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João de Sousa

Sábado, Dezembro 7, 2024

Céptico mas não derrotado: João Galamba “abre” o livro

João de Sousa
João de Sousa
Jornalista, Director do Jornal Tornado

“Há, claramente, uma tendência de desagregação, recuo e desmembramento da UE”

galamba-2João Galamba, um deputado de uma nova geração que aposta mais no Conhecimento que nos conhecimentos. A par de mais alguns, poucos, é uma lufada de ar fresco no Parlamento. Pelo que representa e pelos valores que defende com grande convicção, foi com ele que decidimos abrir esta série de entrevistas exclusivas. Em discurso directo!

 

A Holanda e a República Checa manifestaram disposição de referendar a sua permanência na União Europeia. Será isto um efeito dominó do acordo feito com o Reino Unido e da elevada probabilidade de, apesar do acordo, os Britânicos virem a optar pelo Brexit?

Parece-me que, depois de vários anos de aprofundamento da integração europeia, aquilo a que estamos a assistir neste momento é um processo de desagregação a diferentes velocidades, mas há claramente uma tendência de desagregação e de recuo e desmembramento da União Europeia. Na República Checa ou na Holanda, se olharmos para o que os cidadãos hoje pensam da União Europeia e do Euro e das fronteiras abertas e das principais características da União Europeia, penso que temos todos razões para olhar para este projecto como um projecto em desagregação e em recuo, e não como um projecto com vitalidade e com uma perspectiva de aprofundamento e de maior comprometimento por parte dos países com este projecto. O exemplo inglês é o exemplo mais extremo, mas os exemplos que se têm multiplicado um pouco por toda a Europa, muitas vezes por pressões de partidos de extrema-direita que parecem estar a liderar as agendas políticas em praticamente todos os países europeus…

 

 

Está a pensar no caso da Hungria, por exemplo, com os seus muros… ?

Sim. E ainda ontem saiu uma sondagem na Holanda, onde o partido de extrema-direita de Wilders tem quase 30 por cento dos votos, e a esquerda toda junta tem muito menos votos que a direita mais a extrema-direita. E o partido social democrata da família política do PS, a que pertence o inefável Dijsselbloem tem 6 por cento dos votos e, portanto, obviamente isto é muito preocupante; e o que vejo da parte da Europa é a lógica repressiva conservadora, ou seja, invocarem sempre um problema como um problema a conter, e não como um problema que é provocado por causas mais profundas, causas essas que são o verdadeiro problema da Europa e que seriam essas que deviam ser alvo de um debate e de um conjunto de políticas, e infelizmente não têm sido.

Estamos a tratar dos sintomas e não das causas e sempre que tratarmos dos sintomas a Europa ficará pior; porque os sintomas são descontentamento, medo em relação a outros, desconfiança, e sempre que os únicos problemas a resolver forem desconfiança, medo e insegurança, a narrativa é sempre a da direita e extrema-direita, o que obviamente são más notícias para o projecto europeu.

 

O que espera na sequência da “suspensão” do Acordo Schengen na Bélgica e das limitações à circulação de refugiados através da Áustria e da Macedónia, países que limitaram significativamente a circulação de pessoas no espaço da União?

O que é engraçado é que devemos comparar a questão dos refugiados com a questão das dívidas soberanas e dos problemas orçamentais. Quando um conjunto de países teve problemas na sua dívida e problemas orçamentais, aquilo que imperou foi um reforço de um autoritarismo orçamental e um reforço do papel das instituições europeias com uma espécie de polícia orçamental, que tem como principal missão subjugar, submeter, dominar, impor, constranger, etc.

Houve uma reafirmação do centro face à periferia na questão das dívidas soberanas e em todas as questões orçamentais e de política económica. Nas questões dos refugiados, acontece exactamente o oposto. Na impossibilidade de uma afirmação centralista da Europa – até houve essa tentativa mas ela não resultou – o que temos é a afirmação soberanista, individual, desorganizada que tem, aparentemente, alguma tolerância por parte do centro.

Não deixam de ser dois problemas que convocam o projecto europeu para dar uma resposta. No primeiro, o projecto europeu aparece como disciplinador e castrador; no segundo aparece como impotente dando espaço a que cada um dos países interprete livremente que regras se devem aplicar ou não, chegando ao extremo de suspender uma das três liberdades fundamentais do próprio projecto Europeu, que tem obviamente prioridade face a qualquer regra orçamental, que é a livre circulação de pessoas.

Livre circulação de bens, pessoas e capital são as três principais liberdades e pilares da União Europeia. Não deixa de ser revelador que não se tenha deixado países terem uma flexibilidade de 0.1, 0.2 ou 0.3 de défice, que são coisas insignificantes, no entanto, nos refugiados, os países suspenderam a aplicação de regras, essas sim, centrais e francamente prioritárias face às regras de disciplina orçamental. Acho que isto é bem revelador do momento actual.

 

Como fica a União Europeia, baseada desde o Tratado de Roma nos três pilares que referiu: a livre circulação de pessoas, bens e capitais, suprimindo, de todo, a livre circulação de pessoas?

Muda a natureza do projecto europeu. A partir do momento em que suspendemos a livre circulação de pessoas, há uma dimensão essencial do projecto europeu que desaparece, daí falar na desagregação. Ou seja, se os países não se conseguem entender quanto a uma das liberdades fundamentais do projecto europeu, então conseguirão entender-se em relação a quê?

Acho que a resposta é óbvia: em relação a muito pouco ou nada, ou então apenas naquelas matérias onde o poder do centro facilmente se impõe às periferias que é o caso das políticas económicas e orçamentais. E se temos um dualismo de intervenção da União Europeia que é forte com os fracos, neste caso, e fraca com fortes, porque os fortes querem suspender a liberdade de circulação de pessoas, e estão a fazê-lo, então isto de facto pronuncia o pior para a União Europeia.

 

E, a acontecer, isso não provoca o que já é visível à escala de cada país, isto é, a deslocação do centro para a direita e extrema-direita, e dos anteriormente designados radicais para o centro?

Sim. Mas acho que há uma coisa mais perversa que é, enquanto a antiga extrema-esquerda e partidos comunistas eram vistos como anti-europeístas, e mesmo quando cooperam com um governo europeísta, tentando até aceitar as regras europeias, são fortemente censurados, penalizados e contrariados pelas instituições europeias, a direita racista e xenófoba tem uma relativa tolerância na Europa.

Ou seja, temos partidos de esquerda que tentam cumprir as regras, mas têm uma política diferente e são segredados e fortemente censurados e punidos, e partidos de extrema-direita xenófobos que suspendem e não querem cumprir regras que são muito mais importantes que regras orçamentais, porque estão no cerne da própria identidade e natureza do projecto europeu, que até alguns têm milícias paramilitares, como é o caso da Hungria, esses, aparentemente, são tratados com relativa benevolência e não me lembro de haver uma acusação generalizada por parte do Conselho Europeu, do Eurogrupo ou da Comissão Europeia, de que os verdadeiros anti-europeístas não estavam na Grécia ou no Partido Comunista Português, mas sim na generalidade de partidos de direita que adoptaram uma agenda política que é a negação do projecto europeu.

 

São os próprios a afirmá-lo sem peias. Nenhum é tímido em afirmar-se contra o projecto europeu…

Sim, mas o que acho interessante aqui é que os anti-europeus são aqueles que apenas tentam negociar o défice, ou não cortar pensões, ou não subir impostos ou não cortar no rendimento das pessoas. Enquanto aqueles que querem bater em pessoas, deportá-las, expulsar, confiscar bens de pessoas, tratá-las como seres de segunda, terceira ou quinta, esses aí são tratados com relativa benevolência. É este duplo critério no tratamento da esquerda e da direita que confesso que me provoca alguma angústia e me deixa profundamente deprimido.

 

Como encara a súbita abstinência do PSD face à discussão do Orçamento na Especialidade? Não é este um comportamento anormal num partido que ambiciona ter responsabilidades governativas daqui a algum tempo?

De duas maneiras, relacionadas. A primeira é invocando o discurso de Assunção Cristas que falou de “meninos do recreio”, penso que a metáfora que usou sobre os meninos do recreio aplica-se não aos partidos que apoiaram este orçamento, esses comportaram-se de forma adulta e responsável, mas sim ao PSD que parece estar a comportar-se como uma criança mimada que como não pode jogar à bola, não brinca. Parece que foi o que se passou.

Por outro lado, esta atitude do PSD é uma atitude defensiva e que tem a preocupação de auto-preservação. Porque como o PSD encarou este orçamento dizendo coisas contraditórias, era um orçamento que dava tudo a todos e não dava nada a ninguém, era um orçamento excessivamente expansionista e austeritário, era um orçamento irresponsável porque devolvia demasiado rendimento mas, ao mesmo tempo, era um orçamento restritivo porque aumentava demasiado os impostos… Quando o PSD tem este discurso profundamente contraditório, no momento em que apresentasse propostas de alteração, exporia o seu bluff como bluff.

Porque, das duas uma: ou as medidas que apresentaria eram medidas no sentido de reforçar a componente restritiva do orçamento, ou no sentido de aumentar a componente expansionista do orçamento. E isto obviamente que reforçaria, ainda mais, a contradição do seu discurso. Portanto, a única maneira de manter a contradição do seu discurso menos explícita é apenas criticar o orçamento e não fazer propostas. Por isso, vejo esta atitude do PSD como uma atitude de auto-protecção, de auto-preservação, porque é a única maneira de não exporem, ainda mais, ao ridículo um discurso que já é de si ridículo e contraditório.

 

Houve um esforço evidente, da direita parlamentar, em isolar o PS e até mesmo em criar, através do uso selectivo da linguagem (a colagem aos comunistas e bloquistas, como se de lepra se tratasse), uma clivagem que quebrasse o acordo que a esquerda parlamentar conseguiu encontrar. Como se sentirão após as declarações da Moody’s que reconhecem algum mérito, mitigado embora pelo risco que deriva de factores externos como a volatilidade, o preço do petróleo, a ameaça de recessão mundial, com a China e restantes países BRIC a crescer menos, não parecerem afectar a Moody’s tanto como decerto esperavam e gostariam?

Não é só a Moody’s. Temos assistido, nas últimas três semanas, a uma coisa fascinante. O orçamento português, nas suas diferentes versões, seja o esboço, seja o de agora, foi obviamente criticado por muita gente e muitos dizem que tem risco, como dizem de todos os orçamentos. Mas curiosamente, houve um conjunto de instituições que vieram pôr água na fervura e tentar acalmar um pouco a histeria. E todas elas foram bancos. É curioso.

Aconteceu, por exemplo, no dia em que Dijsselbloem, ministro das Finanças holandês e presidente do Eurogrupo, disse que estava muito preocupado com os juros da dívida portuguesa e com a instabilidade nos mercados. Nesse mesmo dia, os juros estavam a descer fortemente e a insuspeita JP Morgan veio dizer que os juros portugueses estavam excessivamente elevados e que era uma boa aposta. Ou seja, o que veio dizer é que deviam estar mais baixos e que aquele valor era injustificado. Portanto, no dia em que há um político até da família socialista que critica Portugal, vem um grande banco americano dizer que a histeria é excessiva e que a instabilidade nos mercados não tem justificação.

Nos últimos dias temos assistido a declarações de vários responsáveis europeus que estão preocupados com o orçamento português. Quem é que parece não estar preocupado com o orçamento português e reafirma o rating ou a análise que têm feito sobre o país? Primeiro a agência de rating DBRS que já fez não sei quantos comunicados a dizer que estavam confortáveis com o rating e que não havia justificação nenhuma para o alterarem. Hoje foi a Moody’s e o Barclays.

Temos esta coisa estranha que é: as instituições, que políticos europeus querem sossegar e acalmar, estão sossegadas e calmas. E os políticos é que não estão. Isto devia ser um sinal de aviso para esses políticos que tentam à viva força destabilizar e causar problemas a Portugal e criar riscos onde eles não existem, porque aparentemente as instituições que eles querem acalmar e que querem que Portugal acalme, estão suficientemente calmas ao ponto de emitirem sucessivos comunicados a dizer “connosco não há problema nenhum”. Isto devia dar que pensar a alguns políticos que, em Portugal e no exterior, têm feito declarações sucessivas que, de facto, não parecem ser confirmadas por aquelas instituições a quem tentam agradar. Essas parecem estar relativamente tranquilas o que mostra aquilo que o PS sempre tem dito. A nossa política é diferente da anterior. Mas não é irresponsável, não é dar tudo a todos, não é de repente reverter todos os cortes no primeiro orçamento.

Nós, dentro das regras europeias procurámos encontrar o espaço de manobra que tínhamos, identificámos esse espaço de manobra ou aquilo que para nós parecia ser o espaço de manobra no qual nos podíamos mover e, dentro desse espaço de manobra, tentámos criar políticas alternativas que tiveram o apoio político do PCP, do Bloco e do PEV e é isso que estamos a fazer. É natural que instituições que não têm um comprometimento político com a estratégia anterior se estejam nas tintas, digamos, para se o governo muda de política ou não, desde que cumpra as regras.

Enquanto que nas instituições internacionais e em Portugal há uma enorme tentativa de preservar a narrativa de sucesso do ajustamento e de sucesso da austeridade porque obviamente a partir do dia em que eles disserem que o governo português tem razão, é possível cumprir as regras europeias e ter uma alternativa de política não só estariam a pôr em cheque o anterior governo como estariam a pôr-se em cheque a si próprios, porque eles passaram quatro anos a dizer que este era o único caminho.

 

Mesmo países com uma dívida soberana pequena, como a Espanha, têm neste momento uma dívida soberana enorme. A dívida soberana portuguesa, depois do empréstimo de 78 mil milhões, em vez de descer subiu, e essa foi um pouco a tendência em todo o Sul da Europa. Dá ideia que se procurou criar uma nova moeda chamada “dívida”. Concorda com esta afirmação? E que essa dívida está a ser usada para “emitir moeda” virtual destinada a recapitalizar os bancos do Norte?

Não, o que acho que aconteceu foi uma incapacidade das instituições europeias de reconhecerem que o principal responsável pela crise das dívidas soberanas e pelo agravamento dos efeitos da crise financeira na Europa eram disfunções institucionais graves ao nível do Euro, que permitiram que as causas da crise se acumulassem e, depois da crise rebentar, aumentar os efeitos negativos dessa mesma crise.

Como as instituições europeias, pela mesma razão que referi anteriormente, estão comprometidas com estas instituições e são incapazes de reconhecer que as instituições são incompletas, disfuncionais e causadoras de crises, como não estão disponíveis para o admitir, porque isso seria obviamente ilibar os países do Sul e culpar o euro e a si próprios, têm de inventar uma narrativa e essa narrativa foi uma suposta crise orçamental nos países do Sul, que é pura e simplesmente falsa porque a maioria dos países do Sul, até ao início da crise estava a reduzir a dívida e não a aumentá-la.

No caso português, que entrou num processo por défices excessivos em 2006, com Sócrates, foram acordadas metas até 2009, de que Portugal saiu um ano antes do procedimento por défice excessivo – foi a única vez que Portugal saiu de um procedimento por défices excessivos antes do acordado e com louvor e distinção. Se lermos os documentos de 2008, todos dizem que Portugal cumpriu. Espanha e Irlanda tinham dívidas de 20 ou 30 por cento e excedentes orçamentais; Portugal tinha uma dívida na média da União Europeia mas que estava a cair e a ajustar o deficit, como provam os próprios documentos da Comissão Europeia.

A única excepção aqui é a Grécia. Portanto, toda a narrativa sobre a crise, que basicamente tem justificado as medidas tomadas e as reformas da União Europeia, é uma crise que assenta num equívoco e numa interpretação completamente distorcida da crise original e será uma narrativa que sobreviverá sempre enquanto as instituições europeias tiverem um interesse muito forte em mantê-la. Porque a sua própria sobrevivência depende da manutenção dessa situação.

 

Há fortes indícios de uma elevada componente ideológica em tudo o que foi feito: desde as alterações realizadas no Direito do Trabalho, como a supressão de feriados, o aumento de número de horas de trabalho, a facilitação dos despedimentos, a multiplicação da precariedade, etc.; Está de acordo com esta leitura?

O ponto principal, aqui, é: como as principais instituições europeias e os principais governos europeus recusam admitir que a crise foi causada por reformas que eles próprios defenderam no passado, ou seja, que a liberalização e desregulação do sector financeiro, o euro e a liberdade de circulação de capitais criaram muito mais problemas que a despesa pública nos países; quer dizer que a principal causa foi essa, ou seja, que o problema está mesmo na natureza do projecto europeu e da zona euro e não no desvio comportamental deste ou daquele país.

Não estão preparados para ter essa narrativa, que implicaria reconhecer que o euro tem de ser profundamente transformado ou abandonado, ou refeito e que, portanto, o problema central está na própria arquitectura do mercado único e da moeda única, como não estão disponíveis para aceitar esta narrativa, têm de arranjar outros culpados e inventar outra narrativa. Então “arranjaram” a de que os povos do Sul são indisciplinados e a partir desse momento, todas as reformas que acabou de referir a desregulamentação do mercado de trabalho, o fomento da precariedade, os cortes dos salários tornam-se corolários desta narrativa.

 

O fomento da precariedade é algo contraditório com a sanidade das contas públicas, nomeadamente da segurança social. Por ser uma forma de as entidades patronais não fazerem descontos. A generalização da precariedade não aumenta o risco de falência da segurança social?

Sim, mas isso só seria um problema se partisse do pressuposto de que um dos objectivos desta narrativa hegemónica na União Europeia é estar livre de contradições. Ela está pejada de contradições em todo o lado, por isso, essa contradição é mais uma. Agora, se há uma contradição do lado das contas públicas eles desvalorizam-na, portanto, esse impacto que referiu será sempre desvalorizado e o que centram é na ideia de flexibilidade do mercado de trabalho que gera naturalmente competitividade. Nós estamos aqui com o consenso de Washington que marcou a política.

 

Mas se o desemprego aumenta como é que gera competitividade?

As instituições europeias recusam sistematicamente ver isso. Não esquecer que tivemos políticas de austeridade iniciadas em 2010 que tinha como objectivo acalmar os mercados e baixar os juros; os juros estiveram sempre a subir e só acalmaram quando o BCE interveio. Isto é um facto que desmente categoricamente a narrativa, a do é preciso autoridade para acalmar os mercados. Mas não conta que este facto que desmonta de forma tão evidente a narrativa que foi feita tenha tido qualquer impacto; eles mantiveram alegremente a narrativa que seguiram. Portanto, a narrativa é uma espécie de zombie. Aconteça o que acontecer, ela mantém-se viva da silva e continua aí a andar, a respirar e a cantar por muitos factos que demonstrem que ela está errada, por muitos argumentos irrefutáveis e definitivos que sejam lançados ela tem uma enorme resiliência, como hoje se diz e sobrevive a tudo, até à sua própria morte.

 

Está na sua convicção, e do Partido Socialista, que o BCE tem sido pelo menos conveniente em determinadas circunstâncias, para pôr e depôr governos?

Foi assim com Trichet, acho que tem sido menos assim com Drahgi. Com Trichet, claramente. Até temos documentos que o provam. Houve cartas de Trichet para o governo italiano a dizer que ou substituíam o primeiro ministro ou cortavam o financiamento aos bancos; isto é claramente uma chantagem, uma espécie de golpe de estado em Itália. Fizeram o mesmo com Zapatero e fizeram o mesmo com os gregos.

Portanto, houve uma altura em que o BCE foi um instrumento de poder da Alemanha e de um conjunto de países que tinham interesse mais uma vez em sustentar a narrativa e obviamente a narrativa não se sustenta com palavras bonitas, sustenta-se com Poder e com instrumentos de Poder e de política e um desses instrumentos, um desses braços armados dessa narrativa, sobretudo no início da crise, foi o BCE. Isso mudou com Drahgi. Drahgi mudou radicalmente essa narrativa; obviamente que não foi tão longe como eu gostaria, mas tem lançado, lá com a linguagem cifrada do Banco Central Europeu, tem lançado recorrentemente avisos de que a política orçamental tem de ser menos restritiva para apoiar a política monetária do BCE e que o BCE pode fazer trinta por uma linha, mas a eficácia da política do BCE dependerá sempre de uma política orçamental que sustente essa política monetária e essa sustentação não tem existido porque a política orçamental continua a ser restritiva.

Drahgi faz sempre avisos de que se deve ser mais expansionista se houver margem para…, mas tem lançado avisos suficientes para mostrar duas coisas. Um, ruptura com o legado de Trichet e dois, eu não direi uma oposição, mas uma tensão visível para quem saiba olhar, com a interpretação do que são as políticas necessárias para a União Europeia e para a zona euro definidas pelo Conselho Europeu e pela Comissão. Penso que essa clivagem hoje é notória.

 

Considera os vossos parceiros, de confiança?

Consideramos os nossos parceiros todos, de confiança e a relação entre Bloco de Esquerda, PCP e PEV com o PS tem sido exemplar. Não temos nada a apontar ao comportamento de nenhum desses três Partidos. Têm-se comportado exactamente de acordo com aquilo que acordaram com o Partido Socialista antes do início desta jornada. Têm sido leais e não temos nada a apontar. A relação tem decorrido de acordo com aquilo que nós tínhamos acordado; com lisura, com lealdade e com genuíno empenho da parte de todos.

Encontraram uma formulação que me parece correcta e que para mim é um avanço doutrinário muito grande no Bloco de Esquerda, no PCP e no PEV e que é o abandono do sectarismo e da irredutibilidade das suas posições, ou seja, reconhecer que têm o seu programa, têm os seus ideais, gostavam de ir mais longe, até achavam que o ideal era ir muito mais longe do que o PS, no entanto, parecem reconhecer, pela primeira vez, que não sendo o óptimo deles, sendo um avanço face ao que existia, e algo que merece o seu apoio.

Este avanço para o campo do compromisso é, na minha opinião, se quisermos, a mudança doutrinária, porque também tem uma componente doutrinária, porque reconhecer que o compromisso e que o bom pode não ser o ideal, mas o bom é melhor do que o mau, isto para mim já é um avanço significativo do PCP, do Bloco e do PEV. Quanto a sentir ou não confortável com o orçamento, achar que ele foi ou não descaracterizado.

Obviamente que não é o orçamento que nós entregamos inicialmente, não é o orçamento ideal que nós tínhamos, mas as mudanças que foram introduzidas, fruto da negociação com a Comissão Europeia, tornaram-no menos audacioso, mas não o descaracterizaram. Ou seja, mantém as apostas e as principais linhas orientadoras que nós tínhamos definido inicialmente, portanto, a recuperação dos rendimentos mantém-se, a aposta nos salários e na inversão da ideia de que através do empobrecimento e da redução salarial ganharíamos competitividade mantém-se, a aposta nos mínimos sociais mantém-se, a aposta no salário mínimo mantém-se, temos um orçamento que tem, se quisermos, um pouco mais de impostos indirectos do que desejaríamos…

 

São mais “cegos”…

São, mas seriam mais “cegos” se fossem o IVA, ou… Nós escolhemos aqueles impostos que nos pareceu que minimizavam o impacto nas famílias e que dado o contexto que hoje vivemos de forte queda do preço do petróleo, minimizavam o impacto no bolso das pessoas. O aumento de impostos sobre os produtos petrolíferos é, se quisermos, a medida de aumento de impostos mais gravosa deste orçamento; são 360 milhões de euros, é de muito longe a mais gravosa de todo este orçamento e aquela que mais pesa no bolso das famílias mas esse imposto é lançado num contexto de fortíssima queda do preço do petróleo o que atenua o impacto negativo do imposto e, feitas as contas, entre medidas que aumentam o rendimento e medidas que diminuem o rendimento, temos um saldo que é o triplo… o rendimento cresce o triplo em relação ao aumento de impostos, porque nós temos cerca de 1560 milhões de aumento de rendimento (1562, se não me engano), incluindo o IVA da restauração, e temos 600 milhões de impostos.

Portanto, 1560 vezes 600. Só que desses 600 há 100 que são sobre a banca, portanto não caem sobre as famílias, como o imposto extraordinário sobre o sector bancário para o fundo de resolução, de 50 milhões, mais o imposto de selo sobre as comissões cobradas aos comerciantes e que é pago pela banca. A soma desses dois impostos é 100 milhões de euros a que acresce o dos fundos imobiliários.

Sobre as famílias são cerca de 400 milhões de euros o que compara com 1560 milhões; portanto, o saldo entre aumento de rendimento e diminuição de rendimento por via de impostos, é claramente positivo e não é marginalmente positivo. É o triplo e como a nossa aposta era ter um saldo de aumento de rendimentos positivo, esse saldo não sendo tão positivo como inicialmente, ainda é francamente positivo e portanto, nós achamos que apesar das diferenças ainda é suficientemente parecido para, apesar do recuo, ou da negociação, e do compromisso inevitável com a Comissão Europeia, não chegou ao ponto de descaracterizar, desvirtuar e implicar um recuo em toda a linha e uma derrota do governo que era o que queriam o PSD e o CDS e o que desejavam os comissários europeus do Partido Popular Europeu, na Comissão, que obviamente queria utilizar o seu poder enquanto fiscalizador de orçamentos para impor uma pesada derrota politica a um governo de esquerda.

Falharam nesses intentos e com o falhanço deles falhou também a direita portuguesa para bem do país e dos portugueses. Quem ganhou com isto foi o País e os portugueses.

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