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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Ética, Ética Aplicada e Direitos Humanos

Maria do Céu Pires
Maria do Céu Pires
Doutorada em Filosofia. Professora.

“Todavia, com o progresso do conhecimento, surge uma terceira missão, a saber: a do bom uso desses progressos do conhecimento, a do dever de favorecer os seus efeitos benéficos e de limitar os seus efeitos perversos.”[1]

Para os Gregos o termo “ethos” significava “ morada” e também “modo de ser”, “carácter”. Desde o início que a Filosofia toma como uma das suas tarefas fundamentar esse âmbito da vida dos seres humanos que designamos como moralidade. A esta fundamentação, ou seja, ao nível reflexivo e teórico que tenta encontrar princípios avaliadores da acção quotidiana, do modo como o homem se apropria da sua existência relacionando-se com os outros e construindo o seu carácter, damos o nome de Ética. Tem sido, então, finalidade da Ética esclarecer em que consiste o domínio da moralidade, distinguindo-o de outros, por exemplo, o político, o jurídico, o religioso. Hoje, coloca-se um novo desafio a esta área da Filosofia: como aplicar os princípios éticos aos diferentes âmbitos da vida humana? Assim, como resposta a esta questão surge a designada Ética Aplicada.

Em termos históricos, a Ética Aplicada surge como bioética no início dos anos 70. Tratava-se de tentar responder aos crescentes dilemas colocados pelo desenvolvimento da Medicina e da Biologia. Em primeiro lugar, era necessário encontrar respostas para os problemas colocados pelo uso das tecnologias médicas, estendendo-se depois aos problemas dos diversos profissionais de saúde e, num momento posterior, a temas sociais: saúde pública, questões populacionais, ecológicas e de desenvolvimento. Os seus princípios orientadores são os seguintes: o respeito pelas pessoas (autonomia), beneficência (fazer ou promover o bem e não causar mal), justiça (distribuição de benefícios e sacrifícios de forma equitativa). Contudo, alguns autores apontam a insuficiência destes princípios, propondo um alargamento do âmbito da Bioética: de um nível “micro” (ética clínica) a um nível “macro” (social). A propósito refere Leo Pessini:

Uma bioética pensada a nível “macro” (sociedade) precisa ser proposta como alternativa à tradição anglo –americana de uma ética elaborada a nível “micro” (solução de casos clínicos). A bioética sumarizada num “bios” de alta tecnologia e num “ethos” individualista (privacidade, autonomia, consentimento informado) precisa ser complementada na América Latina por um “bios” humanista e um “ethos” comunitário (solidariedade, equidade, o outro).[2]

Considerando de toda a pertinência esta observação de Passini, parece-me que a necessidade de este “ethos” comunitário e humanista não se pode restringir à América Latina. Também no mundo ocidental é urgente que a Bioética trate das questões sociais (acesso aos cuidados de saúde dos excluídos e marginalizados, repercussões das tecnologias médicas no futuro da humanidade, etc.) e questões globais (exploração dos recursos naturais, equilíbrio ecológico, situações de pobreza, desequilíbrio entre países ricos e pobres, etc).

A todos os níveis e não apenas nas áreas médicas, é fundamental a reflexão sobre as consequências da aplicação dos conhecimentos e das tecnologias existentes; o imperativo ético kantiano, que posso fazer, deverá ser reformulado nos termos que devo fazer? É precisamente deste imperativo, ligado às inquietações que hoje nos assombram, que surge a questão colocada por Luís Archer:

À medida que a ciência transfere para as mãos do Homem poderes antes reservados à fatalidade da natureza, no que respeita ao nascer, viver e morrer, pergunta-se até que ponto estamos autorizados a exercer esses poderes e em que medida aquilo que é tecnicamente possível será eticamente aceitável.”[3]

Assim, parece-me existir uma estreita relação entre as questões éticas que hoje se colocam e a problemática dos Direitos Humanos, não entendidos apenas à maneira da sua origem liberal dos direitos individuais mas também à luz do que são hoje os “novos direitos”. Porque o que está em causa é o futuro e a sua possibilidade, parece-me que a questão dos direitos será cada vez mais inseparável da questão da responsabilidade. A defesa dos direitos não pode ser desligada do assumir das responsabilidades, individuais, institucionais e estatais.

A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos aprovada em Outubro de 2005 pela Conferência Geral da UNESCO é bem o exemplo de como as organizações internacionais estão conscientes da necessidade de articular e aplicar princípios comuns que salvaguardem o respeito pela dignidade humana na aplicação aos seres humanos e ao ambiente das várias inovações tecnológicas. Esta Declaração, cujos princípios os Estados – membros se comprometem a desenvolver esforços no sentido da sua efectiva aplicação, parte da consciência da “capacidade única dos seres humanos de reflectir sobre a sua existência e o seu meio ambiente, identificar a injustiça, evitar o perigo, assumir responsabilidades, procurar cooperação e dar mostras de um sentido moral que dá expressão a princípios éticos.”[4] Os primeiros artigos (1 a 9) da Declaração expressam claramente o princípio da autonomia mas artigos posteriores, nomeadamente o 14º, expressam objectivos de carácter social – responsabilidade social e saúde – onde se declara, por exemplo, que o progresso da ciência e da tecnologia deve fomentar o “acesso a alimentação e água adequada; a melhoria das condições de vida e do meio ambiente; a redução da pobreza e do analfabetismo”.[5]

[1] BERNARD, Jean, A Bioética, trad. Vasco Casimiro, Instituto Piaget, Lisboa, 1993, p. 9
[2] PESSINI, Leo, Bioética na América Latina, in Revista Portuguesa de Bioética, Centro de Estudos de Bioética, Abril/Maio de 2008, p. 24
[3] ARCHER, Luís, Fundamentos e princípios, in ARCHER, Luís, BISCAIA, J. e OSSWALD, W. (coord.) Bioética, Editorial Verbo, 1996, p. 20
[4] Comissão Nacional da UNESCO – Portugal, 2006
[5] Idem

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