A Expansão Portuguesa sem tricas ideológicas. Lição a cargo dos novos integralistas.
“El rei Dom João I, depois da vitória sobre os castelhanos em Aljubarrota, decidiu casar e publicou um anúncio a que respondeu uma inglesa, chamada Filipa de Lencastre. Esta veio e deu à luz um rancho de filhos. Quando estes atingiram a maioridade a mãe reuniu-os para lhes dizer que seriam uma ínclita geração, um epíteto dado pelo poeta Luís de Camões em “Os Lusíadas”, séculos depois:
“Mas, pera defensão dos Lusitanos,
Deixou, quem o levou, quem governasse
E aumentasse a terra mais que dantes:
Ínclita geração, altos Infantes.”
Ninguém sabe como, mas de certeza terá sido o Divino, que depois de Ceuta, no Mediterrâneo, inspirou um dos membros da ínclita geração, Henrique, a mudar o rumo da navegação e que a boa Filipa de Lencastre se tenha alheado da empresa. Os ingleses desde sempre tiveram um fraco pelo Mediterrâneo, como se sabe. Henrique, que nunca mais foi navegador decidiu, inspirado, o caminho é costa de África abaixo, abundante em selvagens para cristianizar e, entretanto, escravizar. Dispunha das rendas da Ordem de Cristo. Os empréstimos dos judeus ficaram esquecidos, porque desilustravam a História oficial (sem fermentos ideológicos) da valente nação cristã.
Esta é uma simplificação que um poder totalitário impôs sobre um acontecimento da História de Portugal. Nenhum facto é contextualizado. Tudo pelo descritivismo mais rasteiro, para não causar dúvidas nem perturbações aos fiéis, que não devem ascender à perigosa condição de cidadãos, para descanso dos pastores. O poder dos integralistas também inventou uma Raça, a do homem português, entre tantas outras mistificações que a cidadania estava (e há pretenda que continue) impedida de discutir.
Um poder totalitário constrói uma imagem de si, da sociedade e dos governantes, santificando-os – Salazar surgiu com o perfil de Afonso Henriques, de Nuno Alvares Pereira e até da linha da costa portuguesa, sem discussões.
Construir uma história é uma questão de poder. Não é admissível a dúvida ou outra interpretação. Por exemplo, que a batalha de Aljubarrota foi o culminar de um processo conduzido pelos ingleses para manterem o controlo da fachada atlântica da Península Ibérica. Que o casamento de João I com a filha de João de Gant, da casa de Lancaster, fez parte da consolidação da estratégia inglesa de expansão, que o ataque a Ceuta foi uma manobra para iludir os soberanos castelhanos e experimentar novas tecnologias navais. Que a navegação portuguesa no Atlântico servia de contra ponto à estratégia continental castelhana de unificação dos reinos da Espanha, que seria conseguida com a tomada de Granada aos últimos mouros. Pode não ter sido nada assim, mas também pode ter sido. A escola pública é o local adequado para iniciar a discussão, de qualquer discussão sobre a sociedade.
Um Estado democrático permite a pluralidade. A escola pública é um dos veículos da liberdade de questionar, de conceder oportunidades aos cidadãos para exercerem o direito a procurar novas interpretações da sua história, aquilo que justifica serem cidadãos e não meros portadores de um cartão com uma nacionalidade.
Os subscritores deste manifesto são adeptos da venda de cartões de cidadão a retalho, e da cidadania restrita dos clubes, das seitas, dos grupos fechados sobre si. São naturalmente, embora alguns não gostem de admitir, adeptos dos vários racismos, o da origem étnica, o da origem social, familiar, de status! São segregacionistas. Reservado o direito de admissão a quem pensa como nós, os do grupo, os da família, os da paróquia.
Os adversários da disciplina de educação para a cidadania serão, certamente, contra o ensino da perspetiva na História, como o serão no desenho e na pintura. São naïf. Opõem-se à existência de pontos de vista na filosofia. Entendem que o Estado, a sociedade politicamente organizada, não tem a obrigação de dotar os seus cidadãos e, nomeadamente, os mais frágeis, de meios para interpretarem a realidade. O que implica sair do casulo para observar o mundo. É preciso sair da ilha para ver a ilha. Escreveu Saramago. Um proscrito da cidadania, claro. O livre arbítrio para decidir educa-se. A escola pública tem esse papel atribuído pela sociedade democrática.
Os proponentes deste manifesto monocolor entendem que basta a verdade dos programas de TV e a palavra do chefe de família. E, já agora as catilinárias do Marques Mendes para criar as bases de um cidadão! Não há nenhum manifesto destes zelotas contra o Big Brother, e as cenas soft porno das TV, mas há contra a educação sexual na escola pública! A hipocrisia é manifesta no manifesto.
Regressamos à democracia orgânica e ao papel dos elementos da família salazarista representada na capa do antigo livro da 3ª classe. Uma casa portuguesa com pão e vinho sobre a mesa e respeitinho. Esta é a ideologia subjacente ao dito manifesto contra a disciplina do ensino da cidadania. A Declaração Universal dos Direitos da Humanidade será dada em que disciplina? E a defesa dos lugares classificados como património da humanidade?
A visão única – a cargo do pater famílias – que os subscritores do manifesto defendem, em oposição à existência de uma disciplina com os conceitos elementares da pertença a uma sociedade democrática, é uma manifestação rançosa, teocrática e totalitária – é atribuir a um pastor do poder de encerrar o seu rebanho dentro de um redil ideológico.
Os estados teocráticos funcionam com essa lógica.
Do que estamos a falar é do velho e relho integralismo lusitano! De António Sardinha, por exemplo.
Do que estamos a falar – e nenhum dos subscritores do manifesto é ingénuo – é de conceitos de poder. Do poder de um grupo de interesses, fechado sobre privilégios, defensor da velha ordem e de uma hierarquia de mando, ideologicamente adepto da manutenção das condições que desde o passado impõem a desigualdade social, económica, de género como uma condição natural – sempre houve ricos e pobres, se souberem o que custa mandar preferiam obedecer, resignem-se – impor a sua visão totalitária a uma sociedade representada pela pluralidade dos cidadãos, aberta à diversidade e à mudança.
O que está em causa é a liberdade e o futuro. É a liberdade que neste manifesto é questionada pelos instalados, os medrosos, os que sentem ameaçado o seu poder, pelos antiliberais, curiosamente.
O absolutismo miguelista sempre esteve presente na sociedade portuguesa, de vez em quando estala o verniz a uns insuspeitos “talassas” e lá voltamos a ter de discutir a liberdade e o liberalismo contra o absolutismo.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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