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Sábado, Abril 27, 2024

Interesse Público e Fuga para o Direito Privado – experiências de Oliveira Costa e Miguel Alves

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

A discussão do que, numa determinada área de actuação do Estado ou de qualquer outra entidade pública, constitui “interesse público” tem vindo frequentemente a ser sufocada com a alegação de que interesse público é o que um órgão político ou um titular de cargo político disser. Trata-se de uma forma de circunscrever a possibilidade de os serviços, ou de os funcionários por si próprios, discutirem se uma determinada orientação sob análise técnica respeita ou não o interesse público e informarem em conformidade, deixando exarada no processo uma opinião fundamentada.

Também desde há muito tempo se vem registando na Administração Pública uma tendência para um fenómeno largamente conhecido como a Fuga para o Direito Privado, criando-se organizações de direito privado para a prossecução de fins cometidos à Administração Pública ou simplesmente invocando normas de direito privado para desenvolver actuações disciplinadas por normas de direito público.

Quando qualquer uma destas visões influencie a actuação do Estado ou de outras entidades públicas pode suceder que, no caso de as coisas correrem mal, seja difícil a atribuição de responsabilidades.

Discutirei no presente artigo uma estratégia, julgo que muito pouco conhecida, de José de Oliveira Costa – ou a ele atribuída – enquanto exerceu as funções de Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais e um aspecto da muito recentemente publicitada actuação de Miguel Alves enquanto presidente da Câmara Municipal de Caminha quando celebrou com um privado um contrato conducente à criação de um Centro de Exposições no concelho.

 

Oliveira Costa e a Direcção-Geral do Património do Estado como “Secretaria dos Impostos

A criação de uma Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais no segundo governo do ciclo de Cavaco Silva, com maioria absoluta obtida em 1987 após a dissolução da Assembleia da República por Mário Soares e a entrega do lugar a José de Oliveira Costa, seu colega no Banco de Portugal e dirigente distrital do PSD(i), representou uma experiência que haveria de ter continuidade em outros ciclos governamentais(ii) sendo que este primeiro SEAF permaneceu como “O SEAF” na memória dos serviços.

No Ministério das Finanças existia na altura autonomamente uma Direcção-Geral do Património do Estado (DGPE) que tinha resultado da cisão, em 1976, da Direcção-Geral da Fazenda Pública, e que muito mais tarde havia de voltar a ser fundida com a Direcção-Geral do Tesouro, dando origem à actual Direcção-Geral do Tesouro e Finanças.

Do Tesouro dizia-se na altura – tendo presente o modelo francês – que era “a face invisível da actividade financeira do Estado”(iii) mas em relação à gestão do Património o desconhecimento era quase completo. Na parte que interessa ao presente artigo anote-se que no essencial a DGPE organizava processos de aquisição(iv)por processos de direito privado” e de arrendamento de imóveis em nome do Estado – ou, acima de certos valores, de institutos públicos – que regra geral tinham origem em propostas dos serviços, sem que existisse uma política de “alojamento de serviços da Administração Pública“ funcional ou espacialmente coerente(v). No entanto a inscrição de verbas para aquisição de imóveis para o Estado(vi) continuou a estar reservada à Direcção-Geral que promovia a sua orçamentação no capítulo de “Despesas Excepcionais” do Ministério das Finanças.

Nestas condições, a Direcção-Geral estava madura para ser instrumentalizada pelo Secretário de Estado em cuja dependência fora colocada e foi-o efectivamente:

  • a Direcção de Serviços de Instalações da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos (DGCI) organizou um plano de construção de novos espaços, sobretudo Repartições de Finanças, mas deixou de lançar para o efeito empreitadas de obras públicas;
  • os seus parceiros eram de modo geral empreiteiros que dispunham de terrenos onde se poderiam construir instalações em condições ou com características apalavradas com os serviços da DGCI;
  • a DGCI não celebrava contratos de empreitada de obras públicas com os vendedores sendo que era a DGPE a celebrar contratos promessa de compra e venda com estes, pressupondo que os edifícios seriam recepcionados, a final, nas condições desejadas, sem que se fizessem durante a construção autos de medição que nas empreitadas de obras públicas servem de fundamento a pagamentos parciais;
  • com a assinatura dos contratos promessa de compra e venda era adiantada pela DGPE em conta da verba do orçamento do Estado para Investimentos –Edifícios a totalidade do preço, o que a lei não admitia num contrato de empreitada de obras públicas;
  • alguns dos contratos-promessa celebrados foram-no com municípios, sobretudo quando estes previam construir instalações que seriam colocadas em propriedade horizontal, com afectação de algumas fracções a serviços seus, e de outras a instalações das repartições de finanças / tesourarias da fazenda pública.

Desabafava na altura o director de serviços de gestão patrimonial da DGPE, com inteira propriedade, que a Direcção-Geral tinha sido transformada numa “Secretaria dos Impostos”

Tanto quanto pude verificar nunca o Tribunal de Contas levou questões a estes contratos. A preocupação dos seus serviços cingia-se a que fossem pontualmente pagos os emolumentos devidos pelo respectivo “visto”(vii).

Diga-se entretanto que como salvaguarda, o “vendedor” era obrigado a prestar garantia bancária que lhe seria exigida em caso de incumprimento do contrato.

Se bem que:

  • a garantia se cingisse ao valor adiantado pela DGPE sem qualquer correcção que funcionasse como cláusula penal;
  • não ficasse prevista nenhuma articulação para o efeito entre a DGCI e a DGPE;
  • a DGPE não pudesse reintegrar a dotação utilizada para conceder o adiantamento, sobretudo se a garantia viesse a ser fosse accionada já num ano diferente, uma vez que o respectivo valor não beneficiava de consignação.

 

Tentando limitar o desgaste

Encontrava-me adstrito à Direcção de Serviços de Cadastro e Inventário da DGPE quando, tendo-se aposentado a Chefe da Divisão de Aquisições e Arrendamentos para o Estado fui convidado pelo Director-Geral para lhe suceder. A bem dizer esta Divisão como as restantes da área de Gestão Patrimonial eram antigas Secções cujo nível hierárquico havia sido elevado numa reestruturação e cujo pessoal, regra geral dedicado e competente, estava na sua maioria enquadrado numa carreira de gestão patrimonial específica que durante muito tempo aguardou revalorização.

O “esquema” descrito era aplicado pelos serviços independentemente da publicação de qualquer normativo e quando comecei a analisar processos de aquisição de instalações para Repartição de Finanças, em especial num concelho do Minho onde o processo tinha corrido particularmente mal, tentei perceber junto dos funcionários, como é tinham vindo a fazer informações de serviço tão pouco lógicas, a funcionária da categoria mais elevada (Subdirectora de Gestão Patrimonial) brindou-me com um largo sorriso e tirou de uma gaveta da sua secretária uma “ordem escrita” que haviam exigido superiormente como cobertura do pessoal da Divisão.

Possivelmente por a DGCI já ter formulado na altura todas as suas “encomendas” nunca me foi solicitado que apoiasse qualquer nova proposta deste tipo. Aliás duvido que o esquema que descrevi tenha sido concebido pessoalmente por Oliveira Costa, que sempre teve juristas consigo(viii).

Coube-me clarificar a situação de todos os contratos promessa. No Algarve as obras relativas a uma Repartição de Finanças aceleraram extraordinariamente quando a minha divisão contactou informalmente a Caixa Geral de Depósitos insinuando que poderíamos vir a pedir a execução da garantia. Num caso do centro do país foi a própria DGCI que nos avisou não haver outra solução se não executar a garantia bancária que havia sido prestada.

 

Miguel Alves, a Câmara Municipal de Caminha e o Centro de Exposições

Se Miguel Alves não tivesse subido de Presidente da Câmara Municipal de Caminha a Secretário de Estado Adjunto do Primeiro Ministro talvez o complexo negócio que previa a criação de um Centro de Exposições não tivesse tido tão escrutinado.

O elemento de favorecimento que não deixou de ser destacado em todos os relatos foi, como era de esperar a existência de um adiantamento sob a forma de pagamento antecipado de rendas.  

A Câmara Municipal e a Assembleia Municipal, vendo os olhos do país fixos na sua terra. acabaram por convergir na resolução do contrato com fundamento em incumprimento e no pedido de devolução dos 300 mil euros adiantados. Veremos se o dinheiro será recuperado.

Apetece dizer que Oliveira Costa teria pedido garantia bancária.

 

E afinal, o interesse público?

Acredito que o interesse público deve também ser objecto de discussão pelos quadros e trabalhadores da Administração Público. De forma voluntariamente subversiva deixei-o escrito nos agradecimentos da minha tese de doutoramento:

Sem …o debate de ideias mantido com colaboradores próximos nos serviços em que exerci funções dirigentes – Departamento Central de Planeamento, Ministério dos Negócios Estrangeiros Direcção-Geral do Património do Estado, Instituto da Qualidade Alimentar, Departamento da Educação Básica, a motivação para desenvolver este trabalho não teria surgido. Merecem especial referência os funcionários da carreira de gestão patrimonial …, prematuramente desaparecidos, com quem, na ausência de orientação superior, ou, pior, na presença de orientações questionáveis, tantas vezes discuti qual era, em cada caso concreto, o interesse público, e a forma de o defender.

Para além da falecida Subdirectora de Gestão Patrimonial Manuela Silva – a que me refiro no presente artigo – é justo dizer que outros funcionários da então DGPE participaram neste esforço. Nunca os esquecerei.

 

Notas

(i) Presidente da Comissão Política Distrital de Aveiro, lugar cujo exercício manteve mesmo durante a sua presença no Governo.

(ii) Embora não no ciclo imediatamente seguinte, em cujo início – ou seja em 1991 – os assuntos fiscais voltaram à Secretaria de Estado do Orçamento, liderada por Manuela Ferreira Leite, com Vasco Valdez como Subsecretário de Estado.

(iii) Sendo o Orçamento a face visível”.

(iv) A chamada “gestão jurídica”.

(v) A certa altura falou-se da intenção de criar uma Cidade Administrativa em Benfica, mas houve quem ficasse com a ideia de que havia sido um expediente ardiloso para fazer passar certas opções em termos de rede de Metro.

(vi) Estado propriamente dito, sem abranger institutos públicos ou empresas públicas.

(vii) Hoje em dia, com um Tribunal de Contas muito mais sensível e preparado, acredito que fosse desencadeada uma auditoria.

(viii) Este artigo não pretende extrapolar a conduta seguida neste domínio pela Secretaria de Estado para os desmandos que mais tarde foram identificados e julgados nos processos do Banco Português de Negócios, aliás não tenho a certeza de que as condenações proferidas pelo Tribunal da Relação de Lisboa tivessem transitado em julgado à data em que Oliveira Costa, já com 84 anos, veio a falecer.

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