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Quinta-feira, Dezembro 5, 2024

Das Primaveras Estudantis ao 25 de Abril de 1974

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

O papel do movimento estudantil na criação do clima para o 25 de Abril

Fui visitar em Lisboa a exposição “Primaveras estudantis” apenas em 27 de Agosto, já aquela estava em fase de encerramento. Excelentemente comissariada por Álvaro Garrido, dá o devido destaque à “Crise” de 1962, centrada na Universidade de Lisboa, à “Crise” de 1969, que teve por palco a Universidade de Coimbra, e aos anos anteriores ao 25 de Abril onde ocorre a morte de José António Ribeiro Santos, baleado em 12 de Outubro de 1972 em instalações do ISCEF, à qual me referi no artigo publicado há 3 semanas no Jornal Tornado, Morte de Ribeiro Santos lembrada 50 anos depois.

Algum saber de experiência feito sugere que as reivindicações da juventude, particularmente estudantil, se desfazem com a idade e com a integração na vida económica e social:

Paulo lembrou-se de dois antigos companheiros de prisão, ambos então estudantes, que sabia estarem agora vivendo com desafogo. Resolveu procurá-los em L…

………………………………….

Saiu daquela casa com um tão doloroso sentimento de desilusão que esteve para não procurar o outro.

“Na maior parte – pensava Paulo os filhos da burguesia são assim. Enquanto jovens, enquanto não tomam directamente posse dos instrumentos de exploração, são por vezes levados a atitudes combativas por ideais de justiça social. Depois, com facilidade os problemas de consciência cedem passo ao interesse material e aos privilégios de classe”(i)

 A acção do livro transcrito passa-se nos anos 1940.

Mas nos anos 1970, recordo-me do que dizia um colega meu de liceu que em Económicas enfileirou no grupo Por um Ensino Popular :“No primeiro ano é-se socialista, no segundo comunista, a partir do terceiro…” Para não falar do Vice-Presidente de Ferro Rodrigues que explicava aos estudantes “tenrinhos” do 1º ano que não havia problema em aprenderem marxismo porque os capitalistas iriam precisar de quem o tivesse estudado.

Contudo, houve na época visões optimistas que tendiam a apresentar os estudantes quase como um grupo social revolucionário:

Entre a juventude portuguesa, os estudantes têm desempenhado um importante papel no movimento revolucionário popular. Embora não estejam inseridos no processo de produção de bens materiais da sociedade, e a sua origem de classe seja heterogénea, os estudantes como jovens estão ligados ao novo e ao progresso e a chama da sua revolta contra o poder fascista, colonialista e imperialista que os oprime, humilha e fecha todas as perspectivas de vida não cessa de crescer.(ii)

Ao longo do período do Estado Novo conhecemos diferentes crescendos de movimentações estudantis, que pareceram muitas vezes esvair-se sem deixar rasto. A circunstância as movimentações de 1962 e posteriores nos aparecerem ligadas (embora, como diz a exposição, Jorge Sampaio tenha vindo a reencontrar participantes de 1962 nas mais diversas posições do espectro político) deve-se a que, embora sem continuidade nas lutas, a memória se foi conservando, a muitos dos activistas estudantis contestatários do fascismo terem vindo a ocupar lugares governativos ou em geral de liderança na democracia, e à compreensão de que a impopularidade crescente do regime revelada pela contestação estudantil veio a contribuir para minar o papel conservador das Forças Armadas, quer directamente pela sua repercussão entre os oficiais milicianos, quer em termos mais amplos entre os oficiais do Quadro Permanente, e nos próprios métodos de trabalho do movimento dos capitães – a circulação de documentos, as reuniões amplamente participadas vão beber a uma experiência de funcionamento já testada no movimento associativo estudantil.

Contudo tem ocorrido que, após um movimento histórico bem sucedido, entre a própria juventude estudantil se suscite um movimento de sinal contrário:

BAROIS – Mas não tenham ilusões, meus senhores, acerca do vosso papel…Os senhores mais não são que uma reacção. E esta reacção é de tal modo inevitável que nem sequer tendes a gloríola de a ter provocado: é a oscilação do pêndulo, o refluxo mecânico, depois do fluxo(iii)

Julgo que também João Chagas terá dito “Que importa a reacção, se somos nós que a criamos?”

 

O impacto da morte de Ribeiro Santos

Houve quem afirmasse que a morte de Ribeiro Santos teve impacto directo na queda do regime em 1974. No entanto, queda de popularidade da governação de Marcelo Caetano já era muito visível e ao longo da vida do regime as “forças de segurança” provocaram mortes em diversas ocasiões, tendo a PIDE alguma experiência de pôr a circular “lendas” supostamente explicativas dos acontecimentos(iv). Para não falar das operações de assassinato de dirigentes dos movimentos de libertação das colónias em cuja montagem participou. Perante uma situação que, reconheça-se, o governo não provocou directamente e foi gerida inabilmente por quem enviou ao ISCEF, a pedido do Secretário da Escola, um agente de 1ª classe (do qual se veio a dizer que tinha sido “neutralizado”) e um agente de 2 ª classe (de nome Rocha, que conseguiu sacar da arma e se pôs a disparar), a tese que o Ministro do Interior Gonçalves Rapazote pôs a circular de que o disparo que vitimou Ribeiro Santos havia sido acidental não merecia ser acreditada(v).

Numa sessão realizada em Económicas nos 40 anos do 25 de Abril evocando a ocupação da Emissora Nacional pela unidade responsável pelo Campo de Tiro da Serra da Carregueira foi referido que um dos milicianos que aderiram à operação era na altura estudante do ISCEF.

A PIDE aliás parece ter estado de algum modo na defensiva. Num relatório de vigilância de Outubro de 1972(vi) sou referido como tendo tido um “encontro de rua” no ponto em que a Avenida da Igreja se encontra com a Avenida de Roma e que o meu interlocutor foi seguido até um prédio na segunda daquelas Avenidas no qual entrou sem que o vigilante conseguisse determinar em que andar vivia(vii), e mais, que eu tinha colocado “comunicados subversivos” em numerosas caixas do correio do Bairro de Alvalade, onde residia. O comunicado dito subversivo não estava anexo nem o seu título, conteúdo, e destinatários eram identificados no relatório. É que se tratava do comunicado do movimento estudantil, redigido unitariamente, sobre a morte de Ribeiro Santos, que seria incómodo juntar ao relatório… Outro incidente que julgo significativo é o ter sido chamado à PIDE o mais jovem elemento da Direcção da Associação do ISCEF a quem disseram saber ser muito novo para estar “organizado” no PCP(viii) mas que nem era necessário que a PIDE desmantelasse aquele partido, o MRPP iria fazê-lo… Ao escrever tão fielmente quanto possível este relato que ouvi ao colega em causa há quase 50 anos, recordo-me de Eduardo Ferro Rodrigues na sessão que no mês passado se realizou no “átrio das Francesinhas” do ISEG, insistindo pela enésima vez em que Ribeiro Santos tinha sido morto PELA PIDE.

Também se vem escrevendo que depois de Ribeiro Santos nada mais aconteceu no movimento estudantil até ao 25 de Abril. Desconheço se alguma escola superior se manteve durante um ano e meio em “greve para vingar Ribeiro Santos”. Semanas depois chegou a Económicas a notícia de que em Medicina as reuniões de curso dos 6º, 5º e 4º anos tinham convocado uma Reunião Geral de Alunos para levantar a greve. Em Económicas foi a Direcção da AE, ciente de que os estudantes tinham mantido ente 16 de Maio, dia da entrada da polícia de choque, e princípio de Setembro, uma greve pela reabertura da Associação, que convocou uma Reunião Geral de Alunos para o fim da tarde de um dia que já não consigo precisar, em hora em que, como era prática corrente desde a sua eleição, os alunos do curso nocturno poderiam participar.

Aparece então convocada uma Reunião Geral de Alunos para o mesmo dia, mas desdobrada em manhã e fim da tarde, esperando-se, creio, que os estudantes de dia, supostamente “revolucionários”, votassem a continuação da greve, e que os estudantes da noite a aceitassem como facto consumado. Na manhã do dia indicado o anfiteatro, com capacidade para 350 pessoas, estava quase cheio. Na mesa senta-se apenas Miguel Raposo Magalhães que em 1971 exercera as funções de Presidente da Direcção após Ferro Rodrigues e os seus Vice-Presidentes se terem demitido, e junto dele, de pé, outro elemento da área dos “pops”(ix). Referiu Miguel Magalhães aliás com toda a exactidão “Estão aqui bem 300 estudantes !”. Um colega do meu ano, que nunca antes ou depois me lembro de ver intervir, pareceu reforçar: “500 !”. Magalhães, jubilosamente, acrescenta “Pois, 500 !”. O colega não disfarçando já o ar de gozo, volta à carga “800!”. Alguns minutos depois, inquiridos pela “mesa” a maioria dos estudantes presentes recusa a realização da RGA desdobrada e ao fim da tarde a RGA única levanta a greve. Em 1973 Vasco Cal lidera uma candidatura de continuidade com a de Manuel Aranda, entretanto refugiado no estrangeiro, que conquista Direcção, Conselho Fiscal e Mesa da Assembleia Geral. O MRPP / FEML sob o nome “Estar na Luta” está presente nas eleições mas recolhe apenas 324 votos, que vai apresentando como vanguarda revolucionária (“Vivam os 324 colaboradores do “Estar na Luta !”).

No entanto não é apenas no movimento estudantil que se registam acontecimentos: o caso da Capela do Rato acaba por levar à demissão dos funcionários e outros servidores do Estado, envolvidos: no caso do ISCEF, já convertido em ISE, o professor auxiliar, já proposto para catedrático, Francisco Pereira de Moura e o monitor Carlos Sangreman Proença – sendo que toda a equipa de assistentes recusa a substituição de Pereira de Moura e os alunos recusam dois outros docentes que viriam a aceitar substitui-lo, é nomeado Director do ISE o ex-Ministro das Corporações Gonçalves de Proença, realiza-se o III Congresso de Aveiro e, com um Acordo PS-PCP entretanto celebrado a oposição apresenta-se às eleições de 1973 para a Assembleia Nacional em que o Governo se cobre de ridículo fazendo vigiar as sessões por autoridades administrativas que impedem que salas cheias de eleitores discutam a guerra, e enfim, forma-se e reforça-se o movimento dos capitães.

 

Ribeiro Santos, herói?

Foi a discussão que se gerou nas “Rodas de Memória” da Conferência que teve lugar na Torre do Tombo, em 10 e 11 de Outubro.

O esforço da generalidade dos participantes para evocarem as qualidades humanas do Ribeiro Santos que conheceram, é sincero e meritório, aliás julgo que quem conduz a sua vida mostrando coragem moral e até física em defesa do que considera justo, merece tal qualificação. E desconhecia que pela sua estatura, que não o impedia de confrontar os “gorilas” ao serviço das autoridades académicas, este estudante de Direito fosse conhecido por “o pequenino”.

Parece-me contudo estranho encontrar em alguns murais do Facebook, que é a única rede social que frequento, posts que especulam sobre o que Ribeiro Santos faria ou que posições tomaria se fosse vivo, como se o aguardasse uma beatificação ou canonização.

A questão que se colocava na altura e continua a colocar é que o MRPP/FEML procurou criar um culto dos heróis, que se portariam bem na cadeia, sendo referenciados nos cartazes como “heroicos filhos do povo”, e até dos viessem a morrer na luta contra a repressão ou em outras lutas.

Nos finais de 1975 outro estudante de Direito, Alexandrino de Sousa, perdeu a vida afogado no Tejo na sequência de uma rixa, disse-se, com um grupo da UDP (a que um colega meu do MRPP de Económicas começou na altura a chamar UDPide – União dos Delatores e Pides) e cheguei a ver cartazes que reuniam as fotografias dos dois “assassinados” em termos que me fazem mais pensar em “mártires” do que em “heróis”.

Em todo o caso tenha-se presente que Ribeiro Santos não perdeu a vida a impedir pides de entrarem num anfiteatro de Económicas, como agora mentirosamente se tenta propalar, mas a tentar impedir que estes saíssem desse anfiteatro com o informador que brevemente olharam e assinalaram não poder identificar, e após um dirigente da Associação Académica de Direito ter lançado:

Eh rapazes ! Não há que ter compaixão com torcionários!”

Por mim, acho que se desperdiçou irresponsavelmente uma vida.

 

Impunidade

Tem sido dito que o agente que disparou – aqui designado por pide Rocha – nunca foi julgado nem condenado, mas só recentemente, com a divulgação feita de alguns documentos, me apercebi de que houve inquérito, com audição de testemunhas e intervenção do advogado da família, e que não ocorreu julgamento, que teria de ser feito em Tribunal Militar, porque o Ministro da Defesa Silva Cunha se pronunciou contra.

Hoje em dia, com a autonomia do Ministério Público e o papel reforçado dos Tribunais de Instrução Criminal é possível não acusar após a fase de inquérito e será sempre um Tribunal a decidir, mas talvez a decisão do Ministro da Defesa tivesse na altura habilitação legal. Se fosse julgado, optaria Rocha por invocar a legítima defesa? Não é de excluir, pelo que se viu em outros julgamentos, que a tese fosse acolhida pelos juízes.

Em todo o caso participou na fuga que em 1975 reuniu 89 membros da polícia extinta, pelo que parece adequado concluir com o Fado de Alcoentre de Fernando Tordo:

 “Que se passa? Então isto não é uma ameaça ?

Ali andou mãozinha de reaça. Deixaram fugir mais oitenta e nove …”

 

Notas

(i) Manuel Tiago, Até Amanhã Camaradas, Capítulo XVII, 9

(ii) José Pacheco Pereira, As Armas de Papel, “Manifesto à Juventude Estudantil Portuguesa”, in 12 de Outubro, Jornal dos Comités Ribeiro Santos, nº 1, Janeiro de 1974.

(iii) Roger Martin du Gard, O Drama de João Barois.

(iv) Estou a pensar no caso do estudante atingido em Coimbra, algum tempo antes, por “tiros para o ar” da PSP, sobre o qual se comentou que certamente ia a voar quando foi atingido.

(v) No Depoimento escrito no Brasil, Marcelo Caetano não se refere ao caso Ribeiro Santos, mas detém-se na análise do perfil, como hoje se diria, de Rapazote, escolhido ainda por Salazar, que acabou por substituir por César Moreira Baptista.

(vi) Mantenho aqui as referências feitas em nota de rodapé no artigo anterior com ressalva do meu encontro com o Presidente da Direcção da AE, Manuel Aranda, que talvez se tenha realizado em Dezembro.

(vii) Encontro com um colega na altura estudante do IST, meu conhecido de há muito e totalmente alheio às minhas actividades no movimento associativo estudantil; o inepto vigilante perdeu-o de vista possivelmente por se tratar de um filho da porteira do prédio.

(viii) Enganavam-se…

(ix) aaspm, a quem já me referi no artigo anterior.

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