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João de Sousa

Domingo, Abril 28, 2024

“Existe hoje uma verdadeira pandemia de conformismo”

Entrevista a Rui Correia, eleito o melhor professor do ano em 2019

Contrário à ideia do “utilitarismo da Educação” e da “mercantilização do Ensino”, o docente de História assume que hoje vivemos “a toxicodependência das notas”, que se transformaram “numa espécie do santo graal do acto de aprender”, e a “toxicodependência do ‘curriculum’ universal”. Para Rui Correia, esta “catástrofe pandémica” é um “erro clamoroso” que desconhece o lugar que o saber ocupa. Todos os dias diz aos seus alunos que “estudar não serve para ter um curso, nem para ter acesso à universidade. E nem sequer para ter emprego”

O professor das Caldas da Rainha distinguido com o Global Teacher Prize Portugal recorda como a passividade, a obediência e o comportamento acrítico recompensados outrora se tornaram hoje no maior combate da classe. Nesta entrevista ao jornal Tornado recorda que a Escola “tem de ser um templo de entreajuda” e explica ainda como nos podemos imunizar contra os discursos de ódio e contra os extremismos

Jornal Tornado: Acabámos de celebrar Abril, mês em que o País revisita as conquistas da revolução de 74. Peço-lhe que, como docente da disciplina de História, examine o contraste entre o professor do Estado Novo e o professor do século XXI?

Rui Correia: Há uma grande disparidade entre um e outro. Como habitualmente, uma disparidade que, por vezes, é positiva, outras vezes negativa.

Houve uma desformalização do docente, ou seja, as relações entre os alunos e o professor são hoje muito mais baseadas num conceito de procura do Outro e não numa hierarquização de estatuto. E isto, a meu ver, é muitíssimo positivo. Não significa que não continue a existir uma hierarquia bem definida dentro de uma relação de aprendizagem, como é inevitável, mas essa relação deve ser definida pela qualidade do saber que está a ser partilhado e não pela definição de um estatuto formal que coloque os dois intervenientes em posições opostas. Um professor contemporâneo encara-se a si mesmo como alguém que aprende e não como uma fonte solenizável de onde o conhecimento brota. No que diz respeito à curiosidade esta equiparação entre aluno e professor deve ser muito mais respeitada que antigamente.

Existe uma visão muito nostálgica da autoridade do professor, que é muito repousante, mas que hoje é complementada com muitas outras dimensões que vão para além de uma autoridade definida apenas por um estatuto formal que lhe é conferido.

E que melhor designação substituiu a figura de autoridade do professor?

Idoneidade. Genericamente, aquilo que era esperado de um professor era a afirmação da sua indesmentível, indisputada ou indiscutível autoridade, mesmo que imerecida. Hoje, aquilo que se procura num professor, mais que a autoridade, é a sua idoneidade conseguida através do prestígio do seu saber e da qualidade da relação humana, pedagógica, que consegue estabelecer com o aluno.

Genericamente, aquilo que era esperado de um professor era a afirmação da sua indesmentível, indisputada ou indiscutível autoridade, mesmo que imerecida”

Passámos, assim, de um sistema mais autoritário para um sistema de maior envolvimento com aquele que aprende, um respeito inabalável pelas suas dificuldades, o seu contexto de aprendizagem e pela sua individualidade.

Mas continuam a existir muitos saudosistas dessa época?

Sim, porque também permanece uma visão romântica do que é um professor. Quando ouvimos dizer que as escolas não evoluíram, também ouvimos que está tudo muito diferente.

… em que ficamos?

É o que faz ouvirmos as pessoas que já não entram numa sala de aula há muitos anos e que julgam saber tudo sobre Educação. Na verdade, houve muitas mudanças, basta olhar para os intercâmbios com escolas europeias ou para o incremento de projectos envolvendo o exterior da escola. Temos hoje uma relação muito mais produtiva e activa, não se espera de um aluno a passividade e a apatia. O que nos interessa hoje é garantir que os jovens beneficiam de uma atmosfera certa na sala de aula, que lhes permita desejar a procura do saber. Antigamente, ninguém se ralava com o contexto de aprendizagem, as dificuldades familiares. Entendia-se estas dificuldades como irremediáveis, o que atirou milhares de jovens para fora da escola. A verificação formal do conhecimento e um comportamento acrítico eram recompensados. A passividade e a obediência garantiam o sucesso. Hoje, a maior angústia de um professor contemporâneo é justamente essa passividade. Existe hoje uma verdadeira pandemia de conformismo que é diariamente combatida pelos professores, e um conformismo muitas das vezes preguiçoso (nunca subestimemos o poder da preguiça!).

Elege o conformismo como o maior problema que a classe docente enfrenta?

Tenho para mim que um problema maior que os professores enfrentam hoje não é a impertinência ou mesmo a insolência, que ocorrem ocasionalmente, e não devem ser subestimados, mas sim a indiferença. Desconhecer o lugar que o saber ocupa é o maior adversário do professor.

 

“Mercantilização do Ensino”

“Mais de um terço dos pobres em Portugal são trabalhadores, a maioria dos quais com vínculos estáveis e salários certos ao fim do mês”. Esta foi uma das conclusões do estudo divulgado recentemente pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. A investigação adianta que ter um curso superior não imuniza os licenciados face à pobreza. 47 anos após o 25 de Abril, o que está errado nisto tudo?

A escola serve para aprender coisas. Saber mais. O que está errado é a visão sem sentido de que se estuda para se ter um curso. Estudar não serve para ter um curso, nem para ter acesso à universidade. E nem sequer para ter emprego. Essa não é a pulsão maior do acto de aprender. Quando se estuda não é para tirar uma licenciatura, a ideia nem sequer é trabalhar para ter boas notas…

Um professor contemporâneo encara-se a si mesmo como alguém que aprende e não como uma fonte solenizável de onde o conhecimento brota

Diz isso aos seus alunos?

Todos os dias, em todas as ocasiões.

E eles não lhe perguntam para que serve então estudar quando o desemprego jovem qualificado é uma realidade, ou o futuro pode ser a precariedade, a flexibilidade e a incerteza laboral?

Sou contrário à ideia do utilitarismo da Educação. Estudar serve para saber mais e a Educação utilitária levanta-nos outros propósitos. Veja que logo à entrada da universidade é utilizada a palavra créditos, que converte aquilo que deve ser o acto de aprender numa espécie de mercantilização do Ensino e isto é profundamente nefasto. O acto de aprender tem de rever-se na alegria de aprender, na importância de se desconhecer o mínimo possível, o gosto de saber coisas, o dominar o real.

Tales de Mileto, filósofo grego, dizia: “não sou rico porque não quero. Uma vez li nos astros que iria faltar azeite e comprei uma grande quantidade de olivais que, aliás, vendi a muito bom preço”. Quem conta esta história é Aristóteles com o sentido de provar que o que interessava verdadeiramente era o saber desinteressado. E este aspecto é para mim crucial. É isso que faz de nós pessoas poderosas, civicamente activas. As notas vêm depois. E vêm sempre.

O estudo não serve para fazer funcionários e pessoas empregadas, essa não pode ser a ocupação da escola. Cada vez mais as empresas estão interessadas em procurar outras qualidades nos alunos. A curiosidade, o entusiasmo, o vestir a camisola, a lealdade, a curiosidade, a criatividade, a solidariedade, o espírito de equipa, o pragmatismo.

O que está errado é a visão sem sentido de que se estuda para se ter um curso”

A escola pode fazer muito por todas estas coisas. Aguçá-las todas. É neste sentido que reitero que temos de ter muito cuidado em não nos deixarmos colonizar por esta visão utilitarista da cultura. A Escola tem de servir para o estudo, mas o estudo não termina na Escola, ela deve converter-se no sítio onde desaguem autênticas experiências de aprendizagem.

A Escola está a falhar nesse desígnio?

Que grandes costas tem a Escola. Se os miúdos não sabem as regras de trânsito, é porque a Escola falhou. Se não respeitam o ambiente, a Escola falhou. Se não aprenderam literacia financeira, a Escola falhou. E isto tudo é uma conveniência para todas as outras instâncias de decisão não terem de ser responsabilizadas. A Escola é a instituição que mais progrediu durante a Democracia, é aquela que teve a maior história de sucesso na Democracia portuguesa.

 

As estatísticas e os “rankings”

Uma das ideias que vigora é que os responsáveis políticos e as próprias instituições trabalham para as estatísticas e para os “rankings”.

Para um professor, as estatísticas não interessam para nada. Sou professor, não sou decisor político. Não trabalho para estatísticas. Trabalho para o Artur, para o Joaquim, para a Manuela, para o Ramiro. Não dou aulas para 99% de alunos, dou para 100%, e vou à procura do carácter excepcional de cada aluno. A Escola deve ser uma instituição que acolhe a excepcionalidade. Todos somos excepções e não a norma do que quer que seja. Neste sentido, uma Escola é um lugar de hospitalidade, onde acolhemos a capacidade de poder errar.

Com toda a honestidade, vejo a partir do balcão este interesse pelos números e pelas estatísticas, que dizem respeito, reconheço-o, à vida e ao exercício dos decisores políticos.

Mas as políticas educativas estão a dar essa liberdade aos professores?

Desde há muitos anos que se tem vindo a trabalhar esta ideia de pensar a Educação não como “uma fábrica de notas” mas como uma experiência de afirmação individual. Agora convém referir um aspecto relevante: se não tivermos a coragem política de repensar a forma como se faz o acesso à Universidade, com esta corrida de velocidade a partir do 10º ano para ingressar num curso superior, esqueçam tudo aquilo que é o prazer activo e a felicidade de aprender.

A Escola é a instituição que teve a maior história de sucesso na Democracia portuguesa” 

Enquanto prosseguirmos neste erro clamoroso, não há inovação que aguente, não há qualquer visão humanista do acto de aprender que resista e vamos ter um grande problema pela frente. Hoje vivemos estas duas toxicodependências: a toxicodependência da nota e a toxicodependência do curriculum – achar que existe um curriculum único que deve ser ensinado da mesma forma a toda a gente, com as notas a serem transformadas numa espécie de “santo graal” do acto de aprender. É uma catástrofe pandémica.

É uma mudança que tem de ser feita urgentemente?

Um exemplo, todo o orçamento destinado a saber quem deve entrar no Ensino Superior é um orçamento retirado ao Ministério da Educação. Acha normal que a selecção de quem entra na Universidade seja paga pelo Ministério da Educação e não pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e do Ensino Superior? Outro exemplo que soma ao anterior: pergunte a uma universidade, qualquer que seja, com que regularidade convida ou visita empresas e empresários para dialogarem com os seus alunos e professores. Depois pergunte, quantas vezes fazem o mesmo com alunos e professores do ensino secundário. É mais frequente ver-se professores universitários à conversa com empresas do que com escolas secundárias. Isto é um paradigma que tem de mudar.

Não trabalho para estatísticas. Trabalho para o Artur, para o Joaquim, para a Manuela, para o Ramiro. Não dou aulas para 99% de alunos, dou para 100%”

Quantos professores do básico ou secundário foram convidados para apresentar ideias numa sala do Ensino Superior? De onde vem esta ideia pela qual o Superior nada tem a aprender com o Secundário, o Básico? Ficariam muito surpreendidos com o que todos temos a aprender com professores do Primeiro Ciclo? E o contrário. O último reitor de uma universidade que vi a aprender com os mais pequeninos foi o José Barata-Moura, no século passado. Mesmo as investigações – milhares todos os anos – que se fazem junto dos alunos servem para obter dados e conclusões que não regressam nem são depois comunicadas e aplicadas às escolas de onde provêm.

Humildemente, há muito para aprender uns com os outros. Há uma hierarquia institucional e uma segmentação dos saberes que também é muito nociva e que exige alguma coragem política para revisão de matéria dada.

 

“A pandemia exibiu aquilo que já existia”

As desigualdades na Educação foram novamente acentuados com a pandemia, o que é que os responsáveis educativos podem fazer para inverter o paradigma de resignação de que contextos de privação, de pobreza, de famílias com parcos recursos condicionam oportunidades e sucesso escolar?

Isso é uma missão societal.

Missão da sociedade onde não entra a Escola?

Exagera-se muito acerca do poder real que a escola tem. Mas temos mudado muitos mundos e muitas vidas. Aos milhões. Duvido que os pais de ontem tenham tido uma vida melhor que os pais de hoje. Ao contrário do que se diz por aí, estudar funciona. Sei que há muitos miúdos que compreendem que a única forma de saírem do poço da pobreza é através do estudo. Tenho muitos ex-alunos bem na vida sem serem descendentes de famílias endinheiradas.

Esta pandemia não acentuou nada, simplesmente deixou visível a quem, pelos vistos andava a dormir, enfermidades sociais que já existiam e que os professores combatem há décadas”

A questão não é a ausência do dinheiro, mas sim o desprestígio que a Escola, a Cultura e o saber, têm no seio das famílias. Tenho demasiados alunos oriundos de meios muito desfavorecidos que são excelentes, em grande medida por insistência dos seus pais que, não obstante as suas dificuldades, percebem que a única forma de crescerem em termos pessoais é aplicando-se na única escada social à sua disposição.

O que aconteceu com esta pandemia é que a sociedade acordou para um problema que os professores conhecem há muito tempo. A grande missão da sociedade é aquilo que Roosevelt designava por “freedom from want”, ou seja, todas as pessoas devem ter direito a terem uma vida decente e o mínimo indispensável para sobreviverem com dignidade. A Escola não tem qualquer capacidade para garantir essa qualidade de vida. Nem pode ser essa a sua função. O mundo pode ser uma escola ininterrupta, mas o mundo não é um estabelecimento de ensino.

Quem é que tem então essa responsabilidade?

Essa é a competência dos governos. É para isso que servem. Podemos apoiar quem mais precisa de ajuda de forma acrítica ou não. É isso que determina o papel histórico da política. Permitindo que permaneçam na indigência, vamos construindo uma sociedade mais injusta e deixando uma grande quantidade de miúdos para trás. Toma-se o todo pelas partes com uma facilidade irresponsável. Quando se descobre, mediaticamente, uma rua inteira que vive, parasitariamente, à custa do Estado e, por causa disso, se decide abater uma política de amparo social, entregamos milhares de crianças à pobreza. Assisto a isso muitas vezes nos meus anos de carreira. Famílias pobres a quem o Estado diz não serem suficientemente pobres para serem apoiadas. O que mais há é famílias, ruas e vilas inteiras de gente que trabalha, paga impostos e que, mesmo assim, continuam pobres… Deste modo não há possibilidade de alertar consciências e de pôr os miúdos a estudar.

É inacreditável que se ache que uma família que tenha um bom computador e uma ligação estável à Internet tenha garantidas as condições para se aprender”

Durante as videoconferências tive alunos a ter aulas com crianças ao colo porque não havia quem pudesse acompanhar os irmãos mais novos. Mas também aprendemos que o ensino à distância permitiu aproximar pessoas, como crianças com necessidades educativas especiais que brilharam porque encontraram nesta situação uma oportunidade extraordinária. Temos de tudo! Temos alunos que eram óptimos e desapareceram, temos os que eram menos bom e tiveram melhores notas relativamente ao primeiro período… É uma multidão enorme de situações. Temos de estar cada vez mais próximos dos miúdos e na recuperação das aprendizagens e temos ainda de voltar saber a estar uns com os outros e a ressocializar. Porque vamos demorar muito tempo a deixar de olhar o outro com desconfiança. Esta pandemia não acentuou nada, simplesmente deixou visível a quem, pelos vistos andava a dormir, enfermidades sociais que já existiam e que os professores combatem há décadas.

No entanto, a partir do momento que as promessas de computadores e acesso à internet universal para alunos do básico e secundário não foram cumpridas atempadamente…

… É inacreditável que se ache que uma família que tenha um bom computador e uma ligação estável à Internet tenha garantidas as condições para se aprender. Acho extraordinário que se pense que um miúdo que não tem duas refeições quentes por dia, que não tem um quarto, ou um sítio onde estudar tranquilamente sem que esteja alguém aos gritos à volta, que não tem electricidade ou água potável, que não tem uma casa porque os pais, toxicodependentes, a incendiaram… que basta entregar-lhe um computador muito bom e já não tem desculpa para as más notas. É espantoso que se namore ideias tão ingénuas e desligadas da realidade, e que ultrapassam em muito aquilo que a escola tem de fazer e com que lida todos os dias.

Durante as videoconferências tive alunos a ter aulas com crianças ao colo porque não havia quem pudesse acompanhar os irmãos mais novos”

Repare. As escolas deviam ser o lugar onde se entregam refeições? As escolas não são restaurantes e transformaram-se hoje numa espécie instituição de assistência social.

… Que não deviam ser?

Acho muito bem que o sejam, mas no domínio do saber não no domínio da satisfação das mais elementares carências e necessidades de vida.

Compreende a puerilidade e a lhaneza desta visão? É quase uma crueldade que se está a fazer: exigir tanto a um miúdo que não tem qualquer condição mental para estudar. Recordo que quando os Magalhães foram distribuídos, houve muitos pais que imediatamente os venderam para ter comida para as semanas seguintes.

Que diz um professor a uma família (um pai padeiro e uma mãe cabeleireira) que lhe diz não ter tempo para acompanhar o filho? “Chego a casa e dou-lhe beijos quando está a dormir e dou-lhe outro, antes de ele acordar, quando saio para trabalhar”? Quer que diga a estes pais que abandonem o emprego porque o filho precisa de acompanhamento?

Quando os Magalhães foram distribuídos, houve muitos pais que imediatamente os venderam para ter comida para as semanas seguintes”

Mas esta fase do ensino à distância poderia, ou não, ter corrido melhor?

É irrealista pensar que podia ter corrido melhor. Estou estarrecido e orgulhosíssimo pela forma como os professores, famílias e alunos s se comportaram durante este tempo. Sempre inconformados, é certo, mas agarraram a missão com a devida firmeza. Sou professor há 30 anos e conheço a classe bastante bem para dizer que se evitou que muitos alunos desaparecessem, apesar de todas as dificuldades que têm na vida. São milhares e milhares de vitórias pessoais e de histórias de sucesso. Por que havemos nós de as ignorar?

 

 

Como nos imunizamos contra os extremismos?

Que ideias erradas sobre a Escola mais o incomoda?

Que a Escola serve para o mercado de trabalho. Esta é uma ideia profundamente nefasta.

Uma boa escola é aquela que ….

… que  consegue transmitir a genuína felicidade de saber qualquer coisa .

É defensor da “escola dos afectos”?

Esse termo remete para um lugar muito escorregadio. Tenho uma excelente relação com os meus alunos, mas prefiro dizer que a Escola tem de ser um local de atenção. Atenção pela pessoa que aprende – o aluno e o professor – e pela individualidade e afirmação de cada um; atenção pelo conhecimento – somos melhores se soubermos mais –; atenção social –  pela enorme dívida  que temos em relação ao resto da comunidade e porque devemos atender às necessidades e dificuldades dos outros tentando resolvê-las.  A Escola também tem de ser um templo de entreajuda, tal como o conhecimento. Não há nenhuma civilização que sobreviva sem o culto da solidariedade.

Define-se como especialista de sala de aula. E neste contexto o que é radicalmente diferente entre as aprendizagens do público/privado?

Absolutamente nada. E não é aceitável que haja. É certo que uma escola privada pressupõe que haja o pagamento prévio de uma admissão, que nem todos conseguem suportar; isso gera sempre um elitismo, um filtro plutocrático. Isso é iniludível. Contudo, para um professor, para o acto de aprender este é um aspecto que não tem qualquer relevância.

Há escolas públicas em lugares socioeconomicamente muito desfavorecidos, que se confrontam com uma quantidade específica de problemas. E depois temos escolas públicas em sítios socioeconómicos muito favorecidos, que se debatem com uma enorme quantidade de outros problemas. Não se aprende mais por se ser rico ou pobre. O ter dinheiro não suprime problemas, infelizmente, porque se assim se fosse teríamos a maior parte de problemas resolvidos e todos os ricos seriam felizes.

A única forma de combatermos os discursos de ódio é estudá-los”

A escola é um dos poucos sítios na sociedade onde alguém se preocupa com a autoestima dos outros. Se uma criança estiver só ou a chorar num qualquer corredor de escola, ela não conseguirá estar ali durante muito tempo sem que alguém se chegue ao pé e lhe pergunte o que se passa. Lá fora, numa rua passamos pelos mendigos sem os ver. Se a sociedade em geral funcionasse tão bem como a Escola, que é um lugar de entreajuda, muito bem andaríamos todos.

A questão é que cada caso é um caso. E não pode haver essa esquizofrénica distinção entre o ensino público e privado. Isto é um equívoco, muitas vezes, infelizmente, alimentado por uns e por outros, com interesses políticos muito concretos e que nada têm a ver com o que se passa dentro de uma sala de aula. Numa sala de aula temos de perceber quem é a pessoa que temos à nossa frente, e como podemos contribuir para que goste mais daquilo que vê no espelho. Este é o ponto essencial. Neste domínio, que sentido faz a distinção entre público e privado?

 “Um professor não é pago para ensinar. Um professor é pago para garantir que os alunos aprendam.” (Esta é uma frase sua.) Como educador, o que faz para contrariar que se repliquem discursos de ódio, de racismo, de xenofobia?

Aproveitar todos os discursos de ódio, estudá-los atentamente, dissecá-los até à exaustão. Estudar tudo o que seja extremismo, nefasto e dissecar todas as anomalias, os George Floyds que nos vão aparecendo na vida e tudo o que há de mais tenebroso a acontecer. Estudar o real e trazer a vida para a sala de aulas. A única forma de combatermos os discursos de ódio é estudá-los. Todos os anos leio o “Mein Kampf” de Adolf Hitler pois é a única maneira de tentar perceber o nazismo. A minha função, como professor de História, não é julgar, é tentar perceber, ir à procura, abordar e estudar profundamente tudo. E fazer aquilo que os gregos faziam com a epochê (suspensão dos juízos), que era a ideia de podermos conhecer melhor alguém ou alguma coisa sem fazer juízos. Com estes fenómenos sociais temos de fazer o mesmo: tentar dissecá-los como se fazia aos sapos nos laboratórios de química nos anos 80. Só assim nos imunizamos contra os extremismos, dominando o real e estudando os discursos de ódios, que são um combustível maravilhoso para despertar consciências.

Aponta o direito a errar em sala de aula como algo motivador, positivo. Desafio-o a sair da sala de aula e enumerar cinco grandes erros nas políticas educativas da última década.

O centralismo burocrático; a idolatria pelo mensurável; a fobia pelo erro; a toxicodependência das notas e do curriculum universal; os exames não formativos.

“Salazar em New Bedford”

Rui Correia é professor de História do 3º Ciclo da Escola Básica de Santo Onofre, do Agrupamento Raul Proença, nas Caldas da Rainha, e em 2019 venceu o Global Teacher Prize Portugal, conhecido internacionalmente como o Nobel da Educação.

“Salazar em New Bedford”, acabada de chegar às livrarias, é a mais recente obra do conferencista, editor, embaixador digital dos Centros de Formação de Associação de Escolas (CFAE Centro-Oeste) e autor de numerosos estudos. A publicação da Guerra & Paz resulta de uma investigação histórica sobre como Salazar era visto pelo único jornal diário em língua portuguesa que conseguiu escapar à censura do Estado Novo. Rui Correia mergulhou nesta pesquisa quando descobriu que, durante mais de 50 anos, foi publicado pela comunidade de emigrantes portugueses de New Bedford (Massachusetts/EUA) um outro “Diário de Notícias”, que exercia plenamente os princípios da liberdade de expressão perseguidos em Portugal.

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