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Terça-feira, Outubro 15, 2024

Desesperos

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

O anunciado desbloqueamento, no mês passado, de mais um pacote de 61 mil milhões de dólares de apoio à Ucrânia merece ser apreciado além da simples afirmação que não garantem que a Ucrânia ganhe a guerra, mas impedem que ela a perca; isto porque parece que a maior parte deste montante respeita a equipamento militar que já foi produzido e em grande parte já enviado, pelo que pouco mais de 15% se deverão traduzir em novas armas e equipamentos.

E isto pode bem ser tudo o que a Ucrânia receberá em financiamento norte-americano para reequipamento durante o resto de 2024, o qual, a concretizar-se a grande ofensiva russa prevista para finais deste mês, será provavelmente consumido em poucas semanas. Além da incógnita gerada pelo resultado das próximas eleições nos EUA, que mais sabemos dos planos norte-americanos, além da intenção de vir a usar os fundos russos depositados em bancos ocidentais (EUA e UE) e estimados em 300 mil milhões de dólares, dos quais 260 mil milhões de dólares estarão depositados em bancos da zona euro onde não existe, para já, cobertura legal para sua apreensão?

Um pacote financeiro como o aprovado, que se apresenta claramente como uma medida provisória para aguentar a situação militar no curto prazo, sugere que a administração Biden estará a apostar em levar os russos a concordarem em iniciar algum tipo de negociações, repetindo o que fizeram em 2015/16 com o tratado de Minsk II, algo que parece difícil depois de ter surgido a lume a confirmação – primeiro pela ex-chanceler alemã Angela Merkel, nesta entrevista ao semanário alemão Die Zeit e depois o ex-presidente francês François Hollande numa entrevista ao jornal ucraniano Kyiv Independentque aquele acordo foi principalmente usado para reconstruir e reequipar o exército ucraniano que mais tarde retomou os ataques nas províncias de Donbass.

Reduzida substancialmente a probabilidade da Rússia voltar a aceitar a suspensão da sua iniciativa militar, o que resta a uns EUA que, a par com as crescentes dificuldades financeiras, vivem uma conturbada conjuntura política interna (momentaneamente amenizada pelo forte lobby do Complexo Industrial Militar dos EUA na Câmara dos Representantes) e continuam sem revelar claros sinais de definição a médio prazo?

Em simultâneo e quase desapercebidamente, a Câmara dos Representantes norte-americana procedeu à aprovação de legislação para facilitar o uso dos activos russos apreendidos em bancos ocidentais, aumentando a pressão sobre a Europa, no que pode bem ser visto como outra vertente a explorar para o financiamento da guerra. Mas a criação do chamado “Fundo de Defesa da Ucrânia” depende grandemente da adesão da Europa, território que deterá cerca de 260 dos 300 mil milhões de dólares apreendidos e a Rússia já fez saber que retaliará, no caso da UE e outros países do G7 seguirem o exemplo dos EUA, no que se afigura como uma ameaça tanto mais real quanto, só em dividendos referentes aos resultados de 2022, a Rússia já terá conseguido bloquear mais de 20 mil milhões de dólares, de um grupo de empresas com sede nos EUA, Alemanha, Áustria e Suíça, encabeçada pelo banco austríaco Raiffeisen, a que se juntam Philip Morris, Pepsi, Japan Tobacco International e Automobile, Mars, Mondelez, Kia Motors, Imperial Energy Corporation e Procter & Gamble.

Enquanto isto, os principais dirigentes europeus estão a revelar-se cada vez mais dependentes dos EUA e sempre mais que dispostos a curvar-se em qualquer direcção política que satisfaça os desejos norte-americanos, não sendo por isso de espantar que acolham alegremente mais esta directiva, com a qual os EUA planeiam prolongar a guerra por procuração que mantém na Ucrânia enquanto simulam “ganhar tempo” até às eleições de Novembro, quando na realidade ambos os partidos nos EUA (democratas ou republicanos) estão unidos na continuação da guerra, pouco importando quem ganhe a presidência ou quem tenha a maioria no Congresso depois de Novembro, pois as elites políticas norte-americanas desejam a prossecução da guerra na Ucrânia, a manutenção do financiamento de Israel e a continuação da guerra económica com a China.

Por outro lado e a avaliar pelo crescimento do PIB da Rússia (nos últimos seis meses aumentou entre 4,9% no 3º trimestre de 2023 e 5,5% no último trimestre do ano), os sucessivos pacotes de sanções ocidentais aplicados à Rússia por iniciativa norte-americana, tiveram até à data pouco ou nenhum impacto na economia daquele país, podendo até argumentar-se que as sanções estimularam a economia russa e não a prejudicaram; este facto pouco divulgado na comunicação social ocidental e que apesar de conhecido nas respectivas esferas de decisão não produziu ainda qualquer efeito na revisão das políticas, como se constata pela ideia de recurso aos activos russos bloqueados que conhecerá a já anunciada retaliação do lado russo. Igualmente pouco referido na imprensa mainstream, um estudo do Banco Nacional Suíço, publicado em Setembro de 2023 e referido na página do índice norte-americano NASDAQ, indicava também que a guerra na Ucrânia reduziu o crescimento económico europeu e elevou “consideravelmente” a inflação, sendo que ainda se poderiam vir a sentir efeitos piores, sendo que as consequências negativas da guerra serão provavelmente muito maiores a médio e longo prazo, especialmente no que diz respeito à economia real.

A ideia de recorrer aos activos russos congelados no Ocidente pode ainda ser visto como um sinal da fragilidade financeira de americanos e europeus, incapazes de suportar o financiamento da guerra, além de, como afirmou o Nobel da economia Robert Shiller, constituir uma séria ameaça ao sistema do dólar norte-americano, que ainda é o eixo central do império e última fonte de poder global dos EUA, cuja incapacidade de perceberem e admitirem que já não são um incontestado poder hegemónico e que o Sul global em grande desenvolvimento insiste em mais independência e em maior autonomia, especialmente agora em que os BRICS começam a parecer uma alternativa válida.

Em resumo, sempre conduzidos pelas mais extremas convicções neoliberais e neoconservadoras, no momento em que o império económico global dos EUA regista o seu período mais instável, estes insistem em desesperadas soluções autocráticas como a da apreensão e transferência de fundos para a Ucrânia poder continuar a guerra, mesmo arriscando que o resultado da iniciativa possa revelar-se significativamente pior que o das sanções económicas, tanto para os interesses norte-americanos como para os europeus.

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