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Sábado, Abril 27, 2024

De Ataturk a Erdogan

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Quando tomamos como objectivo escrever sobre uma determinada realidade é frequente que nos demos conta de que a nossa percepção actual foi estruturada por uma leitura inicial. Isso sucedeu certamente com muitos dos leitores que seguiram os recentes processos eleitorais para a Presidência e para o Parlamento turcos, não faltando referências da comunicação social ao fundador, vai por uns 100 anos, da Turquia moderna. A minha leitura inicial sobre este tema foi Mustapha Kémal, ou la mort d’un empire, que ainda hoje considero um texto valioso e eminentemente satisfatório. A orientação política do autor? Um nazi.

 

Benoist – Méchin

Esta indicação merece algumas explicações. Teria cerca de 16 anos quando encontrei nos Livres de Poche como nºs 1 e 2 de uma série Le Loup et le Léopard o título acima identificado e outro Ibn Séoud ou la naissance d’un royaume(i), ambos da autoria de um tal Benoist-Méchin. No ano seguinte foi-me oferecida a Histoire de La Seconde Guerre Mondiale de Raymond Cartier em que, a propósito de uma iniciativa de aproximação entre a Alemanha, ocupante de uma vasta zona de França, e o regime de Vichy – a transferência do corpo do Duque de Reichstadt, filho de Napoleão e da arquiduquesa Maria Luísa, para os Inválidos(ii) – referia ter-se tratado de uma ideia do nazi francês Benoist – Méchin.

Cartier não era um radical mas não deixou de denunciar os intelectuais colaboracionistas. Benóist – Méchin escreveu entre as duas guerras mundiais uma História do Exército Alemão em dez volumes e acabou por convergir com outros intelectuais, incluindo o escritor seu amigo Pierre Drieu La Rochelle, numa defesa da aproximação entre a França e a Alemanha, mesmo apesar da implantação do nazismo ou até na convicção que a republica francesa deveria ser substituída por um regime autoritário. Por seu turno na Alemanha no início dos anos 1930, alguns intelectuais defendiam a aproximação com a França e com a cultura francesa, só numa fase mais adiantada se revelando instrumentais no conflito e na ocupação, como foi o caso de Otto Abetz que viria a ser nomeado embaixador do Reich junto da França de Vichy(iii) e teria um papel importante na organização da rede de intelectuais colaborantes. Abetz era amigo pessoal de Benoist-Méchin o qual veio a desempenhar funções nos governos de Vichy, onde chegou a ser ministro sem pasta.

Benoist-Méchin parece, no seu tempo de militante político, não ter sido levado totalmente a sério. Relata Victor Serge, membro da oposição soviética, que Bénoist-Méchin, em Paris, lhe pedira uma entrevista:

Informei-me a seu respeito junto dum editor das esquerdas, que me disse: “Ex-compositor de música, é um bom compilador, sem cor política…”. Encontrámo-nos num café do boulevard Saint-Michel. Esperava-me um homem novo de óculos, aí com trinta e cinco anos, banal, circunspecto e muito atento. Dez minutos depois, já eu me tinha convencido de que ele trabalhava simultaneamente com o 2º Bureau e com qualquer outra organização – talvez alemã. Entretanto explicava-me a sua intenção de escrever uma história da guerra civil na Ucrânia”(v).

Com o fim da guerra, acabou, com outros colaboracionistas proeminentes, por ser condenado à morte, no entanto a pena veio a ser comutada em prisão perpétua e depois em 20 anos de prisão, tendo sido libertado condicionalmente em Novembro de 1954. Veio a escrever diversas obras históricas, sobretudo sobre países árabes.

De forma que o seu Mustapha Kémal foi integralmente escrito na prisão , entre 1949 e 1953, com inerentes restrições, a que o autor alude com alguma ironia, mas uma bibliografia bem organizada, e sob a recordação de uma visita efectuada em Julho de 1941, em representação do Marechal Pétain ao local que então abrigava os restos mortais do Ghazi(vi). Na sua época Kémal foi popular em vários sectores do espectro político e recordo a propósito a homenagem implícita do antifascista das frentes populares Eric Ambler em The Mask of Dimitrios e em Journey into Fear.

O que persiste das características do movimento fundador da Turquia moderna

 

A independência

Mustafá Kémal e os seus partidários recusaram as medidas aceites pelo Sultão vencido na I Guerra Mundial e integradas no Tratado de Sèvres que colocavam a Turquia à mercê das potências vencedoras, neutralizaram as forças de ocupação francesa e italiana, derrotaram e destruíram no terreno um exército grego que avançara quase até Ankara e reocuparam quase todo o território até ao Mediterrâneo, tendo sido a cidade de Esmirna incendiada, e, depois de uma medição de forças com as tropas inglesas, sem qualquer disparo, abriu-se o caminho para a assinatura de um novo Tratado em Lausanne.

A Turquia moderna ficou abrangendo basicamente a península da Anatólia, aceitando a perda de todos os territórios do antigo Império Otomano de população não-turca, designadamente de origem árabe. A forma de República resultou da separação do Sultanato e do Califado, abolição do Sultanato e expulsão do Sultão. Tratou-se de um processo de independência da Turquia protagonizado pela oficialidade do seu exército e pela população da Anatólia, que foi elegendo representantes para sucessivas assembleias, que acabaram por ficar duradouramente sob a influência da corrente kemalista, pela inviabilidade de lideranças alternativas, ainda que da parte de outros dirigentes militares do processo de independência, que acabaram marginalizados.

A Turquia de Erdogan mantém basicamente este perfil de independência, sem prejuízo de, à semelhança do que havia ensaiado Kémal em relação a uma convergência pan-turaniana, que envolveu designadamente o Afeganistão, estar aberto o caminho para uma aproximação com o Azerbeijão e com algumas das antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central, aliás recentemente Erdogan reivindicou um lugar nas decisões sobre a Crimeia por força da existência nesta de uma minoria tártara e reforçou recentemente o seu contingente no Kosovo no âmbito da NATO. A exclusão da Turquia da Europa Oriental pós I Guerra Mundial não eliminou aliás toda uma série de minorias étnicas turcas ou muçulmanas que começam a ter relevância política, para não falar da imigração turca na Alemanha. Quanto a Chipre, Erdogan parece querer cristalizar a divisão em dois estados em detrimento da reunificação. Já o interesse pela Líbia parece reavivar tempos do Império Otomano.

 

A homogeneidade

O princípio da homogeneidade da população levou, no período de criação do novo estado turco a uma limpeza étnicas generalizada: a população de origem grega teve de sair da Ásia Menor, de onde desde tempos imemoriais se falava grego, e, em seu lugar, a população de origem turca foi expulsa da Grécia para a Turquia(vii); os arménios, que já tinham sido massacrados no início da I Guerra Mundial pelo governo turco de Enver (e desde aí sempre que se evoca o “genocídio arménio” conte-se com reacções de fúria de todos os governos turcos até ao de Erdogan), perderam novas posições quando Kemal ainda estava a tentar firmar o seu movimento os territórios turcos do estado arménio patrocinado pelas potências ocidentais vencedoras da Guerra; os curdos foram incansavelmente reprimidos, e longe da prometida constituição de um Curdistão independente, estão hoje repartidos pela Turquia, Irão, Iraque e Síria.

A perseguição dos curdos, que é uma tradição desde Kémal, intensificou-se sob Erdogan, que depois da proibição do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), convenientemente considerado pelos EUA e pela EU organização terrorista, quer alargar a proibição ao partido parlamentar apoiado pela população curda e vem intervindo militarmente contra posições curdas na Síria e no Iraque sob o pretexto de que é tudo PKK.

 

A laicidade

As medidas legislativas que aproximaram a Turquia do Ocidente operaram em pouco mais de uma dezena de anos, ou seja entre 1924, ano de consolidação do regime e 1938, ano do falecimento de Kémal, e quase todas puseram em causa directa ou indirectamente usos e tradições originárias da vivência islâmica, de onde decorriam regras que codificavam quase todos os aspectos da vida social.

Muito rapidamente foram adoptados, sob conselho de peritos de diversas áreas, o código comercial alemão, o código civil suíço – que assegurava a igualdade de homens e mulheres – e o código penal italiano, o que facilitou o acesso dos tribunais e dos juristas em geral à jurisprudência dos países de origem, o sistema de pesos e medidas ocidental, o calendário gregoriano, o alfabeto latino, como ajuda à própria divulgação da língua turca, e toda uma série de outras “revoluções como o uso do chapéu….

A orientação da sociedade para a laicidade foi reforçada na altura com o fecho das escolas religiosas, inclusive de origem cristã.

Repare-se que se condensava assim num reduzido período uma evolução que no Ocidente durou centenas de anos e provocou numerosas guerras e conflitos sociais.

Trata-se de uma vertente em que, como é conhecido, a actuação de Erdogan provocou recuos e levou ao levantamento de proibições.

 

De ditadura a democracia tutelada 

Mustafá Kémal

A partir de 1926, em que terá sido identificada uma conspiração que visava o assassinato de Kémal e foi fortemente reprimida, apesar de se manter em vigor a Constituição de 1924 só foi autorizada a candidatura a deputados de membros do Partido Popular Turco, passando de facto a Turquia a funcionar em regime de partido único. Mais tarde o Presidente Kémal experimentou ser o “professor de democracia” do seu regime mas o partido de oposição que se chegou a formar com pessoal seu também não vingou,

Sucedeu-lhe o general Ismet Inonu(viii), seu companheiro de muitas vitórias e negociador do Tratado de Lausanne, passando o Partido único a chamar-se Partido Republicano do Povo, o qual é agora qualificado como social-democrata, mas cuja génese nada tem a ver com o movimento operário. Com o surgimento de novos partidos protagonizado por personalidades que tinham participado nos projectos kemalistas passou a haver alguma alternância. No entanto uma regra não escrita ditava que as Forças Armadas vigiariam os governos e interromperiam os mandatos dos governos que favorecessem o enfraquecimento das exigências de laicidade.

Foi o caso do governo de Adnan Menderes, que governou de 1950 a 1960 e foi derrubado por uma junta militar que promoveu o seu enforcamento e de outros colaboradores próximos. Viria a ser reabilitado postumamente. Houve outros episódios com intervenção das Forças Armadas a ponto de ser sido esse risco identificado pelas estruturas de escrutínio dos candidatos à adesão à União Europeia como um bloqueio antidemocrático, enquanto que a liderança de um, na altura primeiro ministro, islamista dito moderado – Erdogan -, não o era. Uma alegada conspiração do alto comando “kemalista” descoberta na altura permitiu neutralizar os generais mais perigosos.

Liberto dos militares kemalistas, Erdogan acabou por romper com uma facção islâmica liderada por Fethullah Gülen e montou em 2016 uma operação de repressão de um golpe imputado a este que já terá atingido 90 000 quadros das forças armadas, magistratura-, administração pública e jornalismo, mas a encenação não convenceu os Estados Unidos a entregar-lhe este soi-disant terrorista.

A oposição, liderada pelo Partido Republicano do Povo, que continua a reclamar-se do kemalismo, e obteve um apoio discreto do partido curdo em vias de ilegalização, obteve nas últimas eleições um grande apoio mas não conseguiu impedir a reeleição de Erdogan nem obter maioria no parlamento, que continua a deter o nome histórico de Grande Assembleia
Nacional.

 

Autonomia em relação a pressões externas

Recep Tayyip Erdoğan

A diversificação de ligações externas foi uma característica tanto de Kémal que por exemplo celebrou um tratado de amizade com a URSS, que se manteve até 1945, como de Erdogan.

A invocação da acção de inimigos externos para obter resultados em disputas internas também. Ficou conhecido que quando Mustafá Kémal depois de acabar com o Sultanato quis acabar como o Califado, armou um escândalo em torno de uma carta de apoio ao Califa em funções subscrita por dois príncipes muçulmanos da Índia, um dos quais o Aga Khan da altura, retratados pelo regime como agentes notórios do Intelligence Service britânico.

Confesso que o episodio me acudiu ao espírito quando recentemente se tornaram evidentes as preferências do “Ocidente” nas eleições turcas. Erdogan não deixou de usar essa cartada gritando que Biden queria o seu afastamento. Os resultados…

A evolução da política turca não tem sido nem será linear e não pode ser reduzida a uma oposição entre kemalismo e anti-kemalismo, que por sua vez não pode ser entendida como uma oposição entre bons e maus.

 

Notas

(i) Mustafá Kémal seria o lobo cinzento, conforme o Grey Wolf de H.C. Armstrong. e Ibn Séoud que recuperara o controlo do reino do Nedjed, onde a sua família tradicionalmente reinava e a seguir incorporara outras terras árabes, o leopardo do deserto, ambos dando origem a novos estados, a saber a República Turca e o Reino da Arábia Saudita.

(ii) Que, segundo o autor, não entusiasmou os parisienses: “Il nous prennent le charbon et nous rendent des cendres”…, Histoire …, Larousse-Paris Match, 1968, I Volume, p. 183.

(iii) Já vi escrito que Otto Abetz seria na origem um social – democrata, mas a sua inscrição na organização paramilitar do SPD foi apenas uma das suas procuras iniciais de filiação.

(iv) Possivelmente em 1939. Cfr. O Ofício de Revolucionário, Moraes Editores, 1968, pp 403-404.

(v) “- Sabe russo? – Não … Já foi à Ucrânia? – Não. – Estudou a revolução russa? – Não especialmente…” Estas limitações não impediram Benoist-Méchin de escrever e publicar em 1941 L’Ukraine, des origines à Staline.

(vi) Destruidor de cristãos, titulo que a Assembleia Nacional lhe conferiu após o esmagamento das forças gregas.

(vii) Mustafá Kémal era natural de Salónica.

(viii) Ataturk, pai dos turcos foi o nome que Kémal escolheu quando os turcos foram convidados a ter um segundo nome (Kémal – perfeição – fora o nome escolhido na juventude para o distinguir do seu professor de matemática, junto do qual era “repetidor”). Inonu era o nome de um local em que Ismet bateu por duas vezes o exército grego.

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