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Sábado, Maio 4, 2024

Greve de transportes, outra vez? Proteste com um pouco de demagogia à mistura…

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Como a DECO fundamenta um protesto

A DECO e a sua Revista PROTESTE (cfr. nº 460, de Outubro de 2023) lançaram um movimento de protesto que já envolveu uma queixa à Provedora de Justiça, e reivindica:

que os titulares dos passes de transportes públicos sejam compensados na proporção dos dias de greve. Enviou uma queixa à provedora da Justiça e pretende que seja reconhecida a inconstitucionalidade de algumas normas dos sectores rodoviário e ferroviário, que põem em causa princípios como os da igualdade(i).

A DECO apoia-se em dados do Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social que contudo dizem respeito ao “sector de transportes e armazenamento” e fazem comparações com 2020, ano do confinamento e em que o direito à greve chegou a estar restringido pelo estado de emergência. Conviria aliás isolar o peso das greves no Metropolitano de Lisboa que tiveram uma particular insistência até porque se inseriram em movimentos em que, para além de aumentos salariais, foi também exigida a admissão de mais pessoal.

Percebe-se entretanto que é 2023 e a CP que pesaram na iniciativa da DECO:

Números certamente superados este ano. Basta considerar, por exemplo os quase 100 dias de greve protagonizados pela CP em pouco mais de meia dúzia de meses. Significando isto que, em quase metade desse tempo, os passageiros da transportadora foram condicionados ou privados dos serviços regulares…

Os 3 casos de lesados que a PROTESTE conseguiu ouvir para a peça não são casos de clássica impossibilidade de deslocação, mas sim de pessoas – um empregado que se desloca de Vila Franca de Xira a Lisboa- uma estudante universitária na área de Lisboa, com um part-time, um estudante universitário estrangeiro na área do Porto com um part-time – que são obrigados a alterar os seus horários para aproveitar os serviços mínimos ou se arriscam a faltar a aulas mais importantes ou a chegarem com atraso aos empregos.

CP

Aliás da circunstância de ter havido 100 dias de emissões de pré-avisos de greve não se pode tirar que a CP esteve parada 100 dias, uma vez que os pré-avisos foram emitidos em ocasiões diferentes por vários grupos de sindicatos, muitas vezes visando apenas determinados períodos de cada dia, que houve fixação de serviços mínimos (excepto quando se sabia que os sindicatos convocantes tinham pouca influência) e que os casos de supressão efectiva de comboios – geralmente quando o maquinista não se apresentava ao serviço – foram devidamente registados.

A estudante universitária de Lisboa ouvida pela PROTESTE tem aliás uma saída curiosa que sugere que no seu espírito a CP e os grevistas não são entidades distintas:

Devíamos ser compensados, sobretudo quando são várias greves ao longo de um mês, e o passe é pago mensalmente. Aliás, já presenciei ”picas” a passarem multas nos dias que se seguiram à greve, o que demonstra a hipocrisia da CP.

A própria PROTESTE que cuida de explicar as normas legais sobre decisões de greve e que estas são um direito poderia, na ocasião, ter feito essa distinção.

Diz também a DECO:

Ainda que o valor dos passes tenha descido num passado recente tornando-os mais acessíveis e abrangentes, a verdade é que não faz sentido pagar por um serviço que não é integralmente prestado.

Interessante é a DECO encontrar uma “discriminação legislativa” que afectaria os utentes dos transportes rodoviário e ferroviário.

No caso dos meios marítimo/fluvial, está prevista uma compensação para os passageiros, inclusive os que têm passe. No entanto, esse princípio não se aplica ao transporte ferroviário e rodoviário, deixando milhares de pessoas desprotegidas. No caso dos meios marítimo/fluvial, está prevista uma compensação para os passageiros, inclusive os que têm passe. No entanto, esse princípio não se aplica ao transporte ferroviário e rodoviário, deixando milhares de pessoas desprotegidas.

Transtejo/Soflusa

Procurando reformular o protesto

Em geral, estou de acordo com o princípio de não se pagar quando o serviço não é prestado no entanto é preciso ter em conta alguns elementos.

O não pagamento quando o serviço não é prestado deve dizer respeito a todas as situações e não apenas às situações de greve.

Sou cliente habitual das ligações ferroviárias entre a península de Setúbal e Lisboa, sendo que o “comboio da ponte”, operado pela Fertagus onde não se fazem greves(ii) mas se sucedem sem aviso perturbações imputáveis à Infraestruturas de Portugal, como as da sinalização, ou de avarias que incumbe a esta reparar.

Aliás quando nos sindicatos da IP aos quais são impostos serviços mínimos, os “controladores de tráfico ferroviário” decidem conjugar greves com outras dos sindicatos da CP a confusão generaliza-se e a supressão de comboios é inevitável(iii). Isto sucedeu várias vezes em 2023 sem que o artigo da PROTESTE tenha dado nota.

Conviria ter em conta que na origem das greves estão problemas de gestão, designadamente em matéria de contratação colectiva.

As administrações das empresas podem ser mais ou menos capazes de encontrar soluções consensuais em matéria de definição de condições de trabalho mas, no caso das empresas de capitais públicos, a imposição de tectos de encargos para a revisão de instrumentos de contração colectiva ou para a simples actualização salarial, podem resultar não só de preocupações legítimas com o equilíbrio económico e financeiro das empresas tuteladas mas de necessidades de demonstração de expectativas pouco realistas quanto à evolução da inflação. Foi esse o factor que prolongou as greves da CP em 2023, e que aliás só cessaram quando as alterações dos referenciais permitiram que se chegasse a acordos.

Os movimentos de consumidores não têm tido muita influência na gestão das empresas públicas apesar de a organização aprovada em 1976 ter previsto a representação dos utentes em conselhos gerais e a sua revisão em 1984 em conselhos regionais. A participação de utentes poderia contribuir para um maior moderação nos conflitos. Instituir a perda de receita derivada dos valores dos passes seria positiva neste contexto porque se reflectiria nas contas de cada empresa e teria de ser justificada nos relatórios de gestão.

Torna-se necessário clarificar as situações em que haverá lugar ao reembolso parcial dos valores dos passes.

Não me parece que o estar definida na lei a obrigação de reembolsar o valor dos passes no caso de não realização de transporte entre as duas margens do Tejo implique uma situação de privilégio ou de “desigualdade” em relação aos transportes rodoviários e ferroviários.

Carrismetropolitana

Se os ferries não funcionam a travessia não pode ser feita a nado. Já a falta de ligação ferroviária pode ser suprida em piores condições, de rapidez e de onerosidade, por transportes rodoviários. Dado que com a aprovação do chamado PART – Programa de Apoio à Redução Tarifária se criaram sistemas assentes na intermodalidade faria sentido, talvez por uma descrição, registada previamente com o pedido do passe e actualizável a todo o tempo, que cada utente desse conta do seu percurso habitual nos dias úteis, observadas as normas sobre protecção de dados pessoais. Não fará sentido, por exemplo, reembolsar um passe metropolitano pelo número de dias em que um cacilheiro está em greve, se este não é o meio de transporte habitualmente utilizado.

Aliás convém ter presente que o PART não se traduziu apenas numa redução tarifária e na criação de sistemas assentes na intermodalidade mas na instituição de um sistema de financiamento complexo para o qual para além dos passageiros – através da compra dos passes, municipais ou metropolitanos ou dos títulos de transporte ocasionais – o Estado, os municípios de cada área e… o Fundo Ambiental.

E a repartição da receita dos passes, num contexto em que estes permitem utilizar em sucessão vários meios de transporte geridos por vários operadores (alguns dos quais são prestadores de serviços à Carris Metropolitana, que é uma “marca” gerida por uma sociedade de capitais públicos(iv)), assenta nas “validações” controladas pelos “picas” como diria a estudante universitária de Lisboa ouvida pela PROTESTE, sendo os meios canalizados para o sistema, ao que foi inicialmente anunciado, repartidos entre os operadores em função dessas validações.

Neste contexto, a vir instituir-se a devolução de parte das receitas dos passes em função das greves, as empresas atingidas pelas greves já teriam sido prejudicadas pela não realização de validações pelo que a devolução deveria incumbir ao sistema no seu conjunto.

 

Breve nota sobre a PROTESTE

Como deixei implícito nos comentários feitos ao longo do artigo a PROTESTE desiludiu-me com a forma pouco preparada como lançou esta iniciativa. A Coordenação Editorial poderia ter tentado chamar a atenção das autoras do trabalho para a necessidade de estudar melhor a questão. Mas a Coordenação Editorial tem nova titular e esta é uma das autoras do trabalho.

Pondero escrever eu próprio à Provedora de Justiça, apoiando a proposta da DECO na generalidade mas introduzindo algumas qualificações.

 

Notas

(i) Texto da “jornalista e coordenadora editorial” Filipa Rendo.

(ii) O que por si é uma situação curiosa porque a Fertagus terá conseguido incluir no actual contrato de concessão, que entretanto foi prorrogada, que o Estado suportaria o aumento de encargos no caso de vir a ser aplicado na Fertagus o contrato colectivo vigente na CP.

(iii) Mas não se trata de “greves da Fertagus” como impropriamente oiço às vezes designá-las.

(iv) Ver em 17 de Agosto de 2022 o meu artigo “Inauguração atribulada da Carris Metropolitana

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