Reich para o Reforço da Raça Germânica….

Acresce que as próprias organizações integradas no Partido Nazi começaram a ter prerrogativas de autoridade pública, ou até a duplicar organizações públicas sendo esse o caso das unidades SS em relação ao Exército, como se mostra no livro História da Gestapo, de Jacques Delarue. A própria Gestapo, polícia política, ficou dependente do Partido. As personalidades do Partido asseguravam funções em diferentes organizações(i). A delimitação de competências das várias organizações – partidárias ou simples agências – tornava-se extremamente difícil.

Chapoutot chama esta situação POLICRACIA e explica que se tornava frequentemente necessário pedir a arbitragem do Führer Adolf Hitler, o que teve por efeito reforçar a influência do seu secretário particular, Martin Bormann.

Sobre a forma de recrutamento dos quadros intelectuais deste sistema escreve:

As reflexões sobre a organização do trabalho, sobre a optimização dos factores de produção e sobre a sociedade produtiva mais eficiente foram, sob o Terceiro Reich, numerosas e intensas, não só porque correspondiam a questões urgentes, se não vitais, mas também porque se encontrava na Alemanha uma elite de jovens universitários que com gosto aliavam saber e acção, reflexão científica e tecnocracia, e que encontraram, no caso de algumas dezenas, um lugar no serviço de informações (SD) da SS, enquanto os outros se repartiam pela miríade de instituições e de agências criadas ad hoc sob o governo nazi, quando não beneficiaram muito simplesmente da boa sorte que lhes proporcionara a purga política e racial da universidade, que, ao despedir um terço dos efectivos de professores, assistentes e investigadores, abriu milhares de vagas a partir de 7 de Abril de 1933.

Reinhard Höhn é, juntamente com alguns outros, como Werner Best, Wilhelm Stuckart, Otto Ohlendorf, e uns quantos mais, o arquétipo deste intelectual tecnocrata. É igualmente, pela sua radicalidade e ideias de vanguarda, bem como pelas suas reflexões sobre a extinção progressiva do Estado, a sua ponta mais avançada.

Entenda-se

Stuckart é o mais antigo nas lides: aderiu em 1922 ao Partido Nazi e mais tarde viria a actuar como advogado de membros das suas Secções de Assalto (SA), com a vitória passa a integrar a alta função pública e o Governo, sendo secretário de estado no Ministério do Interior a partir de 1935(ii), e tendo sido responsável pela elaboração das chamadas Leis de Nuremberga, que desqualificam e segregam os judeus. Seria julgado depois da guerra pelo seu papel nestas leis mas condenado a pena já cumprida. Em 1941 publica um contributo para um volume de estudos em homenagem a Heinrich Himmler (“Zentralgewalt, Dezentralisation e Verwaltungsteinheit”) em que mostra acreditar que as campanhas de leste iriam alargar muito e de forma permanente as terras sob domínio alemão e que a função pública alemã não teria efectivos para as controlar. Seria preciso fazer mais com menos, alargar a responsabilidade de cada funcionário, delegar responsabilidades.

Na mesma linha e para a mesma publicação, Werner Best escreveria “Grundfragen einer deutschen Grossraum-Verwalung”. Chapoutot afirma que Best militou “em organizações nacional-conservadoras muito críticas em relação aos nazis”, organizações que não identifica, mas que teria aderido ao Partido Nazi em 1929.

Reinhard Höhn é, passe o termo, a estrela do estudo de Chapoutot. Inicialmente, nos tempos de estudante pertence a uma organização “da direita nacional mais conservadora, anti-semita e anti-comunista – Jungdeutscher Orden” – e só em Janeiro de 1932 se desliga dela, aderindo em Maio de 1933 ao Partido Nazi e em Julho à SS. A sua antiga organização acaba por fundir-se no “Partido do Estado”, dissolvido pelos nazis em 1933. Consegue integrar-se no SD (Sicherheitsdienst – serviço de segurança) da SS e vai desenvolvendo as suas teses, contraditando outras, mas a recordação das polémicas que no passado manteve com os nazis suscita reacções: é colocado noutras funções, sendo nomeado professor da Universidade de Berlim e Director do Instituto de Investigações sobre o Estado, dirige a revista Reich, Volksordnung, Lebensraum, mas mantém-se nas SS onde, com a protecção de Himmler e sem ter de ir comandar no Leste, chega em 1944 a general.

Para além do direito público e da sociologia – que pesa na sua visão da empresa como comunidade em que patrões e empregados colaboram – cultiva a história militar, rejeitando a organização militar prussiana incutida por Frederico-Guilherme IV, o Rei-Soldado e por Frederico II, o Grande, que entende ter levado à derrota perante Napoleão em 1806, e valorizando os exércitos da Revolução Francesa resultantes das levées em masse patrióticas, bem como os exércitos prussianos forjados a partir de 1806-1813 e comandados no terreno por oficiais e sargentos com grande autonomia quanto à definição da acção – a delegação das responsabilidades, que os exércitos nazis da II Guerra Mundial não lograram reproduzir, e por isso foram derrotados.

Chapoutot indica que ao contrário dos seus colegas Mengele e Eichmann, Höhn não foge para outro continente, limita-se a usar até 1950 o nome de Rudolf Haberlein, com documentos forjados antigos colegas e passando por tio das suas filhas(iii), dedica-se à prática de medicinas alternativas até ser sancionado por se intitular Doktor (sendo Doutor, sim, mas em Direito e não em Medicina). A partir da criação da República Federal Alemã em 1949 tudo fica facilitado: antigos generais da Wehrmacht virão a ter comandos na Bundeswehr, uma série de antigos nazis conseguem postos junto do chanceler Adenauer e da sua CDU, outros tornam-se valiosos activos do Partido Liberal (FDP), alguns como, segundo o autor, o super ministro da Economia Karl Schiller, escondem junto do SPD, o seu passado nazi, antigos administradores de grupos objecto de desmantelamento encontram lugares nas novas empresas. Uma rede de 6 500 antigos SS mantém uma actividade de entreajuda.

Refere o autor que em 1953 encontramos Höhn no posto de director da Sociedade Alemã de Economia Política (DVG), “associação e think tank industrial que visa, no contexto de um crescimento elevado, favorecer os métodos de gestão mais eficazes” e que para “desenvolver e ensinar as formas de gestão de recursos humanos mais adaptadas ao nosso tempo, a DVG decide criar uma escola de comércio para os quadros da economia” sendo que “No contexto do Plano Marshall, do atlantismo triunfante, das ‘missões de produtividade’ além-Atlântico, trata-se de formar gestores à americana, leaders polivalentes” e não já especialistas.

A Academia de Quadros de Bad Harzburg é criada em 1956 sob a direcção de Höhn, que chama a colaborar consigo numerosos dos seus colegas ex-membros da SS.

Os alunos formados na Akademie são técnicos que ocupam já postos de responsabilidade e que os seus empregadores enviam para cursos de algumas semanas ou alguns meses em Bad Harzburg . Escola de formação permanente de alto nível, a Akademie é comparável … a qualquer outra escola de comércio que ofereça cursos de mestrado em administração de empresas para quadros. São ao mesmo tempo a nata e os esteios do “milagre económico alemão”…

Segundo o autor “A escola acolhe até à morte do seu fundador em 2000, cerca de 600 000 quadros provenientes das principais sociedades alemãs, não contando com os 100 000 inscritos em cursos de formação à distância”, tendo 200 000 destes quadros sido formados antes de 1972, altura em que, na sequência de uma série de denúncias públicas do passado de Höhn, o então Ministro da Defesa Helmut Schmidt (SPD) resolve pôr termo à colaboração entre a Bundeswehr e a Academia.

Refere Johann Chapoutot:

O seu método de gestão, hierárquico mas não autoritário, oferecia aos “colaboradores” o gozo de uma liberdade ordenada, em que cada um daqueles é livre de ser bem-sucedido executando da melhor forma o que não decidiu…

…Após 1949, na RFA, a hora é a da participação generalizada, da co-gestão querida por Konrad Adenauer e Ludwig Erhard para evitar a luta de classes e qualquer risco de tentação comunista. Neste contexto, a doutrina de Bad Harzburgo desempenha o papel de catecismo oficial nas empresas, nas forças armadas e depois nas administrações.

O autor não diz, mas poderia dizê-lo, que 1956 foi também o ano em que o Tribunal Constitucional alemão decidiu ilegalizar o Partido Comunista da Alemanha (KPD) em proibido por Hitler em 1933.

O estudo de casos é tão intenso na academia, que fugindo ao espírito da “delegação de responsabilidades” acabam por se criar como que regulamentos para as situações que poderão surgir nas empresas.

A partir de 1969 Höhn passa a defender que “os métodos modernos de gestão sejam transpostos para a administração”, fazendo-se, diz Chapoutot “precursor, se não profeta, da Nova Gestão Pública (New Public Management) que se tornou uma quase – religião do Estado nos países ocidentais, a começar pela Alemanha do chanceler Kohl, desde inícios da década de 1980”.

Quando li a recensão sobre este livro chamou-me a atenção o nome de Stuckart, mencionado por mim em As Secções Nacionais Portuguesas do Instituto Internacional de Ciências Administrativas (1908-2012). Este Secretário de Estado do Ministério do Interior comunicou em 1937 ao Bureau do Instituto Internacional, sediado em Bruxelas, a adesão ao Instituto de uma Secção Nacional Alemã presidida por ele e integrando um total de 20 nomes, e propôs que o VII Congresso do Instituto se realizasse em Berlim em 1939, tendo sido adiado para 1940 por entretanto ter rebentado a guerra. Em 1940 a Bélgica foi invadida e ocupada pelos alemães, e em 1941 a Gestapo retirou todos os materiais das instalações do Instituto – incluindo uma comunicação de Henri Fayol ao II Congresso em 1923 onde se defendia a aplicação de métodos de gestão privada à administração pública – talvez com a intenção de os transferir para a posse de uma nova academia internacional que veio a ser proclamada na Alemanha em 1942. Estes desenvolvimentos e o envolvimento das embaixadas alemãs em tentativas de sedução de académicos de vários países estão muito bem descritos no artigo de Stefan Fisch “Origins and History of the International Institute of Administrative Sciences: From Its Beginnings to Its Reconstruction After World War II (1910-1944/47)“, publicado em IIAS/IISA Administration & Service 1930-2005-, sendo que tenho igualmente comigo a lista de 20 nomes da Secção Nacional Alemã, publicada na Rèvue Internationale des Sciences Administratives, onde se inclui o nome de Reinhard Höhn.

Em todo o caso tenha-se em conta que as experiências de New Public Management arrancaram primeiro nos países anglo-saxónicos, com uma organização do Estado e da Administração Pública historicamente diferente, com um menor peso ou mesmo inexistência de um Direito Administrativo específico.

Também se disse que Charles Bedaux, um francês muito conhecido também nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido e que efectuou contributos para a Organização Científica do Trabalho inicialmente desenvolvida por Taylor teve estreitas ligações com os Nazis mas não as terá tido com o Sicherheitsdienst das SS.

Enfim, o campo destes estudos poderá ser mais vasto do que parece.

 

Notas

(i) Goering, exemplifica Chapoutot, seria ao mesmo tempo administrador do Plano de Quatro Anos, presidente do Reichstag, ministro do Ar, monteiro-mor do Reich, ministro do interior da Prússia, com o direito a interceptar comunicações telefónicas internacionais que passassem pela Prússia e chefe da Luftwaffe.

(ii) Algumas das referências de Chapoutot não se harmonizam com elementos biográficos publicados por outros autores.

(iii) Refere-se no livro o caso de um capitão que faz a sua mulher espalhar a notícia da sua morte, muda de nome, faz uma segunda tese de doutoramento e um concurso para professor, casa-se novamente com a sua “viúva” e chega a reitor da universidade técnica de Aachen, só sendo desmascarado em 1995, isto é 50 anos após o termo da Guerra.

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