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Segunda-feira, Março 18, 2024

Insolvência e Recuperação: campo para juristas ou para economistas?

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Em 11 de Janeiro do corrente ano foi publicada no Diário da República a Lei nº 9/2022, com o seguinte Sumário:

Estabelece medidas de apoio e agilização dos processos de reestruturação das empresas e dos acordos de pagamento, transpõe a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, e altera o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o Código das Sociedades Comerciais, o Código do Registo Comercial e legislação conexa, cujo objecto, vertido no Artigo 3º, importa transcrever:

1 — A presente lei aprova medidas legislativas de apoio e agilização dos processos de reestruturação das empresas e dos acordos de pagamento.

2 — A presente lei transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Diretiva (UE) 2017/1132 (Diretiva sobre reestruturação e insolvência).

3 — A presente lei procede, ainda:

a) À alteração ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado em anexo ao Decreto -Lei n.o 53/2004, de 18 de março;

b) À alteração ao Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto -Lei n.o 262/86,de 2 de setembro;

c) À alteração ao Decreto -Lei n.o 47/2019, de 11 de abril, que cria o mecanismo de alerta precoce quanto à situação económica e financeira das empresas;

d) À alteração ao Estatuto do Administrador Judicial, aprovado pela Lei n.o 22/2013, de 26 de fevereiro, alterada pela Lei n.o 17/2017, de 16 de maio, e pelo Decreto -Lei n.o 52/2019, de 17 de abril;

e) À alteração ao Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto -Lei n.o 34/2008, de 26 de fevereiro;

f) À alteração ao Código do Registo Comercial, aprovado pelo Decreto -Lei n.o 403/86, de 3 de dezembro.

Os diplomas alterados, bastante extensos, não foram objecto de republicação, daí que o alcance efectivo das alterações seja apercebido mais facilmente em primeira mão pelos académicos que acompanham esta problemática e pelas comunidades de profissionais envolvidas na aplicação da legislação.

Dr. Paulo Valério

Realizou-se em Maio do corrente ano um novo Congresso sobre Insolvência e Recuperação, onde este alcance foi discutido, devendo dizer-se que a APDIR – Associação Portuguesa de Direito da Insolvência e Recuperação constituída em 2018, cujo núcleo fundador, dirigido pelo jurista e advogado Dr. Paulo Valério, esteve ligado à organização de Congressos em anos anteriores, discutiu em vários momentos a preparação destas alterações e acompanhou o processo de transposição da Directiva, inclusive junto da Assembleia da República.

Aliás este Congresso de Maio de 2022, cujos trabalhos segui em parte e cujos textos de apoio me foram enviados mostrou-se bastante inspirado na formulação dos seus temas “Novo Direito, Velhos Problemas?”, “New Money, Good Money ?” “Recuperação em Liquidação: o segredo de Fénix”.

Não deixou contudo de ser assinalado por algumas intervenções que a maioria dos presentes eram juristas, embora se disse que certos aspectos da nova legislação abriam caminho à intervenção de economistas.

Não tenho informação actualizada sobre o número de cursos de pós-graduação na área de insolvência e recuperação de empresas em funcionamento, sendo que quando, há cerca de quinze anos, preparei um projecto de criação de um curso para a instituição de ensino superior privado a que na altura estava ligado existia apenas um, na Universidade Portucalense Infante Dom Henrique.(i)

Justificar-se – ia entretanto que na formação a nível de licenciatura ou mestrado em Gestão de Empresas se desse relevo às circunstâncias em que as empresas morrem e se estudassem casos reais de insucesso.

Não se deve perder de vista que as propostas de criação de mecanismos não jurisdicionais de recuperação de empresas – como a que deu lugar ao PEC – Procedimento Extrajudicial de Conciliação instituído pelo Decreto-Lei nº 316/98 de 20 de Outubro (Institui o procedimento extrajudicial de conciliação para viabilização de empresas em situação de insolvência ou em situação económica difícil), que nasceu de uma proposta apresentada pelos representantes dos Ministérios da Economia, do Trabalho e da Solidariedade e, da Justiça no GACRE- Gabinete de Coordenação para a Recuperação de Empresas(ii)) cuja gestão foi confiada ao IAPMEI e foi prontamente apoiado por despacho do Ministro das Finanças, sendo a que a sua filosofia foi sendo transposta para outras figuras sucessivamente instituídas e aberta a possibilidade de homologação judicial das soluções consensualizadas.

Por outro lado, nasceram no mesmo contexto em 1998, através de concertação entre a estrutura do Ministério das Finanças e o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, posteriormente alargada ao Gabinete de Gestão do SIRME / IAPMEI mecanismos de reestruturação empresarial assentes na venda de estabelecimentos em processo executivo(iii) ou em processo especial de recuperação de empresas, onde já era possível o recurso à figura, muito pouco utilizada, de “reconstituição empresarial”. Na revisão do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência que teve lugar através do Decreto-Lei nº 315/98, de 20 de Outubro também se abriu uma caminho favorável à venda de estabelecimentos em processo de falência.

Não deixa de ser interessante verificar que o direito da União Europeia vem acolhendo o recurso preferencial a soluções que permitam a continuidade da actividade de partes de empresa, que em 1998 foram adoptadas em Portugal para salvaguardar postos de trabalho prevenindo o racket entre empresários incumpridores e organizações representativas dos trabalhadores.

Temos assim neste ano de 2022 julgo que uma ampla cobertura legal e “europeia” para optar pelas vendas de estabelecimento o que pode até ser feito com maior defesa para o responsável, através da agora prevista aprovação formal de um plano de liquidação(iv). Já me referi em artigo publicado no Jornal Tornado em 28 de Fevereiro de 2018 Transmissão de estabelecimentos: um entendimento limitado a esta possibilidade.

E os interessados que têm acompanhado os Congressos de Insolvência e Recuperação já terão a noção de que é um economista – Jorge Calvete – que tem feito a defesa mais sistemática e desenvolvida do recurso à venda de estabelecimentos e que obtém resultados neste domínio. Aliás na Ordem dos Economistas existe – só me apercebi nas recentes eleições para os órgãos – um Colégio de Especialidade próprio para os economistas que intervêm em processos de insolvência e recuperação.

Contudo, o Dr. Jorge Calvete, sem renegar o interesse da “Fénix” ou seja da liquidação organizada – optou na sua intervenção no Congresso por chamar a atenção para os obstáculos que vem encontrando para sensibilizar todos os sectores para o interesse de soluções que mantenham sectores da empresa em actividade, preservando os postos de trabalho. Inclusive, insistiu em vincar, por parte de advogados dos sindicatos.

 A pluridisciplinaridade parece-me, neste contexto, indispensável.

Paulo Valério, publicou recentemente um apontamento sobre a integração da APDIR na INSOL que me parece útil reproduzir aqui.

 Quando, em 2018, fundei a Associação Portuguesa de Direito da Insolvência, tinha para mim que ela só teria verdadeiro alcance se pudesse tomar parte – e fazer parte – das principais discussões internacionais neste âmbito, incorporando a organização global de referência na área, a INSOL.

De lá por cá passámos por Singapura e pela Cidade do Cabo, a pandemia pregou-nos uma rasteira e só agora voltámos a Londres.

Levámos uma comitiva maior, uma associação em velocidade de cruzeiro com mais de 50 associados, um seminário internacional em Lisboa (o primeiro) para “vender” e trouxemos perspectivas incríveis de colaboração com profissionais de sítios tão distintos como os EUA, o Canadá, a França, a Índia, o Reino Unido, a Grécia, o Brasil e tantos outros.

De repente, parece que os portugueses são queridos naquelas bandas e debatem de igual para igual, sem soberba, mas também sem complexos de inferioridade.

Fomos discutir a crise? Sim, mas não só. Estamos a construir juntos uma abordagem global do direito da insolvência que não é só um remédio. É, como já disse tantas vezes, factor de certeza e segurança jurídicas, sendo, por isso, essencial ao comércio internacional e factor de competitividade para qualquer país que se preze.

 De uma circular interna da APDIR que me parece poder ser qualificada como associação científica, retiro:

Junho foi também o mês da Conferência Anual da INSOL em Londres, assinalando os 40 anos desta organização. Depois de dois anos de interrupção pandémica, foi uma oportunidade de reencontro entre centenas de profissionais e dezenas de associações membro. A Direção da APDIR esteve representada, participando no Colóquio Académico e, também, na mesa redonda das Associações Membro, onde foi possível partilhar experiências e discutir com associações congéneres de diversas jurisdições oportunidades de colaboração futura.

Não menos importante, importa anunciar, formalmente, a realização de um Seminário Internacional em Lisboa, com data marcada para o próximo dia 13 de outubro. Será o primeiro evento do género alguma vez promovido pela INSOL em Portugal, refletindo um esforço conjunto com a APDIR. Espera-se que permita promover um debate rico de ideias, centrado, por um lado, na transposição da Diretiva UE sobre Reestruturação Preventiva mas, também, nos sistemas de insolvência de diversos países de língua portuguesa, tais como o Brasil, Angola ou Moçambique, ancorando a reflexão em casos de relevância transfronteiriça, como a OI ou a Soares da Costa. 

Todo este crescimento da escala de actividade da APDIR coloca a necessidade de ir organizando a vastíssima documentação já existente sobre o tema e obrigar o Ministério da Justiça a produzir estatísticas, cuja falta ou insuficiência foi assinalada no Congresso.

 Espero poder voltar a estes temas.

 

Notas

(i) O qual não foi além, julgo, do responsável pela área de formação da instituição.

(ii) Sendo economistas os representantes do Ministério da Economia, António Curto, também Presidente do GACRE e do Trabalho e da Solidariedade, Beirão Amador.

(iii) A primeira tentativa de vender um estabelecimento em execução fiscal – com a oposição da gerente – incidiu sobre os Cabos Ávila.

(iv) Repare-se que uma venda de estabelecimento com os trabalhadores vinculados ao estabelecimento pode diminuir o preço possível de cobrar pela venda dos activos e prejudicar os credores.

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